Discurso do Doutor Luís Menezes Leitão, Professor Catedrático da FDUL
Consulte o texto exposto pelo Doutor Luís Menezes Leitão, Advogado e Professor Catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa, no Congresso dos Juízes Portugueses
Tema: "A falta de protecção dos direitos fundamentais na jurisprudência do Tribunal Constitucional"
"1. O moleiro de Sans-Souci não teria o seu direito de propriedade protegido no Tribunal Constitucional português.
O papel dos tribunais na defesa dos direitos dos cidadãos costuma ser evidenciado pela célebre frase “ainda há juízes em Berlim”, resultante de um poema Le Méunier de Sans-Souci, da autoria do escritor francês François Andrieux. O poema refere a situação do Rei Frederico II da Prússia, que construiu o castelo de Sans-Souci, de onde disfrutava de uma vista magnífica. Havia, no entanto, um moinho que lhe estragava a vista do seu castelo. Por isso, o Rei decidiu chamar o moleiro e pediu-lhe que lhe vendesse o moinho. O moleiro responde, porém, que não o tenciona vender a ninguém. Perante a insistência do Rei, alega que o seu pai morreu no moinho e os seus filhos nasceram lá, pelo que quer conservar o moinho para si. O rei irritado, diz-lhe que pode obrigá-lo a vender o moinho, pois se quisesse também poderia tomá-lo pela força. O moleiro dá, porém, uma resposta que desarma o rei: “Vous!… de prendre mon moulin? Oui, si nous n’avions pas des juges à Berlin”. Aí o rei da Prússia, que tinha acabado de conquistar a Silésia, desiste de reclamar o moinho ao moleiro. O poema termina por isso com ironia, demonstrando que um governante à época estava mais livre na esfera internacional do que na esfera interna: “Il mit l’Europe en feu. Ce sont lá jeux de prince. On respect un moulin. On vole une province”.
Infelizmente em Portugal, o moleiro de Sans-Souci não teria sorte nenhuma perante a jurisprudência do nosso Tribunal Constitucional, que decidiu pela perfeita conformidade constitucional da venda forçada, instituída pelo Decreto-Lei 307/2009, de 23 de Outubro, que aprovou um Regime Jurídico da Reabilitação Urbana. Efectivamente, o Acórdão 421/2009 de 13 de Agosto de 2009, considerou a venda forçada constitucional, apesar de não estar prevista na Constituição como restrição ao direito de propriedade no art. 62º, nº2, que apenas autoriza a requisição e a expropriação por utilidade pública. O Tribunal Constitucional defende, porém, que o “que confere inteligibilidade e sentido a esta autorização, assim recortada, não é apenas o facto de a ela se referir textualmente a Constituição, no n.º 2 do artigo 62.º. Conferem-lhe também inteligibilidade e sentido as próprias razões materiais que, na ordem constitucional, sustentam a sua existência. E essas razões, já o vimos, são sobretudo aquelas que se prendem com a necessária harmonia e equilíbrio, a estabelecer por lei, entre os interesses dos proprietários e outros valores e interesses constitucionalmente protegidos”. Ou seja, nesta decisão o Tribunal Constitucional faz tábua rasa da proibição constitucional de restringir os direitos, liberdades e garantias fora dos casos expressamente previstos na Constituição (art. 18º, nº2), argumentando que “como nenhuma constituição é apenas um texto, a autorização que a Constituição portuguesa confere para que um certo e determinado direito venha a ser, por lei, restringido, não pode ser entendida assim, nesses apertados termos, como uma estrita exigência de textualidade”. Ou seja, para o Tribunal Constitucional, a inexistência de um preceito expressamente previsto na Constituição a autorizar aquela restrição aos direitos, liberdades e garantias já não é obstáculo a que a mesma seja decretada, substituindo as normas constitucionais por uma retórica vaga sobre a “harmonia e equilíbrio” de interesses. Toda a protecção constitucional dos direitos, liberdades e garantias é ser assim posta em causa pelo órgão que a deveria precisamente salvaguardar: o Tribunal Constitucional.
Em consequência, provavelmente o Tribunal Constitucional diria ao moleiro de Sans-Souci que tinha que compatibilizar o seu direito de propriedade com o interesse paisagístico em que a vista do castelo do rei não fosse perturbada e lá legitimaria esta venda forçada.
2. A jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre o congelamento de rendas.
Outro exemplo do défice de protecção da Constituição por parte do Tribunal Constitucional reside na sua jurisprudência sobre o congelamento de rendas, que desde há 100 anos vigora em Portugal, privando muitos proprietários dos seus direitos constitucionais. Esse congelamento foi efectivamente iniciado pelo Decreto de 12 de Novembro de 1910, que viria a congelar as rendas pelo prazo de um ano, tendo-se sucedido sucessivos diplomas a congelar as rendas, a pretexto das crises financeiras que ocorreram durante e após I Guerra Mundial. Depois desta data, os contratos antigos iam sucessivamente ficando com rendas congeladas, apenas se permitindo a sua actualização com base no rendimento fiscal dos prédios, normalmente fixado em anos muito anteriores. No caso particular das rendas das habitações de Lisboa e Porto a sua última actualização foi feita em 1948 e apenas com base no duodécimo do rendimento ilíquido inscrito na matriz em 1 de Janeiro de 1938 (art. 47º da Lei 2030, de 21 de Janeiro de 1948). Desde então não voltou a haver qualquer actualização das rendas antigas, mas apenas a partir de 1985 uma recuperação simbólica do seu valor através da inflação (Lei 46/85, de 20 de Setembro), a qual parte de valores tão baixos que continua a manter as rendas antigas num valor meramente simbólico.
É manifesto que esta situação é inconstitucional. No entanto, oTribunal Constitucional Português autorizou pacificamente esta escandalosa violação dos direitos dos proprietários, tendo tornado praticamente nula a garantia do direito de propriedade instituída no art. 62º da Constituição, ao obrigar os proprietários a assumir as funções da segurança social do Estado. Assim, no Ac. 263/00, confrontado com a questão do controlo das rendas, o Tribunal Constitucional conclui que numa propriedade sujeita a rendas congeladas: “o «núcleo» ou dimensão essencial do direito de propriedade do senhorio não é posto em crise pelos normativos sub specie, que aos interesses dos cidadãos em verem garantido o seu direito à habitação não é alheia a vinculação dos particulares, chamados, com o seu direito de propriedade, a cumprir a função social decorrente daquele direito à habitação, a par com as incumbências que o Estado deve prosseguir, e que a escassez do mercado habitacional reclama a adopção de medidas tendentes a conseguir a preservação do direito de habitação, como um valor indubitavelmente protegido pela Lei Fundamental, igualmente se haverá de concluir que as normas em apreço, ao conferir características vinculísticas ao contrato de arrendamento para habitação, designadamente no que se reporta à sua livre revogação por banda do senhorio e às limitações quanto à actualização da contrapartida pelo desfrute do arrendado, se não configuram como ultrapassando um modo adequado e proporcionado de resolução do conflito que, à partida, se postaria entre um e outro daqueles direitos”. Este acórdão demonstra bem o que é para o Tribunal Constitucional a dimensão essencial dos direitos de propriedade dos senhorios: pagar os impostos sobre a propriedade, fazer as obras no prédio e nada receber dos inquilinos, em virtude da sua função social de assegurar a outros o seu legítimo direito a habitação. Mas haverá algum Tribunal Constitucional no mundo, a não ser o de Portugal, que ache que o núcleo essencial de um direito está salvaguardado quando o mesmo é convertido apenas em obrigações?
Obviamente que não há, e por isso esta decisão do Tribunal Constitucional Português não apenas afronta a Constituição mas também a própria Convenção Europeia dos Direitos do Homem. No Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no caso Hutten-Czapska v. Poland (appl. no. 35014/97) já se considerou contrário ao direito de propriedade, reconhecido no art. 1º do Protocolo Adicional à CEDH, a existência de um regime de controlo de rendas num Estado. Recentemente, esse processo terminou por acordo em que o Estado Polaco aceitou pagar à senhora Marie Hutten-Czapska a quantia de € 262.500 resultantes dos anos em que as rendas dos seus imóveis foram fixadas abaixo do valor de mercado . Este importante Acórdão é igualmente citado no Comentário à Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, cujo art. 17º reconhece igualmente nos mesmos termos o direito de propriedade, onde se sustenta que, embora o Estado tenha uma margem de apreciação relativamente à tutela da habitação, não lhe é permitido estabelecer um controlo de rendas em termos tais que não permita aos proprietários cobrir os custos da recuperação dos edifícios nem obter um lucro mínimo a partir da sua propriedade .
Perante esta clara divergência de posicionamento e de perspectiva entre os tribunais europeus e o Tribunal Constitucional não admira que haja tantos portugueses a recorrer aos tribunais europeus para defesa dos seus direitos fundamentais, que não se encontram adequadamente tutelados na ordem jurídica nacional, devido à jurisprudência do Tribunal Constitucional.
3. A jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a retroactividade da lei fiscal.
Desde a revisão constitucional de 1997 que se encontra consagrado no art. 103º, nº3, da Constituição um direito de resistência dos contribuintes a não pagar impostos que tenham natureza retroactiva. Em consequência, o art. 12º, nº1, da Lei Geral Tributária proíbe a criação de impostos retroactivos, estabelecendo o seu nº2 que, em relação a factos tributários de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor. Em face do ordenamento jurídico português, é assim claríssima a proibição da retroactividade fiscal. Poderão perguntar então por que é que todos os dias têm surgidos leis fiscais retroactivas. A resposta é simples: porque o Tribunal Constitucional criou uma jurisprudência permissiva em relação à retroactividade fiscal e recusou-se a modificá-la, mesmo depois de ter sido alterada a Constituição a proibir expressamente a retroactividade fiscal.
Efectivamente, desde já o célebre Acórdão 11/83, em que o Tribunal Constitucional deu a sua benção ao imposto extraordinário retroactivo aprovado pelo Bloco Central, este Tribunal tem mostrado uma enorme permissividade em relação à retroactividade fiscal. Para esse efeito criou uma especiosa distinção entre a retroactividade própria e a “retroactividade inautêntica” ou “retrospectividade”, defendendo que, salvo em matéria penal, não chega a haver retroactividade se a lei nova for aplicada alterando os efeitos de factos só parcialmente produzidos antes da sua entrada em vigor. Nesses casos, a norma só seria inconstitucional se alterasse de forma “inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente” a situação, acabando sempre o Tribunal Constitucional por considerar as normas em questão como admissíveis, toleráveis, justas, pouco onerosas e consistentes (cfr., entre outros, os Acórdãos 232/91, 486/97, e 467/03).
A permissividade do Tribunal Constitucional em relação à retroactividade fiscal atingiu, porém, o extremo no Acórdão 399/2010, onde perante as sucessivas leis fiscais retroactivas surgidas em 2010 o Tribunal Constitucional veio declarar que “as Leis n.ºs 11/2010 e 12-A/2010 prosseguem um fim constitucionalmente legítimo, isto é, a obtenção de receita fiscal para fins de equilíbrio das contas públicas, têm carácter urgente e premente e no contexto de anúncio das medidas conjuntas de combate ao défice e à dívida pública acumulada, não são susceptíveis de afectar o princípio da confiança ínsito no Estado de Direito, pelo que não é possível formular um juízo de inconstitucionalidade sobre a normas dos artigos 1.º e 2.º da Lei n.º 11/2010, de 15 de Junho, nem sobre as normas dos artigos 1.º e 20.º da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de Junho, na medida em que estes preceitos se destinam a produzir efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2010”. Ou seja, o critério passou a ser de que o fim constitucionalmente legítimo de combate ao défice e à dívida pública permite claramente sucessivas alterações fiscais retroactivas durante o exercício em curso. Com base neste critério, os contribuintes perderam toda a segurança jurídica em relação às leis fiscais, não tendo qualquer possibilidade de elaborar um orçamento anual que que lhes permita prever os encargos fiscais a suportar durante o ano.
4. A posição do Tribunal Constitucional sobre o corte de salários.
O corte dos salários dos funcionários públicos é claramente inconstitucional, seja qual for a qualificação que se lhe dê. Pessoalmente entendo que se trata de um confisco, uma vez que os salários das pessoas são confiscados pelo Estado, que unilateralmente se recusa a cumprir os compromissos que perante estas assumiu sem, porém, declarar a bancarrota, que afectaria todos os credores por igual. Houve, porém, quem qualificasse a situação como um imposto sobre os salários, incluindo o próprio Presidente da República.
Em qualquer dos casos, é certo que o corte de salários é inconstitucional. Sendo qualificado como um confisco, é constitucionalmente proibido, uma vez que o art. 62º, nº2, a Constituição proíbe o confisco, apenas admitindo a requisição e a expropriação por utilidade pública e sempre mediante justa indemnização. Sendo qualificado como um imposto, é evidente que está a ser violada não apenas a igualdade tributária (art. 13º da Constituição) mas a própria universalidade do imposto (art. 12º da Constituição), ao se criar um encargo fiscal que recai apenas sobre uma categoria de cidadãos. Efectivamente, impostos que abrangem apenas algumas pessoas só existem em tristes exemplos históricos, como foi em Portugal a judenga, imposto que abrangia apenas os judeus, ou, na Alemanha nazi, o imposto criado pela lei de 21 de Novembro de 1938, que determinou a cobrança de mil milhões de marcos através de uma taxa de 20% sobre o património detido pelos judeus alemães. É evidente que nenhuma Constituição pode permitir semelhante monstruosidade e claramente que a nossa não o faz.
Mais uma vez, no entanto, o Tribunal Constitucional através do seu acórdão 396/2011 veio dar o seu nihil obstat ao corte de salários. A fundamentação é que o princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos não impede o Estado de optar por um corte de salários em lugar de lançar impostos. A explicação é esta: “A fundamentação de que aquele princípio tem uma projecção constringente nesta matéria (não como princípio estruturante, mas como princípio impositivo do sistema fiscal), predeterminando o tipo de soluções disponíveis e retirando ao decisor político democraticamente legitimado qualquer margem de livre opção, é algo que fica por fazer. E esse ónus de fundamentação teria que ser satisfeito, pois a definição dos encargos públicos e dos seus limites − o que está aqui em causa – situa-se a montante da questão da sua repartição, sem com ela se confundir. O princípio constitucional da igualdade perante os encargos públicos não pode, pois, ser automaticamente transposto, sem mais, para este campo problemático”. O decisor político está, portanto, no entender do Tribunal Constitucional neste campo problemático livremente legitimado a cortar salários à função pública, fazendo-os pagar sozinhos a crise. E como o campo é problemático “não cabe, evidentemente, ao Tribunal Constitucional intrometer-se nesse debate, apreciando a maior ou menor bondade, deste ponto de vista, das medidas implementadas. O que lhe compete é ajuizar se as soluções impugnadas são arbitrárias, por sobrecarregarem gratuita e injustificadamente uma certa categoria de cidadãos”. E, como não poderia deixar de ser, o Tribunal Constitucional diz logo que “não pode afirmar-se que tal seja o caso. O não prescindir-se de uma redução de vencimentos, no quadro de distintas medidas articuladas de consolidação orçamental, que incluem também aumentos fiscais e outros cortes de despesas públicas, apoia-se numa racionalidade coerente com uma estratégia de actuação cuja definição cabe ainda dentro da margem de livre conformação política do legislador. Intentando-se, até por força de compromissos com instâncias europeias e internacionais, conseguir resultados a curto prazo, foi entendido que, pelo lado da despesa, só a diminuição de vencimentos garantia eficácia certa e imediata, sendo, nessa medida, indispensável. Não havendo razões de evidência em sentido contrário, e dentro de “limites do sacrifício”, que a transitoriedade e os montantes das reduções ainda salvaguardam, é de aceitar que essa seja uma forma legítima e necessária, dentro do contexto vigente, de reduzir o peso da despesa do Estado, com a finalidade de reequilíbrio orçamental. Em vista deste fim, quem recebe por verbas públicas não está em posição de igualdade com os restantes cidadãos, pelo que o sacrifício adicional que é exigido a essa categoria de pessoas – vinculada que ela está, é oportuno lembrá-lo, à prossecução do interesse público - não consubstancia um tratamento injustificadamente desigual”. Aqui não temos outra coisa do que a clássica doutrina de que os fins justificam os meios, declarando o Tribunal Constitucional expressis verbis que o fim de redução da despesa legitima que uma categoria de cidadãos deixe de poder aspirar a ser tratado de forma igualitária com os outros cidadãos. Como se calcula, é uma afirmação que nunca esperaríamos ver proferida num Tribunal Constitucional.
5. A configuração do Tribunal Constitucional como órgão político.
Perante estes exemplos de decisões, na nossa opinião flagrantemente contrárias à Constituição, há apenas uma conclusão a tirar: a de que o Tribunal Constitucional não desempenha entre nós as funções que são classicamente atribuídas aos Tribunais Constitucionais: assegurar o respeito pela Constituição e proteger os cidadãos contra os actos legislativos que atinjam os seus direitos fundamentais. O nosso Tribunal Constitucional prossegue antes outras funções: uma função de legitimação política de actos legislativos suspeitos de inconstitucionalidade e uma função de controlo das decisões dos outros Tribunais que pretendam exercer a fiscalização difusa da constitucionalidade. Ou seja, graças a esta configuração do Tribunal Constitucional, o juízo de constitucionalidade, que deveria ser um juízo eminentemente jurídico, é transformado num juízo político, prevalecendo sempre esse juízo político sobre as decisões jurídicas dos tribunais comuns.
Podemos tentar perceber como é que o Tribunal Constitucional português vem a funcionar de uma maneira tão diferente do modelo tradicional dos Tribunais Constitucionais. A explicação encontra-se precisamente no modelo adoptado para a fiscalização abstracta da constitucionalidade na Constituição de 1976, que na sua versão original era um modelo assumidamente de fiscalização por um órgão político, o Conselho da Revolução, que decidia politicamente, ainda que com o recurso a um parecer jurídico, elaborado por um órgão externo, a Comissão Constitucional, que não era vinculativo para a sua decisão . Esse modelo foi pouco alterado com a revisão constitucional de 1982, uma vez que a fiscalização da constitucionalidade continuou a depender de um órgão político, agora o Tribunal Constitucional, cujos membros são escolhidos pelos partidos com base em critérios políticos. A diferença entre a fase anterior a 1982 e a fase posterior é de que o parecer jurídico que serve de base à decisão política passou a ser elaborado pelo próprio órgão de fiscalização da constitucionalidade, que se assume assim como tribunal, embora crie uma jurisprudência politicamente orientada, em absoluto variável de acordo com as exigências políticas do momento, que nada tem a ver com o texto constitucional, e às vezes até se permite criticá-lo.
Este é o resultado claro do processo de designação dos juízes do Tribunal Constitucional, que assenta numa designação partidária, ainda que formalmente ocorra uma eleição de dez dos seus membros pela Assembleia, por maioria de dois terços, e depois uma cooptação de outros três por esses. Este sistema de designação de juízes não tem paralelo na Europa , tendo suscitado perplexidade no momento em que foi adoptado . Ao que se explica deixou-se de fora a possibilidade de o Presidente nomear juízes, que todos os projectos consagravam, devido ao conflito que o PS e a AD então travavam contra o General Eanes, em cuja ideologia pessoal não se reviam . Assim escolheu-se um modelo de designação assente na eleição por dois terços dos deputados e posterior cooptação pelos juízes eleitos, mas que na prática se reconduzia à escolha de quatro juízes próximos do PSD, quatro do PS, dois do PCP e dois do CDS, havendo ainda um neutro a quem competiria gerir os equilíbrios entre a esquerda e a direita no Tribunal. Depois, e especialmente a partir de 2003, o órgão que era multipartidário passou a bipartidário, com seis juízes próximos do PS, seis do PSD e um neutro, que mais uma vez asseguraria o equilíbrio .
Anteriormente a 1998 os juízes ainda eram eleitos individualmente pelos deputados. Actualmente a eleição é obrigatoriamente por lista (art. 14º, nº1, LOTC), em ordem a evitar que possa ser rejeitado pelos deputados algum dos escolhidos, assim se quebrando o acordo partidário firmado. Por isso, no acordo partidário têm chegado a ser escolhidos os juízes a cooptar e o próprio Presidente do Tribunal, quando formalmente essas escolhas cabem aos juízes do Tribunal por voto secreto .
Como se pode calcular, este processo de escolha acentua a dependência dos juízes em relação ao partido que os escolheu, sendo que, quando o mandato era renovável, o juiz sabia que, se votasse contra as posições do seu partido, o mais provável é que não lhe fosse renovado o mandato . Poderia pensar-se que esse constrangimento desapareceu quando se estabeleceu que os mandatos deixaram de ser renováveis, mas tal não corresponde à verdade. Isto porque os juízes do Tribunal Constitucional têm muitas vezes uma carreira política, que pode ser prejudicada se hostilizarem o partido que os indicou . Mas mesmo que não exista uma carreira política, basta pensar no facto de que na escolha do Presidente do Tribunal, a que os juízes podem aceder, tem sido decisiva a posição dos partidos.
Parece-nos por isso claro que o nosso Tribunal Constitucional constitui um órgão político, cujas decisões são políticas, visando essencialmente fins de legitimação política. Ora, tal implica que a defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, nesta época de crise financeira, não esteja assegurada no nosso sistema jurídico. Na verdade, como já se viu, o Tribunal Constitucional considerará todas e quaisquer medidas, por mais atentatórias dos direitos dos cidadãos que sejam, como legitimadas pelo estado de emergência existente, mesmo que o mesmo não tenha sido constitucionalmente decretado. E os tribunais comuns estão impedidos de defender a Constituição, uma vez que, dado que há recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, a jurisprudência permissiva deste acabará sempre por prevalecer.
6. Conclusão.
Consequência provável disto é que em breve poderemos ouvir um discurso semelhante ao que Passos Manuel uma vez pronunciou no Parlamento, após a Revolução Setembrista: "Senhor Presidente, exercemos a ditadura; e eu confesso francamente que violamos um sem número de artigos da Constituição de 22 (…). Somos filhos da revolução e a revolução pode destruir trono, altar, leis e Constituição". Substitua-se nesta citação a palavra "revolução" por "crise financeira" e ver-se-á que não estamos longe da mesma realidade.
Penso que por isso nestre momento o que todos os portugueses desejam é ficar seguros, como o Moleiro de Sans-Souci, de que há juízes, não apenas em Berlim, mas também em Portugal, capazes de os proteger contra as arbitrariedades do poder político. É esta a condição essencial para a subsistência de Portugal enquanto Estado de Direito."