MP quer fiscalizar acompanhantes que tutelam pessoas incapacitadas
Parecer da PGR defende que devem ser estabelecidas regras especiais para proteger o maior acompanhado. Quer ainda que o acompanhante preste contas ao Ministério Público antes de assumir essas funções.
O regime do maior acompanhado — que deverá substituir o de incapacidades em vigor desde 1966 — reconhece o direito de cada pessoa, antecipando a possibilidade de ficar incapacitada, indicar quem quer que fique responsável por si. O Ministério Público (MP) recomenda maior controlo.
A proposta do Governo — que em Março foi aprovada pelo Parlamento na generalidade e está agora a ser trabalhada na especialidade em sede de Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias — abrange qualquer maior de idade que se encontre diminuído nas suas capacidades. O que está em causa é o fim de dois institutos rígidos (o de interdição, destinado a pessoas incapazes de gerir a sua vida e os seus bens, e o de inabilitação, para quem apenas não se revela capaz de gerir os seus bens) e a criação de um modelo ajustado a cada caso concreto (o de maior acompanhado).
De acordo com o diploma, qualquer pessoa pode fazer uma declaração antecipada de vontade. O mandato deverá “seguir o regime geral” e “especificar os direitos envolvidos e o âmbito da eventual representação”. Quando o momento chegar, o tribunal aproveitá-lo-á no todo ou em parte. Pode revogá-lo se presumir que essa já não é a vontade da pessoa que precisa de ser acompanhada.
No parecer do gabinete da Procuradora-Geral da República (PGR), Joana Marques Vidal, que chegou ao Parlamento, o MP reconhece que um “amplo e eficaz sistema de protecção de pessoas maiores” deverá ter um mecanismo que permita a cada um planear uma “situação de futura incapacidade, através da concessão voluntária de poderes de representação a [uma] pessoa de confiança”. O Conselho da Europa aconselha-o. E a ideia não é inédita no regime jurídico nacional. O testamento vital, por exemplo, contempla a figura do procurador de cuidados de saúde.
O que a PGR contesta é “a ausência de regulamentação especial”. “Deveriam ser estabelecidas regras” que permitissem “conferir ao mandante em situação de incapacidade um grau de protecção acrescido”, refere o documento, acessível no site do Parlamento. Há que “defendê-lo de eventuais abusos e garantir-lhe uma adequada consideração dos seus interesses e necessidades”.
Como aumentar o controlo? Sugere que o próprio MP fique incumbido de dar início ao mandato. Seria a si que o acompanhante teria de prestar informações e contas. Se não fosse adequado, por exemplo por falta de idoneidade ou de apetência para assumir a posição, o MP instauraria uma acção para o afastar.
À primeira comissão parlamentar também já chegou o novo parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. E, entre pequenos reparos, chama a atenção para a “marginalidade e regime lacunoso do ‘mandado com vista a acompanhamento’, que em seu entender “deveria ser central no estatuto de maior acompanhado”.
Capacidade de resposta dos tribunais
É expectável que o número de processos desta natureza seja cada vez maior, tendo em conta o envelhecimento da população. Quem já foi declarado inabilitado ou interditado poderá pedir uma revisão do seu processo. E as medidas devem reduzir-se ao indispensável e ser revistas, no mínimo, de cinco em cinco anos.
Quer o Mecanismo Nacional de Monitorização da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, quer a Ordem dos Advogados já manifestaram preocupação com a capacidade judicial de resposta em tempo útil à instauração de processos desta natureza e/ou à sua revisão. É que estes processos já se arrastam nos tribunais, muitas vezes até depois da morte da pessoa incapacitada.
O parecer mais detalhado é o do MP, que se estende ao longo de 40 páginas. Contém diversas apreciações.
Ser ou não exonerado
Um dos juízos mais pertinentes prende-se com o acompanhante. Por princípio, o MP concorda que o cônjuge, o unido de facto ou os ascendentes não possam escusar-se ou ser exonerados do cargo de acompanhantes. E que os descendentes não possam escusar-se, mas possam ser exonerados ao fim de cinco anos, se houver outros descendentes idóneos. Parece-lhe, todavia, que há cuidados que ficaram por acautelar.
“O exercício ‘contrariado’ das funções de acompanhante pode significar uma actuação que não seja conforme aos interesses do beneficiário, sendo de temer, nestes casos, a violação, aparentemente sem consequências, dos deveres de cuidado e diligência”, lê-se no documento. Sugere que se pondere a possibilidade de cônjuge, ascendentes e descendentes puderem pedir escusa “tendo por base idade avançada ou doença, ocupações profissionais absorventes ou carência de meios económicos”.
O MP considera ainda que, tal como o diploma se encontra neste momento, o maior acompanhado não está “protegido da discricionariedade do tutor, relativamente aos actos pessoais que não têm protecção legal”. Refere-se a questões como: “se deve viver com familiares; se deve ser colocado numa instituição; se deve ser submetido a fisioterapia ou a determinado tratamento médico, etc”.
No seu entender, “o tutor não pode ser deixado em autogestão” nestes assuntos. Recomenda, por isso, que certos actos pessoais fiquem sujeitos a autorização prévia ou, em caso de urgência, a rectificação posterior do tribunal ou do conselho de família. Em relação aos outros actos, propõe que “o representante periodicamente preste ‘contas’ ao tribunal ou ao conselho de família”.
Enfoque no património
No diploma em discussão, o legislador impõe restrições ao acompanhante, mas apenas no que diz respeito à gestão do património. Também só está obrigado a prestar contas sobre esses assuntos. “O legislador continua focado na protecção do património em detrimento da pessoa”, critica o MP. “O princípio da dignidade humana ainda não remodela a dogmática do direito civil com a profundidade necessária”, conclui.
Com base nos pareceres, os partidos podem ou não apresentar propostas de alteração do texto original, que saiu do gabinete da ministra da justiça, Francisca Van Dunem, a partir de um estudo entregue por professores das faculdades de Direito das Universidades de Lisboa e de Coimbra.
Fonte: Público