Com produto "para mais de 10 dias", quem decide se é tráfico é a justiça - como antes

Depois de projeto do PS - que visa clarificar que, de acordo com a lei de 2000, consumo de drogas está mesmo descriminalizado - ter suscitado várias críticas, inclusive do governo, deputados propõem alteração para "esclarecer processo": como até agora, é a justiça penal que tem de discernir se está ante um traficante ou um consumidor.

Mais de um terço dos indivíduos que em 2021 foram condenados pelo crime de consumo de drogas tinham chegado aos tribunais acusados de tráfico: 146 em 424. Tal significa que em juízo se considerou que esses 146 indivíduos, os quais teriam sido encontrados pelas polícias com uma quantidade das variadas substâncias a que se dá o nome genérico de "drogas" avaliada como superior à "dose média diária para 10 dias", não a detinham para vender ou dar (a prática judiciária é considerar que ceder, mesmo graciosamente, "drogas" para que outros as consumam é crime de tráfico) a outrem mas para consumo próprio.

É, explica ao DN a penalista e deputada do PS Cláudia Santos, exatamente esse o processo que o projeto de lei nº 848/XV, que altera o artigo 40º (consumo) da lei da droga de 1993 para clarificar que todo o consumo e posse para consumo são descriminalizados, e foi aprovado na generalidade a 7 de julho, visa manter. Com, claro, uma mudança significativa: deixa de existir crime de consumo.

Significando que, caso as autoridades judiciárias considerem não haver provas de tráfico nos casos em que alguém seja "apanhado" com mais que a tal "dose para 10 dez dias", o caso será, consoante o momento em que se chega a essa conclusão, arquivado pelo Ministério Público ou pelo Juiz de Instrução, ou a pessoa será absolvida em tribunal - independentemente das quantidades encontradas em seu poder, essas pessoas passarão a poder apenas ser sujeitas a contra-ordenação, como desde 2001 sucede com os consumidores em posse da quantidade para até 10 dias.

Foi sempre, diz Cláudia Santos, segunda subscritora do projeto, cujo primeiro signatário é o líder da bancada, Eurico Brilhante Dias, esse o espírito do diploma que defendeu a 7 de julho no parlamento, e que foi aprovado com os votos favoráveis do PS, IL, BE e Livre, abstenção do PSD, PCP e PAN e voto contra do Chega.

Um diploma com o intuito de impossibilitar que meros consumidores possam ser condenados, já que, apesar de há duas décadas, por via da lei 30/2000 (que estabeleceu o Regime Jurídico do Consumo de Estupefacientes), Portugal ser apontado no mundo inteiro como o exemplar percursor da política de descriminalização do consumo de drogas, continua até hoje a condenar centenas de pessoas anualmente por isso mesmo: consumo.

Porém, à beira da discussão na especialidade, que está agendada para esta quarta-feira, o grupo parlamentar decidiu efetuar uma alteração ao projeto "para o clarificar". O motivo, segundo Cláudia Santos, é aquilo que qualifica como "um ataque muito estranho ao projeto de lei", com críticas a chegarem não só do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Adictivos e nas Dependências (SICAD), por via do seu diretor, João Goulão, como do ministério da Administração Interna - cujo ministro, José Luís Carneiro, recomendou "grande ponderação nos termos em que se alteram as considerações já previstas e consolidadas na lei -" e da Polícia Judiciária. Todas evidenciando preocupação com aquilo que veem como o "esbater" dos limites entre consumo e tráfico.

"Não nos afastamos um milímetro da nossa proposta"
A alteração, noticiada pelo Público esta terça-feira, consiste em retirar o adjetivo "mero" da frase "a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias (...) que exceda a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias constitui mero indício de que o propósito pode não ser o de consumo" e acrescentar mais um número ao já citado artigo 40º da "Lei da droga", dizendo: "No caso de aquisição ou detenção de substâncias (...) que exceda a quantidade prevista [de consumo médio diário para dez dias], ficando demonstrado que tal aquisição ou detenção se destinam exclusivamente ao consumo próprio, a autoridade judiciária competente determina, consoante a fase do processo, o seu arquivamento, a não pronúncia ou a absolvição ou o encaminhamento para a Comissão de Dissuasão da Toxicodependência."

E Cláudia Santos exemplifica: "A polícia encontra alguém que tem 20 doses de canábis, mais dez que "quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias"; encaminha a pessoa para a justiça penal. Se o Ministério Público (MP) ou o Juiz de Instrução Criminal ou o tribunal, já na fase de julgamento, concluírem que aquelas 20 doses eram para consumo, arquivam ou absolvem, consoante a fase em que estiver o processo." E comenta: "Com esta alteração não nos afastamos um milímetro da nossa proposta. E de modo nenhum invertemos, como houve quem aventasse, o ónus da prova." Aliás, esclarece, "no processo penal não há ónus da prova, só no processo civil. No processo penal a pessoa presume-se inocente, pelo que o MP tem de fazer prova do crime."

Tal significa, obviamente, que o tribunal, para condenar alguém por tráfico, terá de ter mais evidência que a do número de doses encontradas na respetiva posse (a não ser que só por si evidenciem não poderem destinar-se a consumo próprio) - mas isso, como se referiu no início deste texto, é o que sucede todos os dias com a atual configuração da lei, já que muitas pessoas chegam a tribunal acusadas de tráfico com base na quantidade em seu poder, a acabam condenadas por consumo.

Diretor do SICAD mudou de posição?
Daí que a alteração que ainda segundo o Público o SICAD gostaria de ver efetuada no projeto, vincando que "o regime da contra-ordenação se aplica também aos casos em que a quantidade exceda o estimado para um consumo médio durante um período de 10 dias, "desde que a autoridade judiciária ou o órgão de polícia criminal não tenha qualquer indício da prática de crime de tráfico"", pareça ignorar aquilo que está patente nos dados que o próprio organismo publica: que, precisamente, a condenação por tráfico depende sempre da prova da prática do crime de tráfico.

E que a prova do crime de tráfico terá de ser construída com base nos indícios recolhidos - pelo que a preocupação do SICAD de não se colocar em causa "a atividade própria dos órgãos de polícia criminal e das autoridades judiciárias quando considerem estar perante uma circunstância não de consumo, mas de tráfico" faz Cláudia Santos exprimir perplexidade. "A função do SICAD, creio, não é preocupar-se com as necessidades das polícias, mas com o tratamento de toxicodependentes...", comenta a deputada.

De facto, o SICAD, criado em 2012, na sequência da extinção do instituto da Droga e da Toxicodependência, é um serviço do ministério da Saúde com a missão "promover a redução do consumo de substâncias psicoativas, a prevenção dos comportamentos aditivos e a diminuição das dependências". No seu site, resume o espírito da lei de 2000 como tendo permitido "deixar de se considerar crime o consumo de droga, a aquisição e a posse para consumo próprio", sendo "criadas as Comissões para a Dissuasão da Toxicodependência, as quais vieram substituir os tribunais criminais como resposta do Estado ao consumo de drogas".

De resto, em 2019, em declarações ao DN, o diretor do SICAD, João Goulão, qualificou a existência de condenações por consumo como "um entendimento enviesado da legislação: o objetivo era que não acontecesse que o consumo levasse à condenação."

Goulão defendia "aperfeiçoar a lei, retirando essa lacuna" e criticava o acórdão do Supremo Tribunal que em 2008, respondendo a um pedido de uniformização de jurisprudência por parte do MP, determinou que a redação da lei de 2000 deveria ser interpretada como significando que quem fosse apanhado com mais do que a quantidade de drogas correspondente à "dose média diária para 10 dias" cometia o crime de consumo.

"A partir das 10 doses, é ao tribunal que cabe decidir"
Um entendimento do qual discordaram vários juízes conselheiros, incluindo Henriques Gaspar, que viria a ser presidente do Supremo de 2013 a 2018. Este declarou, no seu voto de vencido, que não lhe subsistia qualquer dúvida de que a criminalização do consumo tinha sido expressamente revogada pela Lei 30/2000, tendo apenas esta excecionado, ou seja, mantido como crime, o cultivo para consumo: "Pelos elementos disponíveis de interpretação, não se encontra uma única razão que tivesse levado o legislador a querer continuar a punir como crime, em função de um critério puramente quantitativo da detenção de produto, uma conduta - o consumo - que decidiu descriminalizar. (...) A posição que fez vencimento [no acórdão 8/2008] trabalha inteiramente sobre um modelo imaginado."

Da mesma opinião se manifestava outro vencido, Eduardo Maia e Costa. Que ao DN, em 2019, considerava que a única solução possível é "esclarecer a questão por via legislativa, considerando de uma vez por todas revogado o artigo 40.º [que criminaliza o consumo] da Lei 15/93".

Quanto à forma como se deveria ter interpretada a referência, constante na lei 30/2000, às dez doses médias diárias, era para o conselheiro jubilado muito simples: "A partir desse limite a polícia manda o caso para tribunal, onde se decidirá se as doses eram para consumo ou para outro destino. Se se considerar que eram para consumo, o tribunal envia para a Comissão de Dissuasão do Consumo [criada pela Lei 30/2000], porque se trata de contra-ordenação; se não, é julgado como crime de tráfico."

Uma interpretação secundada então por João Goulão: "O limite estabelecido das dez doses é para evitar que o polícia atue como juiz. A existência desse limite objetivo impede que seja o polícia no ato a fazer um juízo abreviado e a decidir se está perante um consumidor ou um traficante. A partir das dez doses, é ao tribunal que cabe decidir."

Esta solução, naturalmente, não cumpre aquilo que o SICAD refere como uma das conquistas da lei de 2000 - a substituição, na resposta do Estado ao consumo de drogas, dos tribunais criminais pelas comissões de dissuasão. Os consumidores apanhados com mais quantidade que a estabelecida com base em critérios pouco claros (o que é "uma dose média diária?") - e que os próprios tribunais, como sublinhou ao DN um procurador, não sabem bem como interpretar, se em função do peso ou do princípio ativo - continuarão a ter de enfrentar o sistema judicial.

Por outro lado, a opção do PS de reformular o artigo 40º da lei de 1993 - que a lei 30/2000 revogara "excepto quanto ao cultivo" e que Eduardo Maia e Costa propunha revogar totalmente - cria uma dúvida que o DN colocou a Cláudia Santos e que a deputada não esclareceu: por que motivo não se propôs alterar o número 3 deste artigo, no qual se prevê que "se o agente [do cultivo] for consumidor ocasional, pode ser dispensado de pena"?

Porque deve um consumidor "não ocasional", portanto muito frequente, diário ou mesmo "dependente", ser mais penalizado por cultivar para consumo que aquele que apenas consome esporadicamente? De resto, por que motivo ter em casa um vaso ou dois com plantas de canábis deve ser crime, se deter a mesma quantidade (ou mais) da mesma planta, se comprada no mercado ilegal para consumo pessoal, não o é?

Fonte: Diário de Notícias