Mais de cem crianças fugiram da guarda do Estado

Cinco crianças romenas desapareceram de lares de acolhimento. Vítimas de tráfico têm atenções de segurança especiais, que podem passar pelo ensino doméstico

No ano passado, 116 jovens em risco fugiram da guarda do Estado. São as raparigas, na esmagadora maioria entre os 15 e os 17 anos, quem mais foge dos lares, um fenómeno "complexo" e que pode levar a situações graves, como o define o Instituto de Segurança Social no Relatório Casa 2017, e que atinge também crianças em situação de especial perigo: as vítimas de tráfico de seres humanos.

Como noticia o Público desta terça-feira, cinco crianças romenas entre os 12 e os 18 anos, que estavam à guarda do Estado desde o final de 2017, desapareceram e as autoridades não sabem sequer se ainda estão em território português. Quando os pais foram detidos no Porto, os quatro filhos que, desde 2011, seriam forçados a mendigar na rua e a roubar em centros comerciais, foram-lhes retirados. Uma outra criança foi recrutada pelo mesmo casal a partir de 2016.

Como o DN também contou recentemente, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras deteve três adultos na sequência deste caso, que estão ser julgados no Tribunal de S. João Novo, no Porto, por exploração da mendicidade, maus tratos e tráfico de seres humanos. No entanto, os cinco jovens - três raparigas e dois rapazes - que estavam sob tutela do tribunal fugiram do lar de acolhimento e o Público avança que o governo francês já terá lançado um alerta sobre este desaparecimento, o que acontece quando existem suspeitas de exploração por grupos criminosos.

Fátima Serrano, secretária-geral da CrescerSer, associação que acolhe 96 crianças em sete casas em Lisboa, Porto e Leiria, já teve de acompanhar vítimas de tráfico de seres humanos, casos complexos e "muito sigilosos", que obrigam a cuidados especiais. "É feito um trabalho muito estreito com os tribunais, polícias, comissões. Muitas vezes, durante algum tempo nem sabemos o nome dessas crianças e não começam logo a ir à escola. Quando começam a ir são acompanhadas por um funcionário da casa e são dadas instruções para que não possam sair da escola com outras pessoas". Outra solução passa pelo ensino doméstico, que evita que o jovem tenha de se deslocar à escola, acrescenta Júlia Cardoso, diretora técnica do Centro de Acolhimento e Proteção do Sul, casa gerida pela APAV e uma das três do género em todo o país.

Jovens preparados para o acolhimento?
No ano passado, o Estado tinha à sua guarda cerca de 40 menores estrangeiros. República Democrática do Congo e Guiné-Conacri são os principais países de origem destas crianças, enquanto os destinos mais comuns são precisamente a Europa Central. No nosso país, muitos são usados na mendicidade. Apesar de chegarem amedrontadas e de nem sequer se fazerem entender, Fátima Serrano garante que nunca teve casos de fugas entre crianças vítimas de tráfico. "Pelo contrário, notamos uma enorme vontade de serem protegidas. Isso nota-se, por exemplo, quando temos de as acompanhar para depor no Departamento de Investigação e Ação Penal, em que têm medo de represálias".

E quando existem fugas, explica Júlia Cardoso, o caso passa exclusivamente para as polícias. "Embora nunca me tenha deparado com esses casos, há informações sobre fugas, por vezes acontece esses jovens tentarem sair dos locais onde estão. Porque é um ambiente estranho, demora algum tempo até os jovens ganharem confiança".

No caso das crianças romenas desaparecidas, o SEF respondeu ao Público que "após a detenção do grupo criminoso, colaborou com o Tribunal de Família e Menores do Porto e Diretoria da Polícia Judiciária do Porto, no sentido de prestar toda a informação possível" no que diz respeito a "moradas conhecidas e outra informação considerada relevante para eventualmente apurar o paradeiro dos menores". O Tribunal de Família e Menores do Porto já arquivou os processos de proteção abertos quando os adultos foram presos.

O Relatório Casa não detalha quantas crianças vítimas de tráfico fugiram da guarda do Estado no ano passado, mas aponta problemas no acolhimento que podem contribuir, no quadro geral, para estes casos: 20% (23 crianças) dos 116 jovens que fugiram entraram no sistema de acolhimento por via do procedimento de urgência, "o que leva a equacionar se a criança ou o jovem foram devidamente preparados para a situação de acolhimento"; 48% (56) foram deslocalizadas do seu território de origem, "questionando-se sobre a vantagem de deslocalizar as crianças e jovens, provavelmente aqueles com problemas de comportamento"; 62% (72) estava no sistema de acolhimento há um ano ou menos, "o que sugere a necessidade de se investir em programas de acolhimento de integração da criança e jovem nas diferentes respostas de acolhimento".

Fonte: Diário de Notícias
Foto: Tiago Lourenço/Arquivo DN