Tem apoio judiciário? Estado quer reter 33% se receber uma indemnização
Para já é só uma proposta do Governo, que quer alterar o regime de acesso aos tribunais e pretende compensar o Estado dos custos que tem com a protecção jurídica de quem beneficiou do apoio.
O Estado quer ser compensado dos custos que tem com quem precisa de ajuda por não ter condições económicas para suportar as despesas de acesso aos tribunais. Como? Congelando, de forma automática, um terço do valor que os beneficiários do apoio judiciário venham a receber no âmbito de acções em que tenham ficando isentos das taxas de Justiça ou em que tenham tido um advogado pago pelo erário público.
Esse montante (um terço do que as pessoas recebam, por exemplo, em indemnizações) ficará cativo até que seja apurado qual o valor das custas. Se corresponder a mais do que o Estado suportou, o remanescente é devolvido ao beneficiário.
Um exemplo: alguém pede apoio judiciário para interpor uma acção contra o responsável por um acidente de viação que lhe deixou problemas graves de saúde. O beneficiário do apoio, que não pagou taxas de Justiça nem o advogado que a Ordem dos Advogados lhe atribuiu, ganha o processo, tendo direito a receber 100 mil euros. Destes, 33 mil serão retidos como uma espécie de caução até se apurar que parte cabe ao Estado nas contas finais do processo. Se se concluir que as despesas correspondem a três mil euros, então o Estado devolve-lhe os restantes 30 mil euros.
Esta é uma das alterações ao regime jurídico do acesso ao direito e aos tribunais, prevista no anteprojecto da proposta de lei apresentada pelo Ministério da Justiça, após as sugestões feitas por um grupo de trabalho em que estiveram representadas as várias profissões que intervêm ou vão passar a intervir no sistema de acesso ao direito, como advogados, agentes de execução e notários.
A proposta, a que o PÚBLICO teve acesso, foi enviada no início deste ano a vários parceiros da área da Justiça, nomeadamente aos conselhos superiores dos juízes e do Ministério Público, às ordens dos advogados, dos notários e dos agentes de execução, para cada uma das instituições dar o respectivo parecer.
Na sequência destas análises a proposta pode ter sofrido algumas alterações, tendo, entretanto, sido entregue na Presidência do Conselho de Ministros com a indicação de que o seu agendamento é urgente. Por isso, o PÚBLICO confrontou o Ministério da Justiça com o conteúdo de algumas das alterações previstas, tendo este recusado fazer qualquer comentário sobre a matéria, já que a proposta ainda não foi aprovada em Conselho de Ministros.
Contudo, ao que o PÚBLICO apurou, a proposta do reembolso automático continua em cima da mesa. O diploma ainda terá que ir ao Parlamento, onde terá que ser discutido e aprovado antes das eleições legislativas de Outubro.
A lei em vigor já prevê uma forma de o Estado se fazer compensar dos gastos que teve com o apoio judiciário caso o seu beneficiário venha a adquirir “meios económicos suficientes”, mas a compensação não é automática e tem várias salvaguardas.
No caso do beneficiário do apoio vencer a acção judicial, diz a actual lei, “presume-se aquisição de meios económicos suficientes”, salvo se, “pela sua natureza ou valor”, o montante que o beneficiário recebe no âmbito da acção não o fizer perder o direito ao apoio judiciário. O próprio juiz que decidiu a acção onde foi pedido o apoio judiciário pode condenar o beneficiário do apoio a compensar o Estado num determinado montante. Antes, deve pedir um parecer à Segurança Social que avalia quem está em condições de receber a protecção jurídica do Estado.
Mas há muitos juízes que se consideram incompetentes para definir esta compensação ou simplesmente optam por não o fazer. O Ministério Público também pode intentar uma acção autónoma para reembolsar o Estado dos montantes gastos. Contactado pelo PÚBLICO, o Ministério da Justiça não respondeu que verbas o Estado conseguiu reaver neste âmbito. Também a Procuradoria-Geral da República não conseguiu, em tempo útil, dar qualquer número sobre as acções interpostas com este objectivo.
Pedro Loureiro, que representou a Ordem dos Advogados no grupo de trabalho que analisou a alteração do regime de acesso aos tribunais, diz que a instituição não concorda com um mecanismo de reembolso automático. “É preciso perceber em cada caso se a pessoa ganhou de facto alguma coisa com a causa ou simplesmente viu um dano que teve ser ressarcido”, argumenta o advogado.
Voltando ao caso do acidente de viação, Pedro Loureiro considera que “se a pessoa recebeu uma indemnização para compensá-lo dos rendimentos de trabalho que deixou de auferir em virtude do acidente, está apenas a receber o que tinha direito, o que não significa que esteja numa situação económica melhor do que antes do dano”.
Já o bastonário da Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução, José Carlos Resende, considera justo que se a pessoa vai receber dinheiro possa compensar o Estado pelos gastos que teve com a sua defesa. Mesmo que isso signifique receber menos. “Os que não beneficiam do apoio judiciário também gastam dinheiro com o advogado e a taxas de Justiça para conseguirem fazer valer os seus direitos”, afirma.
Consulta prévia
Outras das novidades da proposta do Governo é obrigar os requerentes do apoio judiciário a ir a uma consulta com um advogado nomeado pela Ordem, antes de intentarem uma acção em tribunal. Esse defensor vai ter que avaliar se existe fundamento legal ou factual para a pretensão e, face à existência de outros processos propostos pela mesma pessoa, verificar se há indícios de “uso indevido do sistema”.
Por uma questão de eventual conflito de interesses, este advogado não vai poder ser nomeado para intentar a tal acção, se tal vier a ocorrer. A sua avaliação sobre a existência ou não de fundamento é comunicada à Ordem dos Advogados e, se for no sentido de não existir base legal para interpor a acção, o requerente do apoio pode reclamar junto do respectivo Conselho Regional da Ordem. A proposta de lei vai criar Comissões de Apoio Judiciário, grupos a criar no seio dos conselhos regionais, para esse efeito.
Sobre os novos quatro escalões de protecção jurídica, Pedro Loureiro, considera que o objectivo era alargar o número de beneficiários, mas diz que não está certo de que tal venha a ocorrer, porque a forma como os rendimentos vão ser calculados vai mudar. O advogado considera que só a análise comparativa de casos concretos pode permitir tirar conclusões.
Fonte: Público