Crianças vítimas de tráfico abandonadas em Portugal
Estado português tem à sua guarda cerca de 40 crianças apanhadas em redes de tráfico. Segurança Social fala em casos de "grande sofrimento" que merecem atenção especial.
Março de 2017. Acabado de chegar ao aeroporto de Lisboa vindo de Acra, no Gana, um homem levantou dúvidas ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Vinha acompanhado de uma criança de 12 anos que trazia um documento de viagem alemão, documento que fazia parte de bases de dados para apreensão por ter sido furtado em branco. Os inspetores do SEF encontraram ainda um outro passaporte na posse do adulto, neste caso ganês, que pertencia a outro menor. O homem, que garantia estar apenas a acompanhar a criança para o entregar à sua mãe, na Alemanha, já era afinal procurado por delitos relacionados com mão-de-obra ilegal (em Espanha), enquanto a alegada mãe do menor já tinha uma interdição de entrada no Espaço Schengen, por estar relacionada com o tráfico de pessoas na Alemanha. A criança foi entregue a uma instituição e foi uma das dezenas de jovens vítimas de tráfico que se viram abandonados em Portugal no ano passado e tiveram de ficar à guarda do Estado.
São cerca de 40 os menores estrangeiros identificados no relatório Casa, que traça o retrato dos jovens em acolhimento, uma realidade que preocupa a Segurança Social, que pela primeira vez analisou estes casos. República Democrática do Congo e Guiné-Conacri são os principais países de origem destas crianças, enquanto os destinos mais comuns são precisamente a Europa Central. No nosso país, muitos são usados na mendicidade.
Ao todo, o Estado português tinha a seu cargo 46 menores estrangeiros no ano passado, sendo que neste universo apenas cinco crianças afegãs tinham entrado no país ao abrigo de acordos internacionais, informação de fonte oficial do Instituto de Segurança Social, que acrescenta que os restantes casos apontam claramente para situações de tráfico de seres humanos. O próprio relatório Casa refere que muitas destas crianças iniciaram logo à partida os seus percursos migratórios "desacompanhados de qualquer adulto que por eles estivesse responsável, encontrando-se em situação de grave perigo e vulnerabilidade à entrada em território nacional". Outros poderão ter sido acompanhados numa primeira fase por adultos, mas entretanto ficaram sozinhos.
São crianças traumatizadas e "em grande sofrimento", descrevem os técnicos da Segurança Social. São jovens "muito assustados e fragilizados, depois de passarem por situações de grande violência", detalha ao DN a diretora técnica do Centro de Acolhimento e Proteção do Sul, casa gerida pela APAV e uma das três do género em todo o país. "Quando chegam ao centro, estas crianças têm muita dificuldade em confiar nos técnicos, não sabem quem os vai ajudar, tem de ser trabalhada a confiança." Júlia Cardoso admite que estes casos têm aumentado nos últimos tempos, desde logo porque também há mais atenção das autoridades. Além da parte psicológica, o centro intervém em três grandes áreas: na segurança, "porque é importante desde logo proteger as crianças"; satisfazer necessidades básicas, como alimentação e vestuário, mas também garantir cuidados de saúde; e integrá-las no sistema de ensino.
Com destino ao centro da Europa
O último balanço do Observatório do Tráfico de Seres Humanos, publicado há meio ano e de onde foi retirado o caso que arranca este texto, aponta para o mesmo número (40) de crianças resgatadas de redes de tráfico em Portugal. Aqui, são retratadas também realidades de meninas usadas para exploração sexual e de crianças em mendicidade.
Ainda há um ano o SEF deteve no Porto três cidadãos do leste europeu, com idades entre os 21 anos e os 46 anos, por exploração da mendicidade. Nas buscas em duas casas foram identificados 13 estrangeiros, entre adultos, jovens e crianças utilizados na mendicidade. Os menores foram institucionalizados. O DN tentou falar com o Observatório sobre este tema, mas até agora não obteve respostas.
Esta é uma área que os técnicos da Segurança Social consideram prioritária, como se pode ler no relatório Casa. "Sendo menores de idade encontram-se limitados na capacidade para exercer os seus próprios direitos, carecendo da maior e melhor atenção de todos os interventores - políticos, judiciais e sociais -, todos imbuídos na responsabilidade de salvaguardar o seu interesse superior e bem-estar através da proteção especial e assistência a que têm direito, logo após entrada em Portugal."
Há um mês, a Europol alertou para o aumento do tráfico de crianças africanas que passam por Portugal com destino ao Reino Unido e a países da Europa Central, como a Alemanha, França e Bélgica. E se o relatório agora publicado pelo Instituto de Segurança Social não pode ser usado para ter pistas sobre os países de destino destes jovens, deixa poucas dúvidas sobre as suas origens: das 11 nacionalidades mais representadas nos centros de acolhimento nacionais, nove são da África subsariana - República Democrática do Congo, Guiné-Conacri, Serra Leoa, Mali, Congo, Gana, Costa do Marfim e Etiópia.
Em setembro do ano passado, o SEF apanhou mais um destes casos-tipo, também no aeroporto de Lisboa, mas desta vez de um voo que vinha de Dakar, capital do Senegal. Um homem de 35 anos viajava na companhia de uma criança, que afirmou inicialmente ser sua filha, e que apresentava um passaporte que não era o seu, tendo como destino final França. O adulto ficou detido por tráfico de pessoas e o jovem ficou à guarda do Estado.
Depois de passarem pelos centros de acolhimento, explica Júlia Cardoso, estes jovens podem regressar aos seus países ou ser entregues a familiares. Mas se isso não acontecer, o seu futuro passará por continuarem em instituições portuguesas.
Fonte: Diário de Notícias
Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens