Tribunal de Contas aponta buraco de cem milhões nas verbas para os manuais

Instituição considera que programa de entrega gratuita dos livros foi suborçamentado no ano passado, continua a sê-lo (acentuadamente) neste - não chegando a um terço do custo previsto - e é ainda ameaçado na sua sustentabilidade pela "fraca expressão" da reutilização.

O alargamento da gratuitidade dos manuais escolares - que permitiu a mais de meio milhão de alunos, do 1.º ao 6.º ano de escolaridade, receberem no atual ano letivo os seus livros sem custos, e irá estender-se até ao 12.º ano em breve - foi uma medida "suborçamentada" e "a fraca reutilização de manuais ameaça a sua sustentabilidade". As conclusões são do Tribunal de Contas (TdC), num relatório de auditoria tornado público nesta quinta-feira à noite. A falta de dotação para a compra, neste ano, dos livros do 3.º ciclo e do secundário é uma das principais falhas apontadas. Em causa está uma diferença superior a cem milhões de euros entre o que foi orçamentado e o que a medida deverá efetivamente custar. O Ministério da Educação diz que Finanças têm "reserva" para este fim.

No que respeita às verbas envolvidas no programa, especifica o TdC numa nota de apresentação deste documento, concluiu-se que "o orçamento da Medida para 2018, no montante de 28,7 milhões de euros, se revelou insuficiente face aos 29,8 milhões de euros necessários à execução". E verificou-se ainda, acrescentou, que em março deste ano "permaneciam em dívida às livrarias pelo menos 3,1 milhões de euros".

Mas é em relação às contas orçamentadas para 2019 - sendo que, a partir do próximo ano letivo, que arranca em setembro, o programa já irá abranger toda a escolaridade obrigatória até ao 12.º ano - que surgem as maiores dúvidas: "O Orçamento para 2019 (47 milhões de euros) está igualmente aquém da despesa estimada (145 milhões de euros)", avisa. Por outras palavras: apenas está garantida menos de um terço da verba necessária.

De acordo com o TdC, a significativa diferença prende-se precisamente com o facto de ter sido inscrita na Lei do Orçamento do Estado para 2019 a dotação necessária para a compra dos manuais do 1.º e 2.º ciclos, mas "sem contemplar os manuais do 3.º ciclo e do ensino secundário", apesar de o referido orçamento já prever "a aplicação da medida em toda a extensão da escolaridade obrigatória até ao 12.º ano".

Face à estimativa de 145 milhões (144,6) feita pelo próprio Instituto de Gestão Financeira da Educação (IGeFE), o tribunal considera que "não se compreende uma insuficiência orçamental de tal dimensão, ou seja, três vezes inferior ao estimado".

Apenas 11% dos livros do 1.º ciclo foram reutilizados
No que respeita à reutilização dos manuais - a medida pressupõe que os livros são emprestados aos alunos, devendo ser devolvidos às escolas em boas condições no final do ano letivo, sob pena de terem de ser pagos pelos encarregados de educação -, o TdC constata que esta "não teve expressão, uma vez que não ultrapassou os 11% no 1.º ciclo e 0,4% no 2.º ciclo". Isto, "nas 608 escolas que registaram manuais para reutilizar", já que houve ainda "115 escolas [que] não procederam à reutilização", principalmente por não terem inscrito livros disponíveis para o processo. "Também se desconhece quantos manuais reutilizados se encontravam, efetivamente, em utilização", acrescenta o relatório.

O TdC recomenda por isso que seja assegurado um maior "acompanhamento e controlo" deste princípio da reutilização, um passo que considera "essencial à sustentabilidade da medida".

Refira-se que, das percentagens citadas pelo tribunal, a mais relevante é a que se refere ao 1.º ciclo, em que a distribuição gratuita dos manuais já acontecia desde 2017-2018, do 1.º ao 4.º ano, em todas as escolas públicas. O programa, recorde-se, arrancou em 2016-2017, na altura com a gratuitidade dos livros para todos os alunos do 1.º ano das escolas públicas e privadas, tendo estas últimas sido entretanto excluídas por decisão do Ministério da Educação.

Já em relação ao 2.º ciclo, como refere o próprio TdC, a fraca expressão diz respeito a uma indicação por parte da Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares (DGEstE) para que esta reutilização não fosse feita em 2018-2019, de forma a que todos os alunos ficassem em "condições de igualdade" no primeiro da extensão da medida aos 5.º e 6.º anos de escolaridade. Em todo o caso, precisamente por se tratar da primeira vez que a oferta era alargada a esse ciclo, dificilmente seria mais do que residual a percentagem de livros reutilizados.

No relatório, o TdC questiona também a permissão, pelo Ministério da Educação, de que as escolas decidissem se os livros em segunda mão eram atribuídos aleatoriamente - o modelo padrão - ou distribuídos de acordo com critérios estipulados pelas mesmas.

A articulação do portal MEGA, onde os pais podem obter os vouchers dos livros e formalizar as encomendas, com outras plataformas ligadas às escolas e aos editores e livreiros, foi outra dificuldade suscitada pelo Tribunal de Contas, para o qual esse problema explica em parte os atrasos verificados na entrega dos livros a parte das famílias e os erros ocorridos em algumas encomendas.

Ministério garante que não faltará dinheiro para os livros
Num "direito ao contraditório" enviado ao tribunal, anexo a este relatório, o Ministério da Educação (ME), através de Inês Ramires, chefe de gabinete do ministro Tiago Brandão Rodrigues, elenca várias medidas já tomadas no sentido de melhorar a eficiência do sistema. No entanto, na referida nota pouco é dito em relação à suborçamentação referida pelo TdC.

No que se refere a este último aspeto, é apenas abordada a relativamente pequena diferença de 1,2 milhões entre o que foi orçamentado e executado relativamente a 2018, com o ministério a defender que, "à data da elaboração do orçamento para 2018, ainda não era conhecida nem se encontrava formalizada a extensão da medida". Já em relação à muito mais expressiva diferença entre o que é orçamentado e deverá ser o custo real da medida em 2019, a resposta do ministério nada acrescenta, o mesmo sucedendo com um contraditório também remetido ao tribunal pelo IGEFE.

Entretanto, o ministério fez chegar às redações uma nota de imprensa na qual acrescenta que, "no que respeita à orçamentação da medida, já houve reforço do orçamento para manuais, existindo também, para fazer face a este custo, verba disponível na reserva do programa orçamental do Ministério das Finanças para o efeito".

Só não é explicado porque a medida não foi logo orçamentada pelo custo que o governo já sabia à partida que a mesma teria.

Já no que respeita à promoção da reutilização dos livros, o ministério lembra - tanto na resposta ao TdC como no comunicado à imprensa - que foram entretanto implementadas várias medidas, algumas das quais reconhecidas pelo próprio tribunal, como a divulgação, em fevereiro, de um manual de boas práticas, acompanhado de um incentivo financeiro e de um selo (Escola Mega Fixe) para os estabelecimentos que mais se destaquem na aplicação desta medida.

Ao tribunal, o ministério garante ainda que "em 2019-2020 será já possível fazer o acompanhamento dos vouchers dos manuais reaproveitados, por escola e ano escolar, permitindo dessa forma monitorizar o processo de reutilização", acrescentando que "sempre que o número de vouchers resgatados não corresponda ao número de livros reutilizados inscritos na plataforma pelos agrupamentos de escolas, a mesma [escola] terá de responder a inquérito" sobre o sucedido, indicando, nomeadamente, "quantos [livros] se encontram em situações que impedem a sua reutilização" e "se foram aplicadas as penalidades previstas" nos casos em que os livros foram entregues em mau estado ou não foram devolvidos.

Esforço de implementação elogiado
Refira-se que o relatório do Tribunal de Contas não põe em causa o mérito em si mesmo do programa, reconhecendo que este representou uma poupança entre os 24 e os 124 euros por aluno, abrangendo mais de meio milhão de estudantes. E que "todos os envolvidos, em especial as escolas e o IGeFE, I.P., evidenciaram um desempenho de justo relevo por terem possibilitado a implementação da medida em apenas três meses, em período de férias escolares, abrangendo 723 escolas [agrupamentos de escolas], 1,8 mil livrarias e quase 410 mil encarregados de educação".

Um reconhecimento sublinhado na nota à imprensa do Ministério da Educação, para o qual o relatório do TdC acaba por confirmar que esta medida foi "um passo firme no sentido do pleno acesso à educação e equidade na escola pública".

Fonte: Diário de Notícias