Mais de 50 ações intentadas contra Ordem dos Advogados pelo fim do acordo com brasileiros
A presidente da AEEP revelou à Advocatus que cerca de 53 ações judiciais já foram intentadas contra a OA face ao fim do acordo com a Ordem de Advogados do Brasil, mas o número vai continuar a crescer.
Foi no início de julho que a Ordem dos Advogados (OA) deliberou, por unanimidade, cessar o regime de reciprocidade em vigor com a Ordem dos Advogados do Brasil. Cinco meses depois, a Associação dos Advogados Estrangeiros em Portugal (AEEP) avançou com ações judiciais contra a OA para exigir a nulidade da decisão. Ao todo, já foram intentadas cerca de 53 ações.
Questionada pela Advocatus, a presidente da AEEP Jennifer Dallegrave sublinhou que o número de ações judiciais intentadas contra a OA vão crescer. “Fui levantar o número atualizado. São 53 e a crescer… No tribunal administrativo e fiscal de Lisboa“, referiu.
As ações judiciais interpostas pretendem ver reconhecida pelos tribunais portugueses a ilegalidade da revogação do acordo bilateral que, segundo explicou à Lusa a vice-presidente da AEEP, Kissila Valle, apenas podia acontecer por iniciativa legislativa da Assembleia da República, e não por decisão unilateral de uma das partes.
O regime cessado permitia a inscrição na Ordem dos Advogados em Portugal de um advogado brasileiro sem que este tenha de realizar um estágio ou a prova de agregação, e vice-versa.
Ainda assim, a OA considera que a sua decisão é legítima e irá defender-se em tribunal. “Realçamos que atualmente nenhum advogado brasileiro se encontra impedido de se inscrever na OA, podendo fazê-lo nos mesmos termos que qualquer outro advogado estrangeiro oriundo de país fora da União Europeia, sendo totalmente bem-vindo pela OA, desde que cumpra os requisitos necessários”, referiram.
À Advocatus, João Massano, presidente do Conselho Regional de Lisboa da OA, explicou que estão a seguir a decisão do Conselho Geral e não estão a aceitar advogados brasileiros. “Quanto aos outros Conselhos Regionais não sei o procedimento, mas o Conselho Regional de Lisboa não está aceitar inscrições, pois tal só criaria falsas expectativas, uma vez que o Conselho Geral, de acordo com o comunicado, indeferirá”, disse.
Para a AEEP, a decisão em relação à inscrição de cerca de 100 advogados brasileiros “vem sendo arrastada pelos Conselhos Distritais da Ordem dos Advogados portugueses, violando assim direitos fundamentais destes advogados brasileiros”, e “o protelar destes processos” explica-se com a vontade de aguardar pelo novo enquadramento jurídico das ordens profissionais.
Pode a OA cessar o acordo?
O ponto final do regime de reciprocidade entre as duas ordens está a levantar uma dúvida: terá a Ordem dos Advogados legitimidade para cessar o acordo? Os advogados contactados pela Advocatus consideram que não.
“Sendo a matéria de Associações Públicas reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, nos termos do Artigo 165º, n.º 1, alínea s) da Constituição da República Portuguesa, apenas a Assembleia da República poderá por fim ao regime de reciprocidade entre os advogados brasileiros e os advogados portugueses“, explicou Jane Kirkby, sócia da Antas da Cunha Ecija.
A advogada explicou que as competências da OA neste âmbito limitam-se apenas a elaborar proposta de “regulamento de registo e inscrição dos advogados provenientes de outros Estados“. “Esta regulamentação consta dos artigos 17.º e seguintes do Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados Estagiários aprovado em Assembleia Geral da Ordem dos Advogados de 21 de dezembro de 2015”, acrescenta.
Apesar de considerar que a OA tem competência para alterar o Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados Estagiários relativamente à inscrição de advogados de nacionalidade brasileira e até alterar ou cessar o Acordo de Reciprocidade, essas competências são “meramente regulamentares”.
“O que significa que está vedado a quaisquer dos seus órgãos cessar ou esvaziar o regime de reciprocidade imposto pelo n.º 1 do artigo 201.º dos Estatutos da Ordem dos Advogados, seja pela alteração ao Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados Estagiários, seja pela alteração ou cessação do Acordo de Reciprocidade”, disse.
Também António Sarmento de Oliveira, sócio da SPCB LEGAL, defende que a cessação do regime de reciprocidade de que gozam os advogados brasileiros, apenas pode ser determinada por ato legislativo, por envolver uma alteração dos Estatutos.
“Coisa diversa será a alteração das condições dessa reciprocidade, maxime as previstas no artigo 17º do ‘Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados Estagiários’, que estabelece que os advogados brasileiros que tenham formação superior realizada no Brasil ou em Portugal possam inscrever-se com dispensa da realização de estágio e da obrigatoriedade de realizar prova de agregação na OA Portuguesa”, acrescenta.
O fim do acordo
O fim do regime de reciprocidade entre a OA e a Ordem dos Advogados do Brasil foi aprovado pelo Conselho Geral da OA no início de julho. Na altura, os representantes dos advogados asseguraram que esta tomada de posição não iria afetar os processos de inscrição de advogados que se encontrem em curso.
Mas como justificou a OA o fim do acordo? Entre os motivos apontados estavam a diferença na prática jurídica em Portugal e no Brasil e as queixas recebidas.
“Embora possa ter existido uma matriz de base comum aos ordenamentos jurídicos de ambos os países, constata-se que em Portugal têm sido adotadas opções legislativas muito distintas das que são implementadas no Brasil, até por força da aplicabilidade e transposição para o direito interno português do direito da União Europeia, o que, inevitavelmente, tem contribuído para que ambos os ordenamentos jurídicos se afastem e tenham evoluído em sentidos totalmente diferentes”, referiram em comunicado.
Assim, a Ordem dos Advogados portuguesa considerou que as normas jurídicas atualmente em vigor em alguns ramos do Direito num e noutro ordenamento jurídico “já não são sequer equiparáveis”.
“É do conhecimento geral que existe uma diferença notória na prática jurídica em Portugal e no Brasil, e bem assim dos formalismos e plataformas digitais judiciais, sendo efetivo o seu desconhecimento por parte dos advogados brasileiros e portugueses quando iniciam a sua atividade em Portugal ou no Brasil, verificando-se que ocorre, por isso mesmo, a prática de atos próprios de advogado de elevada complexidade técnica, por quem não dispõe da necessária formação académica e profissional no âmbito dos ordenamentos jurídicos português e brasileiro”, justificam.
A OA sublinha ainda que existem “sérias” e “notórias” dificuldades na adaptação dos advogados brasileiros ao regime jurídico português, à legislação substantiva e processual e às plataformas jurídicas em uso corrente, “o que faz perigar os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos portugueses e, de forma recíproca os dos cidadãos brasileiros”.
“Cumpre ainda salientar que foram recentemente transmitidas à Ordem dos Advogados portuguesa inúmeras queixas relativas à utilização indevida do regime de reciprocidade em vigor, o qual só deverá produzir efeitos no âmbito da inscrição como advogado nas respetivas ordens profissionais e não para a obtenção de registo ou inscrição junto de outras Ordens de Advogados ou Associações Profissionais Equiparadas de outros Estados membros da União Europeia, que não são, nem nunca foram, parte deste acordo”, acrescentaram.
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) mostrou-se na altura “surpreendida” com a decisão. Em declarações ao jornal “O Globo”, a OAB apontou “discriminação” e “mentalidade colonial” e admite que vai lutar pelos direitos dos brasileiros.
“Estava em curso um processo de diálogo iniciado há vários meses com o objetivo de aperfeiçoar o acordo. A OAB, durante toda a negociação, opôs-se a qualquer mudança que validasse textos imbuídos de discriminação e preconceito contra advogadas e advogados brasileiros. A mentalidade colonial já foi derrotada e só encontra lugar nos livros de história, não mais no dia-a-dia das duas nações”, referiu a OAB.
As conversações entre as instituições decorreram entre o mês fevereiro e o mês de junho de 2023. Apesar de admitir que têm mantido um diálogo aberto com a Ordem brasileira, a Ordem dos Advogados portugueses diz que, segundo informação que foi remetida através de um email no dia 28 de junho de 2023, a OAB afirmou “não dispor de condições para poder proceder às alterações do atual regime de reciprocidade (e que mereceram o acordo de ambas as instituições no passado dia 23 de maio de 2023), nem no imediato, nem dentro de um prazo considerado por este como razoável”.
Atualmente, cerca de 10% dos advogados registados em Portugal são brasileiros. Dados avançados em dezembro de 2022 pela OA mostram que, dos cerca de 34 mil profissionais inscritos na instituição, 3.173 são brasileiros. Desses, quase 60% estão concentrados na região de Lisboa. Um aumento de quase 482%, já que em 2017 eram apenas 536 os advogados brasileiros em Portugal. Em 2019, estavam inscritos 2.270 brasileiros no total.
O acordo que existia até então entre a Ordem dos Advogados do Brasil e a Ordem dos Advogados portugueses favorecia a migração destes profissionais para Portugal, relativamente a outros. A reciprocidade entre Portugal e Brasil passou a constar no estatuto da Ordem dos Advogados Portugueses em dezembro de 2015. Atualmente, existem quase dois mil advogados nascidos em Portugal e que estão a exercer a profissão na Justiça brasileira.
Fonte: Advocatus
Foto: Hugo Amaral/ECO