PJ ainda sem acesso total às bases de dados do ex-SEF
Inspetores da PJ reclamam acesso direto às antigas bases de dados do SEF, operadas pela nova Agência de Migrações (AIMA). As dificuldades estendem-se também ao Sistema de Segurança Interna, cujo secretário-geral convocou de emergência a AIMA para uma reunião hoje.
Três meses depois da extinção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), continua muito limitado o acesso das polícias, na PJ e no Sistema de Segurança Interna (SSI), às bases de dados que deviam ser disponibilizadas pela Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA).
O alerta vem dos inspetores da Polícia Judiciária (PJ), que estavam antes ao serviço do SEF e perderam estes imprescindíveis instrumentos para o combate à criminalidade associada às redes de imigração ilegal e tráfico de seres humanos.
“O que se passou com a transição dos antigos inspetores do SEF para a PJ é que lhes foi retirada uma das mais importantes ferramentas de que dispunham: o acesso direto a toda a informação que pertencia ao SEF”, afirma o presidente do sindicato dos inspetores Sindicato do Pessoal de Investigação Criminal da Polícia Judiciária (SPIC-PJ).
Rui Paiva, que presidia ao Sindicato da Carreira de Fiscalização e Inspeção do SEF e integra atualmente a Unidade Nacional de Contraterrorismo (UNCT) da PJ, com a especialização do combate ao Tráfico de Seres Humanos (TSH), assinala que “sem poder utilizar diretamente as bases de dados de que o país dispõe, a PJ não conseguirá ser eficaz a perseguir traficantes de seres humanos nem a libertar imigrantes explorados em Portugal”.
A situação atual, afiança, “só beneficia as redes mafiosas que exploram estrangeiros em Portugal”.
PJ mais "robustecida"
Recorde-se que o acesso direto a estas bases de dados foi um dos argumentos utilizados pelo diretor nacional da PJ para defender que a sua polícia ficaria mais “robustecida” ao ganhar a exclusividade da investigação de crimes que antes partilhava com o SEF.
Luís Neves disse que a PJ “nunca tinha apostado definitivamente na investigação” dos crimes de tráfico de seres humanos e imigração ilegal porque “não tinha acesso às bases de dados” do SEF.
Em junho de 2022, quase ano e meio antes de se concretizar a transferência das competências que ocorreu a 29 de outubro de 2023, Luís Neves revelou que o SEF tinha 23 bases de dados com informações de cidadãos nacionais e estrangeiros, mas a PJ não tinha “acesso a nenhuma”.
Rui Paiva explica que “parte da eficácia da investigação no SEF resultava de ter, sob uma mesma entidade, toda a informação relativa ao percurso dos cidadãos estrangeiros em Portugal: a entrada, o alojamento, a permanência, as relações de trabalho, os pedidos formulados, a documentação apresentada, os documentos emitidos e a saída de território nacional”.
Com toda esta informação disponível a qualquer hora do dia ou da noite, os investigadores podem “analisar e conjugar toda a informação disponível, detetando padrões de anormalidade que, em muitos casos, levavam a concluir que certos cidadãos estrangeiros se encontrariam a ser explorados por organizações criminosas”.
Dificuldades tecnológicas
Ao que o DN conseguiu saber junto de responsáveis da PJ, a reclamação deste sindicato tem razão de ser.
Fonte da direção nacional confirmou ao DN que os acessos às bases de dados “estão limitadas a 10/15 pessoas” e só as de conteúdos policiais, porque para as de natureza administrativa (ver caixa) é preciso fazer o pedido por mail.
“Há limitações tecnológicas. O sistema só aguenta um número muito limitado de utilizadores. No imediato, o objetivo é que tenham acesso, pelo menos, os que estão nas investigações de TSH, que são cerca de 200. Mas é preciso também dar acesso a nível nacional. Neste momento aguardamos solução tecnológica para aceder em todo o país”, sublinha.
O SPIC-PJ contesta a tese do Governo, segundo a qual “basta aos inspetores da PJ pedirem a informação ou documentação de que necessitam à AIMA ou ao SSI”, que operam as antigas bases de dados do SEF.
“Qualquer pessoa percebe que é muito diferente ter acesso direto a bases de dados, e poder pesquisá-las livremente, ou dirigir um e-mail formal à AIMA ou ao SSI, com um pedido, aguardar vários dias e, depois, receber uma informação pouco precisa de alguém que a recolheu sem saber muito bem de que é que andava à procura”, afirma Rui Paiva.
“Esta é uma situação que não serve, nem os interesses nacionais, nem os da União Europeia (UE)”, sustenta.
Avaliação Schengen a caminho
Acresce que a partilha em tempo real destas informações entre as forças e serviços de segurança é uma das peças chave do novo modelo de controlo e segurança de fronteiras que vai ser verificado pelos inspetores da Comissão Europeia, no âmbito da avaliação Schengen que foi adiada nesta matéria, há cerca de um ano, a aguardar a execução do novo sistema.
O acompanhamento desta avaliação está a cargo do secretário-geral do SSI, o embaixador Paulo Vizeu Pinheiro, que tem na sua tutela a Unidade de Controlo de Fronteiras e Estrangeiros (UCFE), o “mini-sef” onde é suposto serem dadas todas as respostas de segurança solicitadas interna e externamente.
Para isso seria preciso que a AIMA garantisse essa disponibilidade a tempo inteiro, o que não está a acontecer ou é muito demorado.
A agravar o cenário, de acordo com várias fontes policiais ouvidas pelo DN, está o facto de a AIMA, um instituto cujos gestores estão equiparados a gestores públicos, ter um horário limitado ao de um normal serviço administrativo. Não está acessível 24 horas por dia /365 dias por ano.
“Se depois das 17:00 acontecer algo de grave que exija a consulta urgente da base de dados, algumas não se podem consultar porque nem a UCFE tem acesso. Como a AIMA está fechada, só no outro dia”, lamenta uma fonte desta organização.
Obrigações europeia por cumprir
Questionado o SSI sobre esta matéria, não deixa margem para dúvidas sobre a preocupação e o grau de urgência em relação à necessidade de garantir estes acessos com a maior brevidade possível: “Terá que estar pronto para uma visita de verificação Schengen sobre as fronteiras a qual, não sendo para já, será neste ano de 2024. Tal como o ex-SEF, a AIMA, tem de ter, pelo menos e de acordo com as nossas obrigações ao nível europeu, a informática 24 horas disponível. É isso que permite a inserção e consulta às bases de dados NSIS (Sistema Nacional de Informação Schengen) e outras também efetuadas pelas polícias. Significa isto que a AIMA tem, no mínimo, que dispor de apoio de administração de sistemas. Poderá haver necessidade de atos administrativos e/ou normativos que adequem o funcionamento de toda a AIMA a esta necessidade e, eventualmente, recrutar trabalhadores no pressuposto de trabalho por turnos de forma voluntária”, anota fonte autorizada.
AIMA e PJ: “trabalho articulado e eficiente”
Vizeu Pinheiro entende que chegou o momento de dar um murro na mesa. Segundo confirmou ao DN fonte oficial do seu gabinete, foi convocada a AIMA para reunir de emergência, nesta segunda-feira, precisamente para ser assinado um protocolo que determine os passos que devem ser dados para alcançar o objetivo essencial, quer para a segurança no controlo de fronteiras, quer para a investigação criminal: que todas as polícias tenham acesso às informações que precisam para combater o crime e proteger as vítimas.
O DN perguntou à AIMA, presidida por Luís Goes Pinheiro, porque os inspetores da PJ ainda não tinha acesso direto a todas as bases de dados e qual seria a data prevista para que tal acontecesse. Foi ainda solicitado o número de pedidos de consulta provenientes da Judiciária e de outras polícias (a PSP e a GNR também têm idênticas necessidades) e quantos foram respondidos.
Fonte oficial respondeu que “a AIMA e a PJ desenvolvem um trabalho conjunto articulado e eficiente. Assim, todas as oportunidades de melhoria identificadas têm sido implementadas, mantendo-se este princípio para todas as outras que possam surgir”.
Rui Paiva insiste: “Sem acesso a essa informação e à respetiva documentação, é agora impossível assegurar na PJ os níveis de excelência que notabilizaram Portugal, quer na investigação da criminalidade organizada e transnacional associada ao tráfico de pessoas, quer na proteção das vítimas.”
De acordo com a sua lei orgânica compete à AIMA “assegurar o acesso das forças e serviços de segurança e demais serviços e organismos competentes, em razão da matéria, à informação constante dos sistemas e das bases de dados sob sua gestão e do EURODAC (base de dados de impressões digitais da União Europeia para identificar os requerentes de asilo e os indivíduos que atravessam as fronteiras de forma ilegal ou que atravessam as fronteiras fora dos pontos de passagem autorizados), nos termos da legislação aplicável, com respeito pela proteção dos dados pessoais e dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos nacionais e estrangeiros.
Compete à UCFE “estudar, planear e gerir as bases de dados e sistemas de informação em matéria de fronteiras e estrangeiros que contenham informação de natureza policial e de cooperação policial internacional”.
O inédito modelo português de controlo de fronteiras atomizou as competências do SEF por três forças policiais (PJ, com a investigação criminal; PSP e GNR com a segurança das fronteiras; o UCFE, no SSI), a nova AIMA o Instituto de Registos e Notariado (IRN).
Os seus funcionários foram distribuídos por sete organismos: além destes, a Autoridade Tributária e Aduaneira para onde transitaram alguns inspetores chefe e coordenadores do SEF, sem lugar na PJ.
Esta singular arquitetura única na União Europeia representa um desafio sem precedentes ao modelo que tem sido preconizado pelas políticas comunitárias - baseado na centralização e especialização - e terá a sua prova de fogo na já referida “avaliação Schengen”.
Depois de uma primeira visita, entre o final de 2022 e março de 2023, os avaliadores decidiram suspender sine die as verificações relacionadas com a segurança das fronteiras para quando a reorganização estivesse concluída.
Fonte: Diário de Notícias