Aumentam as investigações por assédio sexual
Inquéritos sobem há três anos seguidos, mas poucos terminam em acusação e são raras as condenações
As investigações por assédio sexual subiram em 2018 pelo terceiro ano consecutivo. De acordo com o Ministério Público (MP), foram abertos 903 inquéritos por importunação sexual, crime no qual se inclui o assédio, mais 33 do que em 2017.
O crescimento teve início em 2016, e desde então verifica-se um aumento de 37%. De 2015 a 2018 foram abertos um total de 3165 processos, mas apenas em 354 casos foi deduzida acusação. É em 2017, ano em que explode nos EUA o “Me Too” — movimento contra o assédio sexual –, que se dá o maior aumento de queixas (ver gráfico). Ainda assim, em Portugal o impacto foi morno.
Também as condenações sobem, mas a um ritmo lento. Segundo dados da Direção-Geral da Política de Justiça (DGPJ), em 2016, último ano de que existem dados, 41 homens foram condenados, apenas mais três do que no ano anterior. A diferença, porém, é notória se se recuarmos mais no tempo: em 2007 apenas 12 pessoas tinham sido condenadas.
Os especialistas acreditam que estes números ficam muito aquém da realidade. “É preciso autonomizar o crime de assédio sexual porque há situações que ficam fora do crime de importunação sexual. Isso levaria necessariamente a um aumento das queixas. Esta é uma situação que tem de ser vista com outra seriedade. Enquanto este não for um assunto público, as próprias mulheres vão ter dificuldade em fazer denúncias”, defende Aurora Rodrigues, procuradora da República jubilada e vice-presidente da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas. Em Portugal, o assédio sexual é considerado uma contraordenação grave no Código de Trabalho, porém não está autonomizado no Código Penal. “Há muitas situações, inclusive nas relações de trabalho, que ficam de fora do que está previsto no Código do Trabalho”, continua Aurora Rodrigues.
O estudo mais recente sobre o fenómeno — “Assédio Sexual e Moral no Local de Trabalho em Portugal”—, do Centro Interdisciplinar de Estudos de Género da Universidade de Lisboa, revela que 12,6% dos portugueses foram vítimas de assédio sexual no trabalho. A maioria das vítimas é mulher, e os agressores são quase sempre do sexo masculino.
À Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) chegam poucas denúncias. Nos últimos sete anos não foi feita nenhuma advertência e em 2017 foram registadas apenas duas infrações. “A recolha de evidências ou provas para efeito de adoção de procedimentos no âmbito da temática do assédio, em particular assédio sexual, é um processo complexo, ao nível da obtenção de meios de prova sobre os comportamentos indesejados reportados”, justifica fonte oficial da ACT.
Enquanto que nos EUA o ‘Me Too’ se tornou um movimento social (ver caixa), em Portugal o fenómeno passou quase despercebido. “Sabemos que existe, já ouvi relatos em variadíssimos contextos, mas ainda ninguém falou em aberto. Adaptamo-nos a cenários hostis”, explica Inês Ferreira Leite, professora de Direito da Faculdade de Direito de Lisboa e membro da associação feminista, Capazes.
Para Elisabete Brasil, da União de Mulheres Alternativa e Resposta, o problema reside na lei que continua a deixar as vítimas numa posição enfraquecida, apesar de ter vindo a ser alterada desde 2015, através de introduções feitas a propósito da Convenção de Istambul — destinada a combater a violência contra as mulheres.
“Houve algumas mexidas no Código Penal, que obrigaram a criar novos ilícitos nos crimes de género, como na mutilação genital feminina, mas isso não se refletiu nas repercussões aos abusadores”, frisa. É do entendimento da ativista que as mulheres quando se preparam para apresentar queixa percebem que “existe uma dificuldade do sistema em protegê-las”, quer por impotência quer pela moldura penal. “As vítimas ainda são as que ficam a perder”, conclui Elisabete Brasil.
Inês Ferreira Leite concorda que as vítimas ficam “isoladas”, mas justifica a situação com o “conservadorismo da sociedade.”
TABU NAS EMPRESAS
As denúncias públicas colocaram o tema na agenda mediática e política e abriram o debate na sociedade sobre o que é assédio sexual. Na resposta, as empresas de Wall Street começaram a não querer contratar mulheres e a adotar posturas controversas como proibir jantares entre colegas ou reuniões à porta fechada.
Por cá, as empresas portuguesas ficaram à porta da discussão. Contactadas pelo Expresso, as principais empresas de recrutamento dizem não ter sentido efeitos ‘pós-Me Too’. “Pela nossa experiência e no nosso campo de atuação, não temos testemunhado situações mais delicadas relacionadas com este tema, mas é percetível que tem aumentado a sensibilidade de muitas pessoas. Nos homens, que estão mais cuidadosos, não só no conteúdo, mas também na forma como atuam e comunicam. Nas mulheres, que se têm sentido mais protegidas e seguras para exigir um tratamento correto”, diz Álvaro Fernández, diretor-geral da Michael Page, empresa especializada em recursos humanos.
Fala-se do assunto, mas não se vai além disso. “Já me aconteceu pedirem-me uma candidata em casos em que a maioria da equipa era composta por homens. Não sabiam que também isso é ilegal, não se pode discriminar com base no género”, conta Maria da Glória Ribeiro, fundadora da Amrop, empresa especializada em executive search, atração e seleção de executivos. Para esta especialista, ainda existe “um tabu” na sociedade portuguesa sobre o tema, fazendo com que “algumas coisas se tornem aceitáveis”.
#METOO, DE HOLLYWOOD PARA O MUNDO
A expressão “me too” nasceu em 2006 pela mão da ativista Tarana Burke, mas só em outubro de 2017 se tornou viral. Após a denúncia pública dos abusos sexuais cometidos durante 30 anos pelo produtor de Hollywood Harvey Weinstein, a atriz Alyssa Milano utilizou a hashtag #metoo no Twitter para incentivar outras vítimas a apontarem os agressores. Atrizes como Jennifer Lawrence, Gwyneth Paltrow, Ashley Judd e Uma Thurman seguiram-lhe o exemplo, a hashtag tornou-se viral e foi além delas. Desde então, mulheres de todo o mundo reportaram casos de abusos sexuais. E também homens, como o ator Anthony Rapp, que acusou Kevin Spacey de o ter tentado violar aos 14 anos. Em Hollywood foi criado o fundo Time's Up para apoiar as vítimas, e o assunto tornou-se central na agenda política e mediática. Depois do cinema, as denúncias atingiram a moda, a política, o desporto, a Justiça. A nomeação de Brett Kavanaugh para o Supremo Tribunal americano ficou marcada pela audição da psicóloga Christhine Blasey Ford, que acusou o juiz de ter tentado violá-la na adolescência. Mas também surgiram críticas. Um grupo de intelectuais franceses, que incluía Catherine Deneuve, censurou o puritanismo do movimento. E Asia Argento, outra cara do #metoo, foi acusada de assediar um jovem. Nas redes sociais apareceu outro movimento, o #himtoo, dos homens que dizem ser acusados injustamente. Kevin Spacey começa a ser julgado na segunda-feira, 7 de janeiro, e Weinstein vai a tribunal em março.
Fonte: Expresso