Suprimentos - Armando Triunfante
I – FINANCIAMENTO DA SOCIEDADE
A sociedade comercial constitui atualmente, parece indiscutível, a mais importante estrutura jurídica da empresa (2). O seu papel na economia moderna não pode ser relativizado. Permite aos seus sócios a obtenção do lucro (art. 980.º CC), resultante da prossecução de um dado objeto [art. 9.º n.º 1, al. d) e 11.º CSC]. Naturalmente que a continuação de tal atividade pressupõe um financiamento adequado da atividade societária, logo no momento geracional da sociedade, mas também ao longo de toda a vida da corporação.
Incumbe aos sócios, em primeira linha, proporcionar à sociedade os meios necessários ao desenvolvimento do objeto social (3). Esse financiamento ocorre, desde logo, através do capital social, realizado mediante cumprimento da primeira e principal obrigação dos sócios – a entrada (4). Esta obrigação é verdadeiramente fundacional, uma vez que não existe sociedade comercial sem entradas, e não existe qualidade de sócio sem o cumprimento desse dever (5). A entrada não esgota, no entanto, a possibilidade de financiamento da sociedade. Podem os sócios, em dado momento e de acordo com as circunstâncias do caso (da sociedade ou dos próprios sócios) optar por outras figuras: suprimentos; mútuos (que não assumam a qualidade de suprimentos); prestações acessórias; prestações suplementares. Como é natural, cada uma destas hipóteses de financiamento societário tem o seu regime próprio, apresentando vantagens e desvantagens. No entanto, apesar do referido, o legislador não se “pronuncia” sobre os méritos de cada figura. Dir-se-ia, inclusivamente, que o legislador é neutral relativamente às diferentes figuras, defendendo a doutrina, a propósito desta temática, a existência de um “princípio de liberdade de escolha dos meios de financiamento mais adequados” (6). Ainda que, historicamente, algumas destas figuras pudessem ter uma conotação negativa (7), essa visão não apresenta reflexos na legislação vigente.
A opção de financiamento pode passar por uma de duas grandes alternativas que apresentam uma importância indesmentível, desde logo contabilisticamente.
Pode, em primeira linha, estar em causa capital próprio. O financiamento da sociedade por esta via assume, em regra, de modo mais ou menos vincado, algumas características: é fornecido pelos sócios; permanece na sociedade, normalmente, por tempo indeterminado; a remuneração não é certa, dependendo da existência de lucros; responde pelas dívidas sociais, pois na insolvência ou liquidação da sociedade só pode ser restituído depois de pagos todos os credores (suportando, deste modo, o risco de insucesso da empresa societária). Como exemplos de capital próprio temos o capital social, os ágios (8), as reservas, as prestações suplementares (9) e (em certos casos) as prestações acessórias (10).
Já o capital alheio apresenta características distintas, praticamente opostas: é geralmente fornecido por terceiros (que assumem a qualidade de credores); a sua disponibilização à sociedade ocorre, em regra, de forma transitória; normalmente implica remuneração, sendo esta paga independentemente da produção de lucros pela sociedade. O capital alheio constitui dívida da sociedade, razão pela qual se inscreve no “passivo”.
II – SUPRIMENTOS
O contrato de suprimento é, como demonstra a realidade societária, uma das formas de financiamento das sociedades mais usadas (11). A razão para esta importância reside nas vantagens que o suprimento assume para quem o realiza – o sócio. Podem os sócios investir na sociedade, beneficiando da obtenção de juros remuneratórios, sem aumentar a responsabilidade, pois podem sempre pedir a restituição dessas quantias. O credor do suprimento é então um verdadeiro empresário, investindo na empresa, lucrando com esse investimento, mas evitando, pelo menos até certo ponto, o risco empresarial (12).
Com o suprimento, o sócio poderá exigir o reembolso do crédito a qualquer momento (antes da insolvência ou liquidação), ou reclamar o seu pagamento na insolvência ou liquidação da sociedade. Adicionalmente, o suprimento coloca o respetivo credor numa posição de vantagem muito significativa relativamente aos demais credores da sociedade: uma vez que o suprimento está associado à qualidade de sócio, existe sempre o risco desse sócio/credor poder influenciar a administração, nomeadamente no que concerne ao reembolso antecipado do crédito de suprimento. Por outro lado, a condição de sócio permite também a este credor beneficiar de informação privilegiada sobre a condição social e, com isso, determinar o melhor momento para exigir o reembolso.
Esta realidade determina, como se mostra evidente, o incremento do risco dos demais credores, uma vez que parte do património social (que permite a exploração do objeto social) corresponde a dívidas da sociedade junto dos sócios (na qualidade de credores) (13). Sócios esses que, como se viu, poderão estar em posição de determinar o reembolso do seu crédito em condições mais favoráveis.
Não admira, consequentemente, que os sócios possam sentir-se tentados em optar por financiar a sociedade através dos suprimentos em alternativa ao próprio capital social. Existem, então, muitas sociedades caracterizadas pele fenómeno da subcapitalização formal (ou nominal), ou seja, um valor diminuto, claramente insuficiente, do capital social para as necessidades da própria corporação (os sócios suprem as necessidades de capital da sociedade, mas através de suprimentos e não de realização de entradas para o capital social) (14). Atendendo ao exposto, mostra-se necessário prever uma disciplina própria para os suprimentos que permita proteger os credores restantes desta situação. Foi o que fez o legislador nacional, consagrando algumas normas cujo objetivo é, precisamente, tutelar a sociedade e os credores sociais dos riscos próprios dos suprimentos (15).
Fazendo alusão à dicotomia já referida entre capital próprio e capital alheio, o suprimento cai na categoria de capital “quase próprio” (16), assumindo, portanto, em função das suas características, uma natureza “mista”. Formalmente constitui capital alheio (contabilisticamente são inscritos no passivo do balanço, rúbricas 2531 e 2532 do Código de Contas), mas materialmente aproxima-se muito do capital próprio, desempenhando funções próximas do próprio capital (17). Na verdade, acabam por responder pelas dívidas sociais [na insolvência ou dissolução, só podem ser reembolsados aos sócios, depois de satisfeitas todas as dívidas sociais – art. 245.º n.º 3, al. a)].
Vamos, agora, estudar o regime do suprimento.