Discurso do Juiz de Direito Manuel Soares, membro do Conselho Geral da ASJP
Pode analisar aqui o texto do discurso do Juiz de Direito Manuel Henrique Ramos Soares, membro do Conselho Geral da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, no 9º do Congresso dos Juízes Portugueses.
Tema: "Os Processos não são pessoas de Papel"
"Diz-se que a parte mais difícil para o compositor duma música é acabá-la…
Aqui, com pouco tempo para prender o vosso interesse, o mais difícil é começar. Por isso vou direto ao assunto: quero chegar à conclusão de que na actual situação de emergência nacional os tribunais devem assumir-se como entidades políticas e os juízes devem tomar consciência do conteúdo e impacto político das suas decisões.
Para isso irei falar num ativismo judicial compatível com a democracia representativa e com a separação de poderes. Irei notar que o conservadorismo dominante na nossa cultura jurídica é inimigo dessa maior intervenção social dos tribunais. E por fim irei concretizar os limites dum modelo de ativismo possível, com alguns exemplos práticos que o podem pôr à prova.
O mito de que o juiz é o intérprete passivo da norma positiva não passa duma verdade arrumada nos arquivos da história do pensamento político. Nas sociedades atuais já ninguém contesta a centralidade dos tribunais no jogo democrático e a emancipação do judiciário – o que antes era apenas uma função técnico-burocrática é agora sobretudo um poder da política. Como se dizia na apresentação do último congresso dos juízes «o poder judicial está convocado para um outro exercício da democracia».
Em momentos de crise como a que atravessamos a receita dos governos é sempre a mesma: comprimir direitos, desmantelar prestações sociais, muscular os mecanismos de repressão, suspender a constituição e utilizar os tribunais como instrumentos para impor coercivamente as suas políticas. Ora, é precisamente nesses momentos de choque entre o poder e o direito que a sociedade mais reclama dos tribunais como instância independente de controlo do abuso e de proteção dos mais fracos. E aí, de repente, os juízes vão dar por si num espaço que parecia exclusivo da política
Em muitos países fala-se em ativismo judicial para designar a ampliação do poder dos tribunais no controlo dos outros poderes públicos e na promoção dos direitos individuais. Este conceito – judicial activism – foi usado pela primeira vez em 1947 pelo jornalista americano Arthur Schlesinger quando assinalou a tendência dos juízes do supremo tribunal interpretarem as leis vinculados a um dever de garantir os direitos e de ampliarem os seus próprios poderes de guardiães dos princípios basilares da constituição. Nessa época a jurisprudência do Supremo Tribunal dos Estados Unidos foi o motor de grandes transformações na sociedade americana, quando, por exemplo, proibiu a segregação racial nas escolas públicas em 1954 e descriminalizou o aborto em 1973. Ainda recentemente, em 2010, proferiu uma decisão marcante ao afastar a proibição do reconhecimento do casamento de pessoas do mesmo sexo na califórnia.
No Brasil o ativismo do Supremo Tribunal Federal tem estado na mira dos que criticam e dos que apoiam uma intervenção mais efetiva dos juízes. Três exemplos de decisões recentes muito comentadas: a determinação da perda de mandato do político eleito que muda injustificadamente de partido, a imposição do reconhecimento do direito à greve no serviço público e a proibição do nepotismo na administração pública, impedindo que políticos e dirigentes nomeiem para quaisquer cargos os seus familiares ou de colegas.
Também em Espanha surgiu em dezembro do ano passado o caso muito interessante da decisão da Audiência Provincial de Navarra que confirmou a sentença do tribunal de Estella/Lizarra, negando por abuso de direito a pretensão do banco continuar a execução do património do devedor para cobrar o remanescente da dívida não satisfeita pela venda judicial do imóvel hipotecado para garantia de empréstimo habitacional.
Estes exemplos mostram-nos que os juízes por todo o lado estão a ganhar outra consciência do impacto público e da função social das suas decisões. Embora por vezes pagando o preço elevado da exposição à crítica. Diz-se que ultrapassam a interpretação da lei e usam os seus poderes para influenciar as políticas públicas, ou que se guiam por convicções pessoais acerca da bondade dessas políticas, interpretando a lei de forma ínvia para verem nela não a norma que o legislador criou mas a norma que eles teriam criado se fossem legisladores.
Estas críticas alertam-nos para as questões da legitimidade e dos limites do ativismo dos juízes e para a prevenção de voluntarismos que levem a atuação dos tribunais longe demais. Um ativismo judicial inovador de “interpretação ilimitada da norma”, que crie direitos não contemplados no ordenamento jurídico com base numa explicitação de valores que a comunidade não reconhece, que faça um errado balanceamento entre interesses particulares e interesse público, ou, pior, que esteja ao serviço de morais ou ideologias pessoais ou de grupo, será muito condenável e ultrapassará os poderes democraticamente atribuídos aos juízes.
O texto da apresentação deste congresso, quando se refere à «revaloriza[ção] [d]a jurisprudência como instrumento vital de criação e revelação do direito, a partir da sociedade e por causa dela, sustentado em princípios desenvolvidos de acordo com níveis de coerência argumentativa e ancorado no sentido de justiça», dá-nos uma boa definição dum ativismo judicial respeitador das regras democráticas. Não vejo aqui um apelo revolucionário para que os juízes ocupem o lugar do legislador porque a decisão judicial terá sempre de legitimar-se na lei. Mas isso não significa que o juiz tenha de estar algemado aos artigos dos códigos, uma vez que a revelação do seu sentido concreto há de ter sempre como referencia os princípios do Direito e da Justiça.
Em 2008 aprovámos um “Compromisso Ético” que consagrou o “Humanismo” como um dos 7 atributos fundamentais da ética judicial, definindo-o da seguinte forma: «o exercício do poder judicial, ao atribuir ao juiz um papel criador na interpretação e aplicação da lei, vincula-o aos valores da justiça e aos princípios humanistas da dignidade da pessoa humana e da igualdade»; «diante da multiplicidade e heterogeneidade dos casos levados a julgamento, o juiz tem sempre presente que a Justiça e o Direito não se esgotam na interpretação estritamente positivista e legalista das normas e que toda a decisão deve ser substancialmente justa, humana e respeitadora dos direitos fundamentais do Estado de direito democrático». Esta proclamação dum maior ativismo dos juízes na promoção dos direitos fundamentais e dos valores da Justiça e do Direito tem de tornar-se uma prática consistente e visível, todos os dias, em cada tribunal, em cada processo.
Esta é para mim a nova geração de questões que mais nos devem interessar. Os 35 anos da nossa história judiciária estão carregados de páginas e páginas de reflexão teórica sobre os problemas instrumentais da independência, da organização, da gestão, da representação, da comunicação e dos direitos dos juízes. Mas quando deixamos de olhar para trás e nos viramos para o futuro, o que vemos de mais interessante à nossa frente é esta discussão sobre o que deve ser o sentido humanista da jurisprudência e o que podem os tribunais fazer para compreenderem melhor a sociedade e merecerem mais a confiança dos cidadãos.
No início falei em política e é disso que tenho estado sempre a falar. Quanto um tribunal actua como instância de defesa dos cidadãos contra os abusos de poder das instituições político-representativas ou de outros poderes económicos e sociais, está a fazer política. Quando se assume como entidade reveladora dos valores fundamentais do ordenamento jurídico da comunidade, está a fazer política. Quando usa critérios de conveniência e oportunidade para regular fundamentadamente o caso a partir de normas de conteúdo aberto com diversos sentidos jurídicos, está a fazer política. Quando reconstrói o pensamento do legislador para revelar o sentido último da lei a partir da regra que ele teria consagrado, está a fazer política. Quando faz prevalecer o critério da verdade sobre o critério da maioria, recusando a aplicação de lei escrita contrária à constituição, está a fazer política. E quando anula o ato da administração e determina qual é o ato devido ao particular para refazer o direito violado, está também a fazer política.
Por isso, dizer que os tribunais participam na política não é um desafio à autoridade dos órgãos legislativos e executivos. É a Constituição que diz aos tribunais para assegurarem a defesa dos direitos e interesses dos cidadãos e reprimirem a violação da legalidade democrática. É a Constituição que diz ao juiz para não aplicar leis contrárias aos seus princípios. É a Constituição que diz ao juiz para aplicar diretamente as normas sobre direitos, liberdades e garantias e direitos fundamentais. É a Constituição que confere obrigatoriedade e prevalência às decisões dos tribunais sobre todas as entidades públicas e privadas. É a Lei que dá aos supremos tribunais a competência para uniformizar a jurisprudência. É a Lei que permite ao juiz condenar a administração a praticar o ato devido ao cidadão. É a Lei que manda o juiz procurar o sentido da norma ou criar a norma omissa tendo em conta o pensamento que o legislador teria tido, a unidade do sistema jurídico e as condições específicas do momento. É a Lei que manda o juiz reprimir o abuso de direito. É a Lei que atribui ao juiz a função de descortinar interesses difusos e interesses coletivos. E é a Lei que diz ao juiz para aplicar normas de conteúdo aberto e adaptável com conceitos como por exemplo boa fé, ordem pública, bons costumes, fim social e económico do direito, colisão de direitos, culpa, equidade, alteração de circunstâncias, cláusula abusiva, legítima defesa, estado de necessidade e tantos outros.
Portanto, a afirmação dum ativismo judicial legitimado na Constituição e na Lei não é um ato revolucionário mas sim, pelo contrário, o ato democrático que dá toda a razão de ser à independência e soberania dos tribunais como instâncias de defesa dos direitos e proibição dos abusos.
Aliás, é o próprio Conselho da Europa que na sua Recomendação (94) 12 sobre a independência, eficácia e papel dos juízes aponta esse caminho do reforço da intervenção dos tribunais na sociedade, sugerindo aos Estados-membros que desenvolvam políticas e medidas de promoção do papel dos juízes na proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais.
Se tivesse de condensar numa frase a legitimidade e necessidade desse ativismo citaria Azeredo Perdigão, antigo presidente da Fundação Calouste Gulbenkian: «a justiça depende mais dos juízes do que das leis que eles aplicam».
Se é óbvio que nos momentos de crise é maior a fraqueza dos mais fracos perante a força dos mais fortes, então também tem de ser óbvia a necessidade dos juízes estarem aí mais atentos ao conteúdo substancial dos direitos e reprimirem os abusos de poder. Só que em Portugal isso é muito dificultado pela imagem social negativa dos tribunais, que acaba por condicionar a ação dos juízes.
Segundo o inquérito aos sentimentos de justiça coordenado pelo Professor António Manuel Espanha em 2005, 62% dos inquiridos mostravam-se insatisfeitos com a instituição tribunal, 66,9% considerava que a justiça funciona mal, 53,2% que era permeável a interesses políticos, económicos e financeiros e 69,7% que a linguagem judicial não era acessível. Os números mostram-nos que como concluiu o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra no relatório “O Sistema Judicial e os Desafios da Complexidade Social”, já não está só em causa o aumento da eficiência e qualidade do sistema judicial mas a sua renovação democrática no sentido de corresponder melhor às expectativas dos cidadãos.
Esta falta de confiança no sistema judicial é um produto da crise mas é também um fator que a agrava. Ela não favorece a legitimação das decisões controversas que os tribunais possam ter de tomar. Nem favorece o recurso à justiça por parte daqueles que mais precisam dela para corrigir as desigualdades.
Não é preciso ser bruxo para antecipar os efeitos do possível desastre económico e social que está à nossa frente. Recessão, desemprego, exclusão, pobreza, degradação generalizada das condições de vida, retrocesso nos direitos sociais, impossibilidade das pessoas cumprirem os seus compromissos e levarem uma vida digna, aumento da litigância e da criminalidade e no limite final, alterações da ordem pública, desobediência civil, tumultos, repressão policial e uma grave crise democrática. Quem estará no fim dessa linha? Os tribunais! Com o Estado a exigir-lhes que mantenham a lei e a ordem em nome da emergência nacional, as empresas a querer assegurar a continuidade dos negócios e os cidadãos mais vulneráveis procurando defender os direitos e liberdades e assegurar a sua subsistência.
Se o pior cenário ocorrer, daqui a uns anos, depois de assentar a poeira, quando se for construir qualquer coisa nova em cima das cinzas do que acabou, não tenho a menor dúvida de que o pior que nos pode acontecer é ninguém ter dado pelos tribunais e pelos juízes. Isso significará que fomos completamente inúteis e que os tribunais são socialmente irrelevantes.
Do meu ponto de vista os tribunais terão de estar do lado da proteção dos mais fracos e desfavorecidos, fiscalizando ativamente a legalidade da compressão dos direitos e não permitindo que o estado de emergência sirva de pretexto para todos os desmandos e atropelos. Não se trata de ter uma agenda contra o fim do Estado social – essa é uma opção política da democracia representativa – trata-se de proteger os direitos de acordo com os valores da Justiça consagrados na Constituição, pelo menos enquanto ela não for mudada. O difícil trabalho dos juízes nos próximos tempos de crise será fazer prevalecer o critério do justo e da verdade sobre o critério da autoridade e da maioria.
Tudo seria mais fácil se a nossa cultura jurídica não fosse tão conservadora e pouco dada a ativismos. Os advogados dificilmente desafiam os juízes com questões novas e interessam-se mais por uma vitória na secretaria do que pela luta aberta no plano dos argumentos. O Ministério Público é o que é, burocrático, repetitivo e também ele pouco desafiador. E os juízes também são o que são, restritivos na aplicação dos seus poderes processuais e mais confortáveis com a segurança do precedente que dá a solução imediata ao caso do com o risco da solução inovadora baseada em valores e princípios não expressos no texto da lei.
Num acórdão de uniformização de jurisprudência do STJ de 1996 há duas passagens que vou citar e que põem bem em confronto duas formas de julgar e interpretar a lei: na primeira, que fez vencimento, escreveu-se «em resumo, a interpretação defendida é a que melhor se adequa à legislação vigente à data dos factos (…). Se ela, por vezes, não será a solução mais justa, nunca se poderá esquecer que o juiz não é o legislador e deve obediência à lei»; e a segunda, vencida, citando Cabral de Moncada, dizia: «“o direito tem de estar ao serviço da vida e o pensamento deve acompanhar a evolução social”, o que vale por dizer, o próprio sentimento de justiça, naturalmente evolutivo». Entre a obediência estrita a uma interpretação injusta da lei ou a construção duma interpretação conforme à justiça, o nosso mais alto tribunal acabou por fazer prevalecer a injustiça. Ora, um tribunal que aplica conscientemente uma lei que produz a injustiça nega-se a si próprio e serve de pouco à sociedade.
Não tenho instrumentos para medir o grau de conservadorismo ou progressismo dos nossos tribunais. Posso até ser injusto quando falo na cultura conservadora dos tribunais e certamente há decisões notáveis que não chegam a ser conhecidas. Seja ou não por isso, não é fácil apontar casos marcantes que tenham influenciado a sociedade e a política como naqueles exemplos dos Estados Unidos, do Brasil ou da Espanha. Se usarmos como amostragem as decisões de uniformização de jurisprudência dos Supremos Tribunais de Justiça e Administrativo encontramos os indícios desse apagamento.
Nos 211 assentos e acórdãos uniformizadores do STJ compilados na Coletânea de Jurisprudência, 45% foram sobre assuntos formais e processuais, o que é manifestamente excessivo. Nos outros sobre as questões substantivas também não ressalta uma orientação consistente de afirmação de direitos à luz dos valores e princípios fundamentais. Acórdãos formalmente impecáveis, tecnicamente bem fundamentados e com muita erudição científica, mas em regra sobre assuntos desinteressantes e repetitivos e com soluções previsíveis, que parecem feitas de propósito para não agitar as águas. O Ministério Público e a advocacia não têm a iniciativa de levar para o processo outras formas de abordagem do direito e da justiça e os juízes resistem a assumir essa responsabilidade.
O panorama no STA causa ainda mais perplexidade. A consulta de quase uma centena de acórdãos mostra-nos que em 84% dos casos o tribunal não admitiu sequer os recursos, preferindo sempre encontrar razões mais válidas para se abster de julgar do que para definir jurisprudência orientadora para os outros tribunais e assim influenciar a vida social.
Quando defendo a expansão da ação dos tribunais não estou a querer subordiná-los a um plano estratégico de domínio da política pelo poder judicial. Mas também não aceito que tudo deva ficar dependente do acaso ou da inspiração momentânea deste ou daquele juiz. É preciso, a meu ver, lançar as bases para uma profunda mudança cultural nos nossos tribunais. Se quisermos recorrer ao tema deste congresso: é preciso Mobilizar o Direito.
Tudo tem de começar no recrutamento e formação. O pluralismo ideológico, a diversidade sócio-económica e cultural e a componente da experiência pessoal e profissional são aspectos a valorizar. No processo formativo a aprendizagem tem de ganhar o lugar que é hoje dado à avaliação quantitativa, que pouca ou nenhuma utilidade tem para a qualidade do sistema. A cidadania, a ética, a deontologia, a compreensão e respeito pelos direitos humanos e o conhecimento dos grandes princípios do Direito e da Justiça têm de ocupar o centro do plano pedagógico, dando ao juiz os instrumentos necessários para ser um bom intérprete da realidade social, muito mais do que apenas um bom técnico das leis. Prefiro um juiz que não saiba fazer o despacho saneador como Alberto dos Reis ensinava mas que perante uma complexa questão filosófica ou um problema socialmente fraturante seja capaz de encontrar uma solução justa ancorada em valores.
A avaliação dos juízes também precisa de ser mudada de alto a baixo. A sociedade dispensa juízes eruditos que despejam sapiência nas sentenças mas não chegam a ver o caso humano que têm à frente. Ou juízes “data supra” formatados para encontrar o despacho certo que limpa as pilhas de processos da secretária. E mais dispensa ainda um sistema inspetivo que fomenta essas distorções e só tem utilidade interna para a gestão das carreiras.
A composição dos tribunais superiores, sobretudo dos supremos, é outro aspeto nevrálgico da mudança. Precisamos de supremos com muito menos juízes e muito menos processos, com mais escrutínio público da sua composição e reconhecimento do seu pluralismo ideológico e da diferenciação de experiências profissionais e pessoais. E acima de tudo composto por pessoas que ao longo da sua vida profissional tenham demonstrado capacidade de abordagem diferenciada dos problemas e de leitura da realidade social e não de pessoas acomodadas no percurso tranquilo, discreto, anónimo, que constitui a norma clássica da boa carreira.
Mas esta mudança cultural tem de ser em primeiro lugar sentida e vivida pelos próprios juízes. Aí a nossa Associação poderá ter um papel muito relevante ao fomentar e divulgar boas práticas processuais e jurisprudência inovadora e proactiva na defesa dos direitos e liberdades. A criação duma espécie de observatório dos direitos humanos para dar a conhecer as decisões mais marcantes dos tribunais, analisar e criticar os impactos da legislação na promoção e proteção dos direitos humanos e estudar a evolução da perceção social sobre os tribunais será com certeza um bom instrumento.
Bem sei que os tempos convidam mais à indiferença e ao desânimo. Nunca vi a moral dos juízes tão quebrada. Seis anos inteiros de duro confronto com o poder político, de insultos inesperados da advocacia, de incompreensão social e de esboroamento das condições materiais e de dignidade, deixaram marcas muito profundas. Não vai ser fácil inverter estes sentimentos mas temos todos de meter na cabeça que o mundo não parou e a vida continua. Por isso haveremos de encontrar os estímulos que continuem a dar sentido à nossa profissão.
Cheguei agora ao ponto de enunciar os contornos dum plano de acção para um modelo possível de activismo judicial. Tem três linhas mestras.
Em primeiro lugar, precisamos de juízes que olhem para o caso concreto com a noção clara de que o direito não é qualquer coisa fora da realidade que viva por si e para si próprio, que saibam interpretar a sociedade e que apliquem a lei com responsabilidade social, tendo em conta os grandes valores e princípios da Justiça e percebendo a cada momento que os efeitos das suas decisões não se esgotam no caso e se projetam no espaço público – (juízes que tirem a venda dos olhos para verem melhor o que está à sua frente).
Em segundo lugar, precisamos de juízes empenhados no uso dos mecanismos processuais que permitem eliminar obstáculos formais e suprir as deficiências das alegações das partes, promover a correção dos erros e vícios formais, obter esclarecimentos e informação e ordenar diligências para trazer para o processo todo o caso nos seus verdadeiros contornos materiais – (juízes que não se limitem a segurar a balança mas que equilibrem os pesos nos pratos).
Em terceiro lugar, precisamos de juízes corajosos, que decidam sem medo de inovar, de arriscar e de ouvir críticas. Não duma burocracia funcionalizada que modele o trabalho às expectativas dos inspetores, dos conselhos ou dos tribunais de recurso – (juízes que usem mesmo a espada que têm na mão).
Como alertei de início, este ativismo de responsabilidade social no presente contexto de crise tem de ser exercido com autocontenção e de obedecer a regras. Um bom começo será o juiz partir sempre da presunção de que as leis são constitucionais e respeitam os valores da Justiça, pois isso levá-lo-á a ser mais rigoroso e exigente quando tiver de se afastar delas.
A interpretação da lei positiva em conformidade com os valores do Direito e da Justiça deve limitar a busca desses valores na Constituição e nas Cartas Internacionais de Direitos que nos vinculam, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Não só porque essas são fontes de direito que o juiz pode aplicar diretamente mas sobretudo porque são elas que consagram todos os grandes princípios acolhidos pela comunidade. Esta autocontenção do juiz garantirá uma maior legitimação das suas decisões.
Por outro lado, quando a criação da norma para o caso concreto tenha de se afastar ou contrariar a lei positiva, ela deve apoiar-se em valores e princípios já consagrados e reconhecidos como tal pelo sentimento de justiça da comunidade, e não em valores e princípios de aceitação duvidosa ou controversa ou não reconhecidos como fundamentais. Uma decisão judicial que ofende o senso comum jamais pode estar a aplicar um princípio de Justiça. Desta forma evitar-se-á a acusação aos juízes de terem uma agenda própria sobre a política e a sociedade.
O dever de obediência à lei e a segurança jurídica determinam igualmente que a explicitação da norma concreta seja uma operação racional e fundamentada de aplicação do direito de acordo com as regras de interpretação e integração de lacunas. A base do ativismo não pode deixar de ser a mesma de toda a atividade judicial: a racionalidade da decisão; não a aleatoriedade ou a imprevisibilidade.
Importante da mesma maneira é a noção de que o ativismo judicial deve ser um instrumento de promoção e afirmação de direitos humanos e fundamentais e não de criação de novos deveres ou vinculações que acentuem o tribunal como entidade repressora e não protetora. Um ativismo conservador para neutralizar direitos pela via judicial, aquilo a que alguns chamam “contrarrevolução jurídica”, contraria a função dos tribunais como garantes dos direitos.
Como instrumento de promoção e proteção de direitos, o ativismo judicial deve também orientar-se pelo objetivo de criar equilíbrios, não tratando como igual aquilo que é diferente. Por isso o juiz, sem receios de quebra da sua imparcialidade, deve estar do lado da proteção da parte mais fraca e não de quem tem mais meios e poder, seja o Estado ou outras entidades. Estar atento aos mais desfavorecidos significará, por exemplo, adotar métodos pessoais de gestão do trabalho e dos processos de molde a conferir prioridade às causas em que estejam presentes interesses sociais mais relevantes ou sensíveis, assumindo esses critérios em provimentos escritos, de forma clara e transparente.
Por fim, no confronto de direitos individuais com o interesse geral, num quadro de escassez de recursos e de opções orçamentais que tornam objetivamente impossível a satisfação de todos os direitos de todas as pessoas em todos os momentos, o balanceamento dos interesses deve ser ainda mais cuidadoso e rigoroso. A função do juiz não é a de distribuidor dos bens públicos. Não lhe cabe dizer se o Estado fez opções certas ou erradas mas apenas se as fez com respeito pelas regras e princípios. Se, por exemplo, um particular reclama do tribunal a condenação do Estado a pagar um tratamento médico dispendioso não orçamentado e o juiz percebe que ao atender esse pedido está a alterar a alocação dos recursos e a impossibilitar a satisfação doutros direitos igualmente relevantes, se não existir nessa opção orçamental qualquer razão que ofenda um balanceamento proporcional dos direitos, então não pode deixar de entrar em linha de conta com isso na sua decisão.
Queria agora colocar-vos perante três situações concretas, duas da área civil e uma da área penal, que tenho posto a vários juízes e que podem ser um bom barómetro para testar as nossas convicções jurídicas e o nosso sentido de justiça.
Imaginemos uma ação em que um particular pede que um banco seja condenado a aumentar o prazo do empréstimo habitacional e a baixar o spread para diminuir a prestação mensal, invocando o instituto da modificação do contrato por alteração das circunstâncias e provando que o seu rendimento mensal diminuiu inesperada e subitamente por causa das reduções salariais que o Estado lhe impôs unilateralmente e que essa diminuição impossibilita o cumprimento do contrato. Analisei 71 acórdãos das relações e do supremo sobre a modificação do contrato por alteração das circunstâncias e pelos exemplos que vi estou convencido de que este pedido teria poucas condições para ser acolhido nos nossos tribunais superiores. Se situações como o golpe militar de 25 de Abril, que um acórdão chegou a dizer que não excedeu os limites da previsibilidade dos acontecimentos futuros, o encerramento da bolsa de valores a seguir à revolução, as nacionalizações de empresas e as taxas galopantes de inflação de dois dígitos dos anos 70 e 80 não foram considerados fundamento suficiente para modificar contratos, como poderia sê-lo uma redução salarial?
Num segundo exemplo, imaginemos uma ação de despejo por falta de pagamento de rendas em que os réus se defendem dizendo e provando que o incumprimento se ficou a dever à repentina situação de desemprego por encerramento da fábrica onde trabalhavam desde sempre e que as escassas economias do casal foram gastas no sustento dos filhos. As perguntas que coloco são estas: há culpa no incumprimento do contrato? É possível exercer sobre estas pessoas um juízo de censura dizendo que atuaram com a falta de diligência e previsibilidade do bom pai de família? É que se não há culpa não há incumprimento culposo e a consequência disso é que não pode haver resolução do arrendamento nem despejo (sem prejuízo do senhorio, perante essa possibilidade, pedir então que o contrato seja resolvido por alteração das circunstâncias). Receio que perante esta situação muitos tribunais se limitassem a dar a resposta imediata que já ouvi por mais de uma vez: – não pagou, pagasse, o senhorio não tem nada a ver com isso!
Por fim refiro uma outra situação frequente nos tribunais criminais, para os quais a jurisprudência superior dá uma resposta unânime mas que é muito debatida e de facto questionável. Imaginemos um caso de abuso de confiança fiscal em que o arguido, um pequeno empresário que emprega uma dúzia de trabalhadores, alega e prova que perante a inesperada diminuição do negócio causada crise económica e pelas restrições no acesso ao crédito teve de optar entre pagar os salários dos seus trabalhadores ou entregar o dinheiro ao fisco e pôr em risco a viabilidade da empresa e os postos de trabalho. Os tribunais superiores rejeitam de forma liminar e definitiva sequer discutir que haja exclusão da ilicitude por conflito de deveres ou estado de necessidade. Pergunto: essas decisões respeitam o senso comum?
Não tenho respostas preparadas para dar sobre estes três problemas. Só digo que não me convenço com o argumento dura lex sed lex nem com a resposta «sempre se fez assim». Este é o tipo de questões que devem pôr à prova o sentido de justiça dum juiz com responsabilidade social e a sua capacidade de ver os grandes princípios para além do texto legal.
Não queria acabar sem vos dar conta do momento em que escolhi o título desta comunicação porque me parece um bom epílogo para a mensagem final.
Foi há uns meses, quando entrei por acaso na sala do meu tribunal onde estão arquivados os processos. Duzentos e vinte metros quadrados de silêncio e escuridão, cheiro a mofo e montanhas de papel empilhadas até ao teto. Cinquenta mil pedaços de vida numa antecâmara à espera do destino final: a fogueira (a morte), o arquivo distrital (a vida eterna) ou a reciclagem (a reencarnação). Abri dois ou três ao acaso e comecei a encontrar nomes, caras, situações de vida. A ideia que me veio à cabeça foi esta: tantas “pessoas de papel”.
É aqui que quero chegar: os processos não têm pessoas de papel que se possam rasgar, amachucar ou apagar; são pessoas de carne e osso, iguais a nós, com direito ao respeito da sua dignidade humana.
Daí o título: “os processos não são pessoas de papel”. Que me parece um bom critério orientador para o nosso quotidiano nos tribunais nos próximos tempos de crise."