PSP e GNR acumulam 1,5 milhões de objetos apreendidos à sua guarda. Muitos deles há mais de uma década
Há 3384 veículos, 470 mil peças de vestuário e calçado e muitos bens a degradar-se, há mais de uma década, e a onerar as forças de segurança. Tribunais estão a contornar a lei e a inspetora-geral pediu audiência à PGR e ao Conselho Superior da Magistratura.
As instalações da PSP e da GNR estão transformadas em depósitos de milhares de objetos apreendidos no âmbito de processos-crime e de contraordenação, alguns durante décadas, sem que os tribunais lhes determinem um destino atempado, ao arrepio do que a lei estipula. Esta é uma das conclusões que se pode extrair das duas auditorias temáticas da Inspecção Geral da Administração Interna (IGAI) realizadas à GNR e à PSP, no final de 2023, que sinalizaram mais de 1, 5 milhões de objetos apreendidos à sua guarda. Automóveis, roupas, bebidas alcoólicas, combustível, cigarros, material informático, telemóveis ou equipamento relacionado com o tráfico de droga são apenas alguns dos objetos que entopem as arrecadações, gabinetes ou parques das instalações policiais. E que prometem aterrar na mesa da nova ministra da Administração Interna, Margarida Blasco, a quem a temática não será estranha, visto já ter ocupado o cargo de inspetora-geral.
A fatia de leão dos bens apreendidos, em volume, diz respeito a peças de vestuário e calçado, que representam quase um terço dos objetos a cargo da GNR, num total de 470 mil, sobretudo fruto do trabalho da sua Unidade de Ação Fiscal, logo seguidas da categoria ‘outros’ e, depois, pelos pacotes de cigarros. Mas, em valor, são os veículos automóveis que mais pesam na ‘herança’ das forças de segurança, que têm à sua guarda 3384 veículos automóveis. Esta realidade convive com uma crónica carência de automóveis nas esquadras e postos das polícias.
Uma grande parte dos veículos encontra-se em avançado estado de degradação, sem que, ao longo do tempo, tivesse sido retirada utilidade pública da sua apreensão e confisco. Isto deve-se ao arrastar dos processos judiciais, mas não só - também há bens apreendidos sem destino, mesmo apesar de inquéritos arquivados, de sentenças transitadas em julgado ou de ter sido declarada a sua perda a favor do Estado, pode ler-se nos relatórios da IGAI.
Isso mesmo fica patente na estatística da GNR: em 1761 veículos apreendidos, só 482 se encontravam em estado razoável ou bom. Daquele lote de veículos 280 foram declarados perdidos a favor do Estado, sendo que 219 tiveram sentença transitada em julgado. O mesmo acontece na PSP: em 1623 veículos, 1111 estavam em mau estado, 426 em estado razoável e 74 em bom estado. E em cerca de 10% dos processos havia sentenças transitadas em julgado, sem que tivesse sido dado destino aos bens. Há uma percentagem ínfima dos processos (0,3%) a cargo da PSP que tem 20 ou mais anos, sendo que 50% dizem respeito a apreensões feitas entre 2011 e 2020 e 40% relativas ao período compreendido entre 2021 e 2022.
Desta situação de arrastamento e indefinição resulta prejuízo para o erário público - que prescinde da gestão dos bens perdidos a favor do Estado - e para as forças de segurança, que são oneradas com esse encargo, tanto em termos de espaço, como de logística, pode ainda concluir-se da leitura dos relatórios.
No caso da auditoria aos bens apreendidos à guarda da PSP, foi verificada, por exemplo, uma listagem de mais de 22 mil itens catalogados como “lixo”, e que assim continuam. O relatório reconhece, no entanto, os esforços feitos pela PSP junto dos tribunais para resolver a situação, que não têm tido resposta atempada.
Outro exemplo elucidativo de como urge alterar o modelo de gestão: no comando territorial da GNR nos Açores o processo mais antigo de bens apreendidos tem 24 anos e envolve 300 blusões de napa, em estado razoável, que ainda se encontram numa arrecadação do destacamento de Ponta Delgada.
Pelo exposto, os dois inspetores responsáveis pelas auditorias, cujos relatórios acabam de ser publicados no site da IGAI, consideram que esta situação tem “relação direta com o trabalho dos tribunais” quer na aplicação do direito, quer no modelo de gestão. Assim, recomenda-se uma intervenção da Autoridade Judiciária e que os processos que envolvem os bens apreendidos declarados perdidos a favor do Estado sejam remetidos ao Gabinete de Administração de Bens (GAB). Recomenda-se “que a Autoridade Judiciária implemente com mais frequência o procedimento previsto no artigo 185.º do CPP, proferindo despacho no prazo máximo de 30 dias após apreensão e determine a remissão ao GAB para afeitos de administração em conformidade com o disposto na Lei n.º45/2011”
Não obstante o efetivo enquadramento legal, a IGAI sugere, a título de recomendação, uma “revisão da legislação” no sentido de uma maior clarificação, “para identificar lacunas e inconsistências na lei”. Por outro lado propõe “um procedimento obrigatório de revisão das medidas de apreensão independente do requerimento dos interessados”.
Estas recomendações, homologadas pelo ex-ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, foram também enviadas ao Conselho Superior de Magistratura, ao Conselho Superior do Ministério Público, à Procuradoria Geral da República e ao Gabinete de Administração de Bens “para a adoção das medidas entendidas como devidas”.
Face àquilo que a IGAI considera um “número elevado” e “preocupante” de bens à guarda das forças de segurança, “numa situação que conduz a um aspeto degradado e descuidado das instalações, além de onerar o efetivo com a guarda desses objetos”, e de assim ficarem prejudicadas a economia e eficiência, a inspetora geral da Administração Interna, Anabela Cabral Ferreira, pediu uma audiência ao vice-presidente do Conselho Superior da Magistratura e à Procuradora Geral da República, e já foi recebida, segundo apurou o DN. No decurso das audiências, ambas as instâncias se terão comprometido a tomar medidas.
Fonte: Diário de Notícias
Foto: Paulo Jorge Magalhães/ Global Imagens