Portugal já avançou meio caminho no combate à violência doméstica
Relatório de grupo de peritos reconhece que Portugal deu passos significativos contra a violência doméstica, aplicando a Convenção de Istambul. Mas as falhas são várias e ainda há muito trabalho a fazer.
O caminho do combate à violência doméstica e de género está traçado — falta percorrê-lo efectivamente. No papel, existe um compromisso claro com o combate à violência doméstica, mas os planos ainda falham no terreno: não chegam a todo o país, nem sempre têm apoio suficiente e não são abraçados da mesma forma por todos os profissionais que lidam com as vítimas. A protecção das vítimas de violência doméstica nem sempre encontra par entre quem regula as responsabilidades parentais divididas com os agressores. Falta também um reconhecimento, no terreno, de que a violência doméstica tem uma natureza de género, que não é o único tipo de violência de género, e que é preciso actuar de forma sistémica.
São estas as principais conclusões do relatório publicado nesta segunda-feira em que Portugal tem nota positiva do GREVIO, o grupo de peritos que avalia a aplicação da Convenção de Istambul — o compromisso dos países do Conselho da Europa para a eliminação da violência doméstica e de género. Mas ficam alguns alertas: entre as 55 recomendações, 15 são relativas a áreas em que “é preciso uma actuação imediata” — leia-se urgente — para garantir que Portugal cumpre a Convenção de Istambul, seja em termos legislativos como na execução da lei.
A avaliação da aplicação da convenção, ratificada por Portugal em 2014, começou em meados de 2017. Em Março do ano passado, o comité GREVIO visitou o país para encontros com governantes e ONG e para algumas visitas no terreno, um diálogo que resultou num relatório preliminar de avaliação que tem agora a sua versão definitiva. O relatório agora publicado funciona como um guia que deve ser visto pelas autoridades e pela sociedade civil como uma espécie de mapa sobre os pontos que é preciso revisitar.
No topo das prioridades está a eliminação dos entraves a que as mulheres denunciem a violência de que são vítimas e a necessidade de que as queixas dêem origem a acusações, de que estas se convertam em condenações e de que as condenações sejam adequadamente punidas. “Baixas taxas de condenação contribuem, de forma geral, para baixas taxas de denúncia”, sublinha o relatório, no qual os peritos manifestam preocupação com o recurso frequente à suspensão provisória dos processos e também dúvidas sobre se todos os casos de violência doméstica estão a ser devidamente classificados e punidos como tal.
Os dados disponíveis, apesar do gradual aperfeiçoamento da recolha, são insuficientes para apurar se todas as medidas de prevenção e outras provisões no sentido de proteger as vítimas — que o GREVIO aplaude — estão a ser cumpridas e, mais do que isso, se estão a surtir algum efeito. É preciso também fazer alguns ajustes à lei, não apenas no âmbito da violência doméstica mas também de outras formas de violência baseada no género, como o crime de violação, que os peritos consideram que deve ser revisto para centrar-se na “ausência de consentimento livre da vítima”.
E, como já tem sido reconhecido pelo Governo, que tem feito esforços nesse sentido através da acção da Secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade, é preciso reforçar a formação especializada dos vários profissionais que intervêm nestes casos, nomeadamente forças de segurança, oficiais de justiça e magistrados, profissionais de saúde e educação, técnicos de serviços sociais e de protecção de menores.
Violência doméstica e tribunais de família
No relatório, lê-se que é preciso "rever a definição de vítima na legislação" para reflectir o que consta na Convenção e "examinar as implicações da actual configuração do estatuto de vítima no acesso das vítimas aos seus direitos". E que passe a ser ponto assente que também as crianças que são testemunhas de violência doméstica possam ser consideradas vítimas — e afastadas dos agressores.
Aliás, no campo judicial, há um ponto que é veementemente abordado no relatório: as falhas na interacção entre os tribunais judiciais, onde estão os processos de violência doméstica, e os tribunais de família e menores, onde estão os processos relacionados com as responsabilidades parentais. Ao GREVIO chegaram situações que demonstram a urgência de haver coordenação entre os tribunais: mães obrigadas pelo tribunal de família a levar a criança para visitar o pai à prisão, onde estava detido por agressão à mulher, descurando o impacto que este contacto tem na vítima; ou casos em que o tribunal de família entregou ao pai — agressor — informação sobre a casa-abrigo onde a mãe estava, pondo em causa a segurança não apenas da mãe mas das outras mulheres e crianças acolhidas.
É preciso ter em conta, lê-se no relatório, que episódios de violência doméstica não podem ser considerados simples conflitos entre os pais, já que existe um “desequilíbrio de poder” que impede uma comunicação em pé de igualdade necessária para a responsabilidade parental partilhada, na qual é desejável que “os pais possam comunicar e negociar livremente todas as questões relacionadas com os filhos”.
Outra recomendação com carácter de urgência refere-se aos programas para agressores de violência doméstica, que devem ver um aumento tanto em número como na diversidade de programas, e serem promovidos com mais frequência, exigindo-se resultados concretos, por exemplo, para que uma medida de coacção seja levantada.
Igualdade ainda não chega a todo o país
Uma das recomendações salientadas refere-se à necessidade de aplicar medidas efectivas para “harmonizar e monitorizar a aplicação de planos locais”, no âmbito da violência doméstica ou da igualdade de género, de forma mais lata. O GREVIO considera que, apesar do progresso alcançado, a rede nacional de apoio a vítimas de violência doméstica, estabelecida em 2009, “ainda não atingiu a sua missão de propiciar uma cooperação verdadeiramente efectiva entre todos os parceiros relevantes”, isto é, serviços sociais, de protecção de menores, forças de segurança, justiça e profissionais de saúde. O Governo tem implementado nos últimos anos planos locais que prevêem a coordenação da administração pública com ONG especializadas, mas apenas recentemente têm entrado em vigor planos mais robustos que exigem compromissos concretos.
É preciso conferir mais poderes e recursos à Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), responsável por coordenar esforços entre os vários ministérios e entidades do Estado, e reforçar o financiamento para passar dos planos à prática. Isto implica não apenas aumentar o reforço de recursos humanos na administração pública — com formação adequada e especializada — mas também uma mudança no apoio que é dado às ONG e outras instituições que, na prática, estão a cargo de grande parte das respostas especializadas.
“Todas as casas-abrigo e respostas de emergência são financiadas pelo Estado e geridas por ONG e entidades privadas”, como a Santa Casa da Misericórdia, relata o documento. Mas há aqui outro problema: é preciso “assegurar que todos os serviços passem de uma abordagem focada na assistência — onde o controlo patriarcal do companheiro abusivo tende a ser substituído pelo controlo da instituição — para uma cultura de empoderamento”. A rede de apoio a vítimas de violência doméstica, afirmam os peritos, é dominada por entidades que “tardam em adaptar as suas práticas”, e as abordagens inovadoras com perspectiva de género “não são sempre prontamente aceites nos outros locais”.
O grupo de peritos recomenda ainda que se dê destaque nos planos de igualdade (algo que já se verifica na actual estratégia nacional), aos problemas das mulheres em situação de particular vulnerabilidade — crianças e idosas, com deficiência, de minorias étnicas, migrantes e refugiadas, em situação de pobreza extrema, lésbicas e transgénero — e pede que se reforce, de igual forma, a perspectiva de género nos planos de acção dedicados a cada um desses grupos que sofrem múltiplas discriminações.
“Violência de género contra mulheres”
Uma das expressões que mais vezes aparece no relatório, em particular quando são referidas as incongruências entre o que está na lei e a forma como esta é aplicada, é a falta de reconhecimento da violência contra mulheres com uma perspectiva de género.
A Convenção de Istambul versa sobre várias formas de "violência de género", caracterizada como aquela que atinge as mulheres de forma desproporcional ou especificamente por serem mulheres. Além da violência doméstica, da violação e do abuso sexual, são abordados fenómenos como o assédio sexual no trabalho e nas ruas ou as práticas nefastas tradicionais, como os casamentos forçados e a mutilação genital feminina, entre outros.
A Convenção de Istambul reconhece que os homens também são vítimas destas formas de violência, mas defende como essencial reconhecer que a violência de género contra as mulheres parte de uma raiz histórica de desigualdade de poder na sociedade, simbólica e muitas vezes material, entre homens e mulheres. A desigualdade gera discriminação, e a vulnerabilidade que resulta dessa discriminação potencia formas particulares de violência. É por isso que não apenas se pedem medidas para proteger e apoiar as vítimas, mas também se exige a prevenção destas formas de violência, nomeadamente através da educação livre de estereótipos de género.
Financiamento de longo prazo
O foco na necessidade de programas de longo prazo com “financiamento adequado e sustentável” é recorrente no relatório. Nos últimos anos, foi lançada uma série de projectos de apoio especializado para os quais ainda não há garantias concretas de continuidade nos mesmos termos. O GREVIO chama a atenção para a necessidade de “financiamento consistente e contínuo”, para que a actuação seja sustentável e completa, em particular em matérias como o combate a práticas nefastas como a mutilação genital feminina e os casamentos forçados.
Além de alertar que a violência doméstica deve ser abordada como uma forma de violência baseada no género, outra tecla em que o GREVIO bate várias vezes é a de que a violência doméstica não é a única forma de violência de género, e é preciso traçar estratégias igualmente robustas para outros crimes que afectam as mulheres de forma exclusiva ou desproporcional.
O relatório chama a atenção para lacunas na recolha de dados que permitam conhecer a realidade de outros crimes, como o stalking ou os casamentos forçados. Sobre o fenómeno dos casamentos forçados, proibidos na lei e uma das práticas nefastas abrangidas pelo actual plano de acção contra a violência contra as mulheres, pouco ou nada se sabe. As ONG no terreno, descreve o relatório, lamentam que não exista, actualmente, “nenhum mecanismo para denunciar casos ou um observatório dedicado à recolha de dados sobre a prevalência desta forma particular de violência”.
No que toca à mutilação genital feminina, outra prática nefasta tradicional abrangida pelo plano, o GREVIO aplaude o pioneirismo de Portugal na abordagem do fenómeno — com planos nacionais há mais de uma década —, mas chama a atenção para o facto de apenas um caso ter chegado a tribunal, tendo sido posteriormente arquivado.
Desconhece-se também quantos pedidos de asilo Portugal recebeu por razões de violência de género, nem tão pouco se foram aceites — uma lacuna na recolha de dados que precisa ser corrigida.
Fonte: Público