Litígios para partilhar bens vão poder ser resolvidos nos tribunais ou nos notários
Governo quer fazer regressar parte dos processos de inventário aos tribunais. Na maioria dos casos, os cidadãos vão poder escolher entre os tribunais e os cartórios notariais.
Os cidadãos vão passar a poder escolher se querem resolver os litígios para partilha de bens decorrente da morte de uma pessoa ou de um divórcio – os chamados processos de inventários – nos tribunais ou nos cartórios notariais. É pelo menos essa a intenção do Governo expressa no anteprojecto de uma proposta de lei que altera o regime existente desde Setembro de 2013, que atribuiu aos notários a responsabilidade para dirigir e decidir estes processos.
Na altura, essa mudança foi justificada por os litígios para partilha de bens serem dos que casos que mais demoravam a resolver nos tribunais. O objectivo era agilizar estes processos e descongestionar os tribunais. Em 2012, o ano anterior ao arranque da reforma, segundo uma auditoria da Inspecção-Geral dos Serviços da Justiça, a duração média destes processos nos tribunais de primeira instância era de 44 meses, ou seja, mais de três anos e meio. Isto sem contar os recursos que se poderiam seguir.
Segundo a proposta, a que o PÚBLICO teve acesso, os tribunais e os notários passam a ter uma “competência concorrente”, o que permite aos utentes optar por recorrer ao tribunal ou ao cartório notarial, conforme o juízo que estes façam, no caso concreto, “sobre a qualidade, a eficiência e celeridade daquele serviço prestado pelo juiz ou pelo notário”.
No entanto, vão passar a existir casos específicos em que os litígios de partilha de bens têm que correr obrigatoriamente nos tribunais. É o caso em que o inventário dependa de outro processo judicial – por exemplo, uma acção de reconhecimento de paternidade – ou nos casos em que um dos herdeiros se encontra em parte incerta ou sofra de uma incapacidade.
Por outro lado, se o litígio de partilha de bens for apresentado junto de um notário, os interessados que representem mais de metade da herança podem pedir que a acção seja remetida para tribunal. Os notários vão manter a possibilidade de enviar os processos para os tribunais quando a "natureza da matéria litigiosa ou a sua complexidade, quer de facto, quer de direito, tornar inconveniente a sua apreciação por órgão não jurisdicional".
O projecto – que foi remetido para organismos que representam notários, advogados ou magistrados que já deram ou vão dar pareceres – poderá sofrer pequenas alterações até ser aprovado em Conselho de Ministros. Depois ainda seguirá para o Parlamento, onde terá que ser discutido e aprovado. O Ministério da Justiça, que se recusou a disponibilizar a proposta, não faz estimativas sobre a demora do processo legislativo. “Não é possível procedermos à indicação de um prazo estimado para a apresentação desta proposta de lei na Assembleia da República”, afirma o ministério liderado por Francisca Van Dunem. O projecto partiu de um relatório apresentado por um grupo de trabalho criado pela ministra em Maio de 2018 para rever o regime de inventário.
Com a mudança, os notários passam a poder escolher se querem ou não exercer competências nesta área, o que não acontecia até agora. “Considera-se desrazoável impor a todos os notários o encargo de proceder ao tratamento do inventário”, lê-se no preâmbulo do anteprojecto.
Esta possibilidade vem ao encontro de uma reivindicação dos próprios notários que num inquérito realizado pela respectiva ordem, no final do ano passado, votaram maioritariamente a favor de que a tramitação dos inventários ficasse dependente de uma inscrição facultativa. Dos 433 notários existentes, votaram 393 e destes 84% concordou que os notários deviam poder escolher se se decidem ou não estes litígios. Quase 80% defendeu ainda que quem aceita a competência devia poder limitar o número de processos que recebe.
Esta possibilidade não ficou expressa no anteprojecto, prevendo a proposta que a Ordem dos Notários fica responsável por elaborar uma lista dos notários que pretendam processar os inventários, uma informação que terá que ser disponibilizada no seu site.
Apesar de ter sugerido alterações que não foram acolhidas, o actual bastonário dos notários, Jorge Silva, mostra-se genericamente de acordo com as mudanças que o Governo pretende fazer. Mas está preocupado com a morosidade da alteração do regime, insistindo que é essencial que a reforma seja implementada no primeiro semestre deste ano.
“Os notários com excesso de pendências vão continuar a receber processos, o que contribuirá para o aumento da lentidão na sua tramitação”, alerta Jorge Silva, que lembra que há notários “assoberbados”. O exemplo mais flagrante é o notário de Ponta Delgada, nos Açores, o campeão de processos de inventário no país, que, até final de Junho de 2017, os últimos dados disponíveis segundo o Ministério da Justiça, tinha recebido 387 litígios para partilha de bens, 54 dos quais concluídos nessa altura. Isto porque nos Açores há várias ilhas sem notário (Corvo, Graciosa, São Jorge e Santa Maria), o que faz com que os casos desaguarem em Ponta Delgada. A inexistência em 92 municípios de cartório notarial privado - especialmente nos distritos de Portalegre, Beja, Évora e nos Açores - é um dos motivos adiantados no preâmbulo do diploma para o regresso parcial dos inventários aos tribunais.
Jorge Silva lembra ainda que alguns investimentos na plataforma informática onde são processados os litígios de partilha de bens estão à espera das novas regras e que a incerteza contribui para “um agudizar das tensões entre os vários agentes da justiça”.
O bastonário da Ordem dos Advogados, Guilherme Figueiredo, assume-se com um dos principais promotores desta mudança, já que nunca concordou que os notários assumissem a direcção dos inventários. E considera positivo que o cidadão possa escolher. "Assim responsabiliza-se o cidadão pela escolha que faz", afirma. Além de insistir que na maior parte dos casos os notários evitam decidir estes casos, o bastonário dos advogados defende que há problemas de fundo: “Os processos de inventário são dos mais litigiosos que existem. E a cultura dos notários é de convergência de vontades e não de decisão litigiosa”.
Fonte: Público