Seguranças privados podem apalpar em revistas? Governo quer, IGAI está contra

A alteração à lei da segurança privada passa a contemplar as revistas com apalpação em espetáculos e outros locais de acesso condicionado. A Inspeção-Geral da Administração Interna não concorda com estas "revistas intrusivas".

O parecer da Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) é arrasador para a nova lei da segurança privada, que considera "pouco ambiciosa". E as críticas são ainda mais violentas quando analisa o artigo que permite a "revista pessoal e intrusiva por palpação e vistoria dos bens transportados por cidadãos" no acesso a recintos desportivos, culturais, aeroportos e portos. Porque entende que a proposta de lei do governo - que apelida de "impulso legislativo" - não estabelece limites, apenas prevê e autoriza esta ação por parte dos seguranças privados. Pondo mesmo em causa os direitos constitucionais dos cidadãos.

A IGAI é tão cáustica neste parecer que não se inibe sequer de dar uma lição de português ao ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, apontando mesmo discordâncias verbais entre orações. O que a leva a concluir que o projeto foi feito, talvez, de forma "algo apressada e que inclusive faltou oportunidade para a revisão final".

A proposta de lei deu entrada no Parlamento no início de outubro para discussão e aprovação, mas ainda não foi agendado. No artigo 19.º diz que o pessoal de vigilância pode "realizar revistas intrusivas por palpação e vistoria dos bens transportados pelos visados, devendo, neste caso, estar sob a supervisão das forças de segurança territorialmente competentes". Ou seja, sempre acompanhados de polícias. E também que essas revistas devem ser feitas por pessoas do mesmo género.

Até agora, este tipo de revistas era permitido no âmbito das leis de segurança para aeroportos e eventos desportivos. A partir de agora, passam a estar consagradas na lei de segurança privada e são alargadas a festivais e concertos, e outros acontecimentos de acesso restrito ao público.

A diferença está no verbo: deve ou pode
Considerando, por um lado, que a proposta não regula nem disciplina a medida que permite aos seguranças privados a revista por apalpação, a IGAI diz também que o artigo 19.º deixa em aberto várias questões por responder. A saber: "Em que circunstâncias concretas são tais revistas admissíveis? Porque são de admitir? O que é que está mal hoje ou que insuficiências há hoje no serviço prestado pela indústria da segurança privada que, com as revistas pessoais intrusivas por palpação e a vistoria dos bens transportados pelos visados, possa melhorar e ser mais eficiente?"

Por outro lado, afirma que os contornos do artigo "pode confundir-se com uma medida de polícia, atribuindo a pessoal de vigilância atribuições que a Constituição e a lei reservam exclusivamente para a polícia".

A IGAI aponta ainda críticas ao facto de a proposta de lei permitir estas revistas a qualquer cidadão, independentemente de recair sobre a pessoa qualquer suspeita da prática de ato ilícito ou tão-só porque se encontra num local classificado como recinto desportivo, porto ou aeroporto.

"Quais os direitos constitucionalmente protegidos cujo valor é tão mais elevado e intenso que se sobreponham, justifiquem e comprimam direitos, liberdades e garantias dos cidadãos ao ponto de os sujeitar à indignidade de uma revista pessoal intrusiva por palpação e à vistoria dos bens que transporte na altura, simplesmente porque o cidadão se encontra em alguns dos locais [recintos desportivos, aeroportos, portos] sem que necessariamente recaia qualquer suspeita da prática de ato ilícito ou que se prepare para o fazer?", questiona a IGAI no seu parecer.

Há outra questão de semântica que a IGAI faz questão de sublinhar - o verbo "dever" foi substituído pelo verbo "poder". "Quando se diz na lei atualmente em vigor "devendo, para o efeito, recorrer ao uso de raquetes de deteção de metais e explosivos ou operar outros equipamentos de revista não intrusivos" substituindo-se 'devendo' por 'podendo' atenua-se o carácter obrigatório que hoje resulta da lei". Ou seja, o termo "podendo", entende a IGAI, "não impõe o dever de utilizar meios não intrusivos nas revistas pessoais, quanto muito passa a possibilitar apenas a utilização de equipamentos não intrusivos, o que abre a porta à contingência, critério e discricionariedade de quem procede à revista, de decidir se utiliza, ou não, os meios não intrusivos".

E a proteção dos direitos constitucionais?
Quanto ao facto de essas revistas por apalpação passarem a ser feitas por privados sob a vigilância da polícia, a IGAI também não poupa críticas: "Não deixaria de ser irónico que agora a polícia tivesse de regressar a um domínio de que esteve afastada e que tivesse de o fazer desviando agentes de funções mais consentâneas com os domínios mais nobres da função policial para exercer controlo sobre o trabalho realizado por pessoal de vigilância."

E diz mais: que não se poderá querer comparar este controlo policial, estritamente funcional, com o controlo que é exercício sobre as medidas de polícia, em que os atos policiais são objeto de controlo judicial.

Lança, a este propósito, mais uma série de questões que entende não estarem contempladas no diploma: se os limites impostos à competência exercida foram respeitados, se a atuação policial se enquadrou nos limites constitucionais e legais e, por último, se as medidas de polícia adotadas respeitaram o princípio da proporcionalidade, assegurando que tais ações se enquadram nos limites da lei.

A Inspeção-Geral da Administração Interna considera que o projeto de lei de segurança privada está, pois, "longe de conter uma disciplina rigorosa sobre o modo como deve ser realizada a medida restritiva, não por polícia, mas por pessoal de vigilância".

Em resumo, para a IGAI "a compressão" dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos deve limitar-se ao necessário, e na medida em que esteja em causa proteger outros direitos ou interesses, mas sempre salvaguardando o princípio da dignidade humana. Logo, as revistas por apalpação só devem ser permitidas, quer através da lei quer através das autoridades competentes.

Fonte: Diário de Notícias
Foto: Gustavo Bom/Global Imagens