Abusadores de menores não podem ficar na lista negra tanto tempo, defende Provedora de Justiça
Assembleia da República deve reformular lei para que perigosidade das pessoas condenadas passe a ser reavaliada de forma periódica, recomenda Lúcia Amaral.
A Provedora de Justiça, Lúcia Amaral, quer que a Assembleia da República altere a lei que criou a lista de abusadores de menores condenados pela justiça. Objectivo: impedir que todos eles constem deste registo anos a fio, mesmo que o último crime deste género que tenham cometido date de há 20 anos.
Foi em 2015 que a então ministra da Justiça Paula Teixeira da Cruz fez aprovar no Parlamento a polémica lista, contra a qual se insurgiram várias organizações. O ex-presidente da República Jorge Sampaio chamou-lhe mesmo “justiça de pelourinho” – até porque, na sua versão inicial, o diploma previa que os pais das crianças que suspeitassem de alguém pudessem ter acesso a este registo compilado pelas autoridades, e do qual consta não apenas o nome completo do criminoso como também a sua morada e domicílio profissional.
Os deputados acabaram por descartar esta possibilidade, mas aprovaram outros aspectos da lei considerados gravosos por alguns sectores. Nomeadamente a obrigação de o abusador permanecer nesta lista negra, de acesso restrito às autoridades, durante cinco, dez, 15 ou 20 anos, consoante a pena que lhe tiver sido aplicada. Uma sentença de 11 ou mais anos de cadeia corresponde quase o dobro do tempo na lista, duas décadas.
A procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, foi uma das pessoas que se insurgiram na altura contra esta disposição legal, por ela não ter nenhum mecanismo que permitisse ao visado pedir uma reavaliação da sua inclusão na base de dados. Citando a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, a magistrada sugeriu que se previsse a possibilidade de o abusador pedir a um juiz que retirasse o seu nome da lista por ter deixado de existir risco significativo de reincidência.
Lei corre risco de ser inconstitucional
Não teve sucesso, mas a Provedora de Justiça acha necessário introduzir esta hipótese na lei, que doutra forma corre o risco de ser considerada inconstitucional. Antiga vice-presidente do Tribunal Constitucional, Lúcia Amaral considera que a actual impossibilidade de o abusador ver a sua situação reapreciada, com vista ao cancelamento do registo, “constitui uma ingerência desproporcionada no direito ao bom nome e reputação e no direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar” consagrados na Constituição.
A magistrada não vê a inclusão na lista como uma pena acessória, ao contrário de outros críticos da lei. Mas diz que o regime aprovado há três anos não incentiva a ressocialização, violando o princípio da proporcionalidade: "Pressupõe que quem esteja inscrito no registo continue a ser (…) um potencial agressor."
Em que termos precisos deve a lei ser alterada, a Provedora não diz. Nem quem deve responsabilizar-se pela avaliação de cada situação. Apenas refere como factor a ser tomado em linha de conta o decurso de tempo sem ocorrência de factos que indiciem perigosidade, por forma a determinar periodicamente se o indivíduo continua a constituir um risco para a sociedade. No regime francês, assinala, o pedido de reavaliação é dirigido ao Ministério Público, devendo as autoridades recorrer a todas as perícias consideradas necessárias, nomeadamente médico-legais. Solução a que esta juíza parece globalmente equilibrada.
“Mesmo dentro dos prazos legalmente fixados a manutenção da inscrição no registo tem que ser justificada, sob pena de ser ilegítima”, observa. A recomendação surge após duas queixas recebidas na Provedoria de Justiça a pedir o envio do diploma para o Tribunal Constitucional. Mas a Lúcia Amaral – que em defesa dos seus argumentos cita jurisprudência internacional, nomeadamente do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem – preferiu não enveredar por esse caminho.
Fonte: Público