Discriminação - Conselho da Europa quer órgão independente a investigar violência policial e racismo

Relatório sobre Portugal da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI) do Conselho da Europa é apresentado esta terça-feira em Estrasburgo.

Em Portugal, os comentários racistas e homofóbicos são raramente proferidos por políticos e, quando acontecem na sociedade são condenados publicamente; a violência racista é pouco comum e as autoridades mostram a sua oposição firme a esse fenómeno; Portugal reforçou a legislação contra os discursos de intolerância e ódio e ratificou em 2017 um protocolo que inclui uma proibição global da discriminação.

O relatório da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI) – um organismo independente de monitorização dos direitos humanos dos 47 países do Conselho da Europa –, que é publicado esta terça-feira, enuncia vários aspectos positivos, mas rapidamente expõe o que considera serem lacunas na lei, na prática contra a discriminação motivada pelo racismo ou a homofobia.

A Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR) não é independente, salienta a ECRI que manifesta igualmente dúvidas quanto à independência de entidades como a Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI) ou o Alto Comissariado para as Migrações (ACM), com competências para receber queixas, investigar e propor sanções, mas com dependência directa do Executivo.

De acordo com os elementos que constituem este grupo independente que publicou o último relatório sobre Portugal em Março de 2013, houve desde então muitos progressos nalguns aspectos mas também manifesta preocupação relativamente a outros.

“São inúmeras as acusações graves de violência racista cometida por agentes da polícia. Contudo, nenhuma autoridade reuniu sistematicamente estas acusações e procedeu a um inquérito eficaz para determinar se são ou não verdadeiras. Isto levou ao medo e falta de confiança na polícia, particularmente entre as pessoas de origem africana”, aponta o relatório. O documento cita o despacho de acusação contra os agentes da polícia da Esquadra de Alfragide acusados de racismo e tortura, em Julho de 2017, como exemplo de “uma situação grave de racismo institucional numa unidade da polícia que é tolerada pela sua hierarquia”. Por isso, recomenda a criação de um órgão independente para investigar “as alegações de abusos e racismo pela polícia” em Portugal.

A pedido das autoridades portuguesas, um documento intitulado “Ponto de vista do Governo” é acrescentado num apêndice ao relatório. Nele, a PSP e a IGAI refutam a maioria das conclusões que lhes dizem respeito e IGAI, em particular, apresenta-se como esse órgão independente.

Afrodescendentes e ciganos
Noutro exemplo de discriminação, o documento de mais de 60 páginas relembra que o abandono escolar das crianças afrodescendentes é três vezes maior e existem cinco vezes menos alunos de origem africana na universidade. O desemprego é elevado entre os adultos afrodescendentes e os programas de realojamento resultaram numa segregação espacial e os que não conseguiram beneficiar deles vivem frequentemente ainda em bairros pobres, acrescenta.

A situação das crianças ciganas é “profundamente preocupante”: 90% delas abandonam a escola cedo, frequentemente entre os 10 e 12 anos de idade. Apenas 52% dos homens e 18% das mulheres de origem cigana trabalham.

O relatório conclui que não foram alcançados alguns dos objectivos mais importantes da Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas de 2013. Lembra que 90% das crianças ciganas abandonam a escola antes de concluírem o ensino obrigatório em comparação com 14% da população em geral. E resume: “Os ciganos continuam a sofrer elevados níveis de desemprego, vivem frequentemente em condições de habitação precárias e são ameaçados de despejos forçados. Os afrodescendentes enfrentam problemas semelhantes.”

O ECRI faz duas recomendações prioritárias – relativas ao fim dos despejos forçados ilegais (em bairros degradados) e à execução de despejos legais e dentro das normas internacionais, bem como ao dever do Estado de garantir que todas as crianças ciganas frequentem o ensino escolar obrigatório.

Contudo, é na investigação a casos de violência policial que encontra mais lacunas e na independência das entidades que investigam os actos de violência ou discriminação pelas polícias que admite ter maior desconfiança.

Órgão independente
As críticas mais duras visam justamente as polícias e a IGAI, ao ponto de a ECRI recomendar “a criação de um órgão independente que investigue as alegações de abusos e racismo pela polícia”. No resumo, este grupo de peritos independentes “manifesta a sua preocupação por nenhuma autoridade ter investigado sistematicamente as graves acusações de violência racista cometida por vários agentes da polícia, o que levou a uma falta de confiança na polícia, em particular entre os afrodescendentes”, justificando assim a necessidade de um órgão independente para investigar “as alegações de abusos e racismo pela polícia” e fazendo, para tal, especial referência “ao caso de 18 agentes da polícia acusados de tortura e outros crimes contra seis vítimas de raça negra em 2015 na Esquadra da PSP de Alfragide.

“São inúmeras as acusações graves de violência racista cometida por agentes da polícia”, considera ainda a ECRI. “Contudo, nenhuma autoridade reuniu sistematicamente estas acusações e procedeu a um inquérito eficaz para determinar se são ou não verdadeiras. Isto levou ao medo e falta de confiança na polícia, particularmente entre as pessoas de origem africana.” O relatório menciona, mais uma vez, o despacho de acusação proferido contra agentes da polícia, em Julho de 2017, como o sinal da existência de “uma situação grave de racismo institucional numa unidade da polícia, que é tolerada pela sua hierarquia”.

Nesta análise começada em Novembro de 2012 e concluída em Março de 2018, a ECRI considera que a independência dos organismos de promoção da igualdade (como é o caso da CICDR) “é indispensável para assegurar a sua eficácia e impacto, em particular ao tratar da discriminação (estrutural) emanando das autoridades e ao decidir sobre as denúncias, tal como no caso da CICDR”.

E justifica: “Por essa razão, as autoridades deveriam transformar a CICDR numa entidade jurídica distinta, colocada fora do executivo e do poder legislativo, atribuir-lhe um orçamento separado, permitir-lhe decidir independentemente a sua organização interna e a gestão dos seus recursos, assegurar que o pessoal que exerce funções de supervisão seja seleccionado e nomeado através de procedimentos transparentes, participativos e centrados nas suas competências, e conferir à CICDR o direito de fazer declarações públicas e publicar estudos e relatórios de forma independente.”

De acordo com a ECRI, a falta de independência condiciona as práticas. Em muitos casos, explica, as medidas tomadas para combater o discurso de intolerância e ódio são insuficientes e as sanções aplicadas não são dissuasoras – acontece por exemplo quando grupos da extrema-direita e neonazis propagam o discurso de ódio na Internet e ameaçam os migrantes.

O ACM e a CICDR não publicam estatísticas específicas sobre esse fenómeno. As estatísticas recolhidas por organizações da sociedade civil e apresentadas em estudos indicam que o número de casos de discurso de ódio é bem mais elevado do que as divulgadas pela Direcção-Geral da Política de Justiça cujos dados públicos mais recentes são de 2014.

“O ACM e a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), que tem competência para auxiliar as vítimas de homofobia e transfobia, confirmaram que muitos casos de discurso de ódio não lhes são comunicados”, escreve a ECRI. Segundo um estudo internacional, “apenas um quarto das pessoas inquiridas [em Portugal] conhece estas duas instituições; apenas 5% das vítimas ciganas e 9% das vítimas negras contactaram uma autoridade após sofrerem discriminação”.

Regra progressista
No plano das leis, a ECRI acolhe a ratificação em 2017 de um protocolo no qual Portugal se compromete a proibir globalmente a discriminação. O documento também saúda algumas das medidas tomadas para tornar isso possível, como a formação de polícias e as iniciativas de sensibilização na escola e na comunidade, e aponta outros progressos, como por exemplo a cooperação entre as polícias, os organismos do Estado e a sociedade civil para impedir que o discurso do ódio ou a discriminação se banalizem.

Também lamenta que nenhum artigo do Código Penal criminalize “explicitamente a expressão pública de uma ideologia racista”.

Do ponto de visto penal, existem lacunas relativamente àquilo que é a Recomendação de Política Geral feita a todos os Estados e de igual modo. A ECRI considera que a legislação portuguesa deve criminalizar a discriminação racial no exercício de um cargo público ou profissão e que a motivação racista, homofóbica ou transfóbica seja assumida como circunstância agravante em qualquer infracção e não apenas, como já prevê a lei, nos crimes de homicídio e de ofensas corporais. Mas aponta como muito positivo a “regra progressista” introduzida de inversão do ónus da prova: a discriminação é presumida e deixa de ser necessário à pessoa visada provar que ela existiu.

Fonte: Público