Empresas aceleram resposta a explosão do comércio online
Comércio online não estava dimensionado para procura massificada. Se a crise se prolongar por muito mais de dois meses poderão ter de ser chamados militares a assegurar o funcionamento das cadeias de abastecimento, acredita um especialista.
Odete Fernandes e Manuel Gomes não saem de casa há quase duas semanas. Fazem parte da população de risco face à covid-19, por isso quando precisaram de renovar o stock de alguns artigos na despensa optaram por fazer uma encomenda no Continente Online. Durante o processo de compra, Odete reparou que alguns produtos estavam esgotados — por exemplo, os cereais preferidos do neto ou o queijo fatiado da marca que sempre usou. Quando estava a tentar agendar a entrega percebeu que seria impossível antes de um prazo de três semanas. Mas nem tudo foram más noticias nesse dia: a frutaria onde Manuel Gomes há anos vai buscar os frescos aceitou uma encomenda por telefone e foi levar-lhes frutas e legumes a casa. Odete e Manuel continuam a não precisar de sair à rua, à espera que o perigo passe para poderem voltar a receber os netos em casa.
“A logística está a reagir a estes novos tempos, a reorganizar-se”, sintetiza Jaime Vieira dos Santos, especialista em logística e economia dos transportes, antecipando “tempos delicados” pela frente. Sem querer fazer futurologia, “até porque esta crise não tem prazo para acabar, e é a sua duração que vai ser determinante para a dimensão do problema”, arrisca em avançar com uma certeza: “Os próximos dois meses, dois meses e meio, vão ser muito duros”.
Portugal tem das maiores densidades comerciais por habitante da Europa, e actualmente quase todas as redes de distribuição alimentar mantêm as portas abertas, com horários restritos e com número de clientes no interior da loja limitado.
A procura pela compra através de plataformas online explodiu. “O e-commerce serve para o processo da encomenda. Mas para a entrega é precisa toda uma estrutura, desde o armazém até ao entregador, que estava dimensionada para um nicho gourmet e que não estava preparada para ser uma mass solution [solução de massa]. E agora é precisamente isso que está a ser pedido”, explica Vieira dos Santos.
Os recursos humanos serão, sempre, uma parte fundamental da cadeia logística, por mais que se robotizem armazéns e se criem plataformas. “E essa é a parte delicada desta situação: é preciso achatar a curva, diminuir o contágio, e todos concordamos com isso. Sabemos que 85% dos infectados não têm sintomas. Basta um funcionário ter infecção, mesmo que assintomático, para ser obrigado, e bem, a ficar em quarentena”, recorda o economista.
Acrescenta: “Todas as pessoas que contactaram com esse funcionário ficam em isolamento. Isto pode fazer com que todo uma empresa encerre. E há áreas, na logística, que é difícil de substituir. Um operador de guindaste para descarregar um navio precisa de uma formação de meses. Um piloto de barra, nem isso. Não pode ser substituído de todo”, exemplifica.
Fonte autorizada da Sonae, que detém o Continente Online, confirma que o acesso à plataforma “mais do que triplicou nas últimas semanas”. “Até ao momento o Continente tem realizado todos os esforços para conseguir dar resposta a este aumento da procura”, garantindo que, até agora, “não se registaram quebras de nenhum bem essencial”, refere a mesma fonte.
E se a Sonae não realiza, por agora, nenhum plano para reforçar equipas, os concorrentes Jerónimo Martins (Pingo Doce) e Lidl já avançaram com a intenção de contratar, em conjunto, 800 novos funcionários.
Para já a cadeia está a reorganizar-se, a dar prioridade aos essenciais, como os equipamentos de protecção e os medicamentos. Mas, prolongando-se a crise no tempo, Vieira dos Santos acredita que podemos chegar a um ponto em que é preciso questionar o que é prioritário: se um determinado medicamento ou o leite para dar a uma criança? Porque pode não chegar para tudo, e pode chegar a uma altura em que teremos de recorrer a militares para assegurar que o essencial continua a ser feito”, antevê.
António Nabo Martins, presidente da Associação dos Transitários de Portugal (APAT), diz que o sector está colocado “perante desafios constantes e permanentes”. “Mesmo as empresas que têm a cadeia muito bem oleada estão a ter problemas com as entregas, aparentemente não por dificuldade de mobilidade, mas por terem dificuldade em fazer face ao elevado número de encomendas. Dou um exemplo pessoal: uma encomenda, que normalmente demora 24 a 36 horas a ser entregue, desta vez demorou sete dias”, explica.
Nabo Martins confirma que os seus associados estão neste momento a dar prioridade “ao transporte de medicamentos, equipamentos médicos, equipamentos de protecção individual e inclusivamente o transporte de material médico enviado para análise para laboratórios”.
Mas toda a economia tem de continuar a circular, desde os bens alimentares essenciais até aos equipamentos electrónicos cuja compra foi sendo adiada, mas que agora se revela fundamental — nunca foi preciso uma impressora em casa, até ser preciso usar os suportes educativos que a escola envia para os miúdos em isolamento.
Os CTT, que asseguram muitas destas entregas porta a porta, o chamado last mile (última fase), dizem estar a verificar comportamentos distintos nos diversos sectores. “Há um forte crescimento nos produtos essenciais (higiene, saúde e alimentação) e em consumíveis, material informático e livros, muito alavancado pela oferta de ecommerce já existente. Por outro lado, verifica-se uma redução no retalho, devido ao encerramento das lojas, e no sector automóvel, pela diminuição da procura”, afirma ao PÚBLICO uma fonte da empresa.
Os Correios dizem ter capacidade para responder ao volume de tráfego actual e garantem que, “caso se venha a verificar um aumento desse mesmo tráfego”, irão ajustar a sua capacidade operacional em conformidade. “Estão a ser cumpridos os níveis de serviço ao cliente e estamos em permanente avaliação da nossa rede, no que diz respeito à “última milha”, uma vez que existem alterações nos pontos de recolha, devido ao encerramento de algumas (poucas) lojas CTT e lojas da nossa rede de parceiros e pontos de recolha”, notam.
Já a DHL Express Portugal, outra das empresas muito requisitadas para fazer esse serviço, diz estar operacional em todo o território português, e que mantém “todas as pessoas a trabalhar, quer em regime de smartworking, quer na linha da frente das operações e recepções”.
José António Reis, director geral da DHL em Portugal, recusa-se a informar sobre aumento de volume de encomendas, o numero de funcionários que tem ou que possam estar a cumprir isolamento. Apenas garante que “a DHL está operar na sua capacidade plena, tendo para isso ajudado a tomada de precauções desde a primeira hora”. O responsável da empresa refere-se tanto às medidas que respeitam à protecção dos colaboradores como dos clientes.
Carla Bastos Pinto, directora de marketing da Rangel, acusa a “responsabilidade acrescida” que tem o grupo “neste momento difícil para todos”. “Temos um papel activo e crítico na continuidade das cadeias de abastecimento, e isso obriga-nos a uma responsabilidade acrescida. Mas o crescimento da empresa ao longo de 40 anos sempre se deveu aos desafios que nos foram sendo colocados e acima de tudo, ao profissionalismo, empenho e dedicação de todos os colaboradores”.
Fonte: Público