Insolvências e fiscalidade foram os litígios mais invocados nos tribunais durante a crise
O impacto da crise nos tribunais foi objecto de um trabalho de investigação no plano das decisões tomadas, tendo em conta a aplicação de legislação produzida nos anos de crise e obrigações impostas pela troika, revela um estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos
O estudo divulgado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, traça uma radiografia à forma como os tribunais portugueses reagiram ao flagelo da crise face à apresentação de causas e matérias que emergiram neste contexto junto dos tribunais.
Num vasto trabalho intitulado "Os Tribunais e a crise económico financeira", divulgado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, que versa sobre a forma como a legislação da austeridade foi considerada e dirimida pelos tribunais superiores, desde o Tribunal Constitucional, ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ), passando pelos tribunais de Relação de Lisboa, Porto entre outros. Tribunal da Relação de Lisboa, Tribunal da Relação do Porto e Supremo Tribunal Administrativo.
Os cortes salariais efetuados quer nos trabalhadores da administração pública quer no privado, através dos escalões do IRS, a mudança de legislação sobre as chamadas falências (insolvências), as alterações legislativas em matéria fiscal, entre outras, deram origem a um número elevado de processos nestas áreas do direito, um pouco por todo o país.
Apesar de, como refere o estudo, a maioria da legislação ter sido ditada em sede de direito público por via de leis do Orçamento de Estado (taxas, impostos, contratação pública), "a maioria das decisões foram relativas ao direito privado". Porquê? O documento dá, de certa forma, a resposta ao sublinhar que a crise se fez sentir "não tanto pela via da legislação da austeridade, mas pela vida das dificuldades económicas, sociais e financeiras sentidas pelas famílias e pelas empresas", daí que os conflitos que chegaram aos tribunais traduziram esta tendência.
O trabalho parte da análise de 557 decisões em que a palavra 'crise' esteve não só presente nos acórdãos, como na base de decisões tomadas por via de alterações que condicionaram e alteraram a legislação em vigor. O flagelo da austeridade a isso conduziu. Objetivo: travar o endividamento do país, das empresas e das famílias.
O levantamento de dados sobre a adaptação e interpertação dos tribunais neste contexto foi um "trabalho pioneiro" como refere o estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos. E, o chamado "direito da crise" que abrange não só as alterações legislativas, como também as medidas traçadas pela troika, tornou-se "viral" nos tribunais superiores. Precisaram não só de se famializar com o conceito de austeridade como com a aplicação do direito que acabou por se traduzir naquilo a que o relatório chama de "jurisprudência da crise".As obrigações decorrentes do Programa de Ajustamento Económico e Financeiro, entraram no dia a dia dos tribunais e na sua análise face a uma panóplia de matérias e questões que foram suscitadas neste âmbito.
Entre as diversas conclusões do estudo, uma passa pelo facto de das 557 decisões analisadas, a maioria ter versado sobre processos de insolvências (22,09%), seguidas das matérias relacionadas com o fisco (10,69%), sobre matérias contratuais (10,10%) e relações laborais (7,84%). "Apenas 14,15% da legislação da austeridade foi invocada pelos tribunais", ou seja 58 diplomas, entre os cerca de 352 diplomas, sublinha o estudo. O trabalho adianta também, desde logo, que a maioria da legislação que ditou a austeridade aos portugueses se concentrou em 2012, sem prejuízo de outros regulamentos e obrigações posteriores.
Uma hierarquização que decorre do facto de a "amostra das decisões relacionadas com a temática da crise, não sendo exaustiva, é muito abrangente", pertencendo a maioria dos acórdãos à jurisdição judicial, 386 decisões (cerca de 69% do total). Os restantes cerca de 30 % encontram-se divididos entre a jurisdição administrativa e fiscal, cerca de 133 decisões (23,88 %) , sendo 38 dos acórdão ditados pelo constitucional (6,82 %).
No estudo com mais de 240 páginas, pode também concluir-se que a legislação decorrente da execução do memorando da troika foi a que mais contribuiu para o recurso aos tribunais e não, como se poderia pensar, das alterações decorrentes dos pacotes legislativos resultantes dos três Programas de Estabilidade e Crescimento , em particular o PECIII, responsável pelo corte de remuneração dos funcionários públicos.
Outra das conclusões a que o grupo de trabalhos chega tem a ver com o facto dos tribunais superiores, apesar de terem sido sensíveis aos argumentos do contexto de crise não se atravessaram por eles nas decisões tomadas. Ou seja, era preciso que os efeitos da crise fossem considerados de tal forma evidentes para que os tribunais o tivessem em consideração na decisão a proferir.
A "jurisprudência da crise" como são referidas as decisões tomadas no período que vai entre 2008 e 2017, três anos depois do fim da troika, ainda não se esgotou , já que como refere o estudo "os tribunais situamâse no fim da linha desta conjugação complexa de fatores, sendo chamados a decidir litígios concretos em que se jogam não apenas as circunstâncias concretas e individuais da lide, mas, também, este tipo de questões maiores e mais profundas, que, em última instância, atingem pessoas e empresas afetadas pela crise."
Fonte: Expresso/ Isabel Vicente