Justiça com novas regras

Se já estivessem em vigor as alterações ao Código de Processo Penal (CPP) que vão a Conselho de Ministros na próxima semana, o autor do crime ocorrido na terça-feira passada em Idanha-a-Nova, em que foram mortos uma autarca e o marido, poderia ser julgado apenas por um juiz (em vez de três) e no prazo máximo de quatro meses (em vez de um ano ou mais), numa forma acelerada do processo penal – o processo sumário

Mas o que o Ministério da Justiça diz ser uma medida que «possibilita uma Justiça mais célere» e «o apaziguamento social» continua a merecer a profunda discordância de juízes e de advogados, mesmo após algumas alterações introduzidas na proposta, após a audição dos operadores judiciários.



Justiça à flor da pele

«Não podemos aceitar uma Justiça à flor da pele», diz Mouraz Lopes, presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP). «É censurável», acrescenta o advogado José António Barreiros (ver texto em baixo), que pertenceu à comissão que em 1987 elaborou a profunda reforma do CPP.

O autor do homicídio da presidente da Junta de Freguesia de Segura (Idanha-a-Nova) e o marido foram mortos a tiro, recorde-se, por um empreiteiro local. O crime, presenciado por testemunhas, terá tido origem em desavenças com a autarca, que aplicara multas ao empresário, além de não lhe adjudicar obras (segundo queixas públicas que este fazia). O indivíduo acabou por se entregar à GNR duas horas depois e terá confessado o crime.

Se já estivessem em vigor as alterações aos 39 artigos do CPP agora propostas, a GNR levava de imediato o arguido ao Ministério Público (MP), que promovia em 48 horas o seu julgamento. As testemunhas (sete, no máximo) seriam logo notificadas para comparecer no tribunal e o advogado do arguido teria 15 dias para apresentar a sua defesa. O MP, entretanto, ordenaria perícias com celeridade (ao Laboratório de Polícia Científica, ao Instituto de Medicina Legal e à Direcção-geral de Reinserção Social) e deduzia acusação (bastando-lhe pegar no auto feito pela GNR e acrescentar-lhe alguns dados das perícias e das testemunhas). O julgamento seria feito por um juiz apenas (em vez de um colectivo, de três juízes, como acontece agora) e no final o MP e o advogado teriam só 30 minutos cada para fazerem alegações.

Tudo isto teria de fazer-se num prazo máximo de 90 a 120 dias. Segundo a proposta do Governo, este processo sumário aplicar-se-á a todos os detidos em flagrante delito, independentemente do tipo de crime – deixando de estar restrito, como agora, a crimes puníveis com prisão até cinco anos. Para estes crimes menos graves, aliás, os prazos são reduzidos para 60 a 90 dias.

«Os processos sumários são para julgar pequena e média criminalidade. Não faz sentido sujeitar todos os crimes a este regime. Um homicídio não deve ser julgado apenas por um juiz, o tribunal colectivo é uma garantia de melhor Justiça» – defende Mouraz Lopes. E explica, a propósito do crime de Idanha: «Estes crimes acontecem com muita frequência: disputas que acabam em morte porque os arguidos perdem a cabeça. Depois, normalmente, arrependem-se. O caso suscita grande comoção social, é necessário tempo para que a poeira assente e que o julgamento possa fazer-se sem condicionamentos de qualquer tipo. Três ou quatro meses não são suficientes. Já para não falar do tempo que levam as perícias».



'Equilibrado', diz o MP

Posição contrária tem o Sindicato dos Magistrados do MP (SMMP), que há muito tinha feito esta proposta. «Globalmente, o projecto do Governo parece-nos equilibrado e positivo», diz Rui Cardoso, presidente do SMMP salientando, porém, que outras alterações ao CPP e ao Código Penal (CP) «são opções políticas». É o caso dos estabelecimentos comerciais (como os supermercados) passarem a ter de fazer queixa particular contra quem lhes furtar bens de pequeno valor. E ainda do agravamento das penas para a resistência e ameaça a funcionários do Estado e para os furtos que ponham em causa a distribuição de bens essenciais (caso do roubo de cobre).

Outra alteração, que era há muito reivindicada, é a possibilidade de as declarações dos arguidos no inquérito, perante o MP, serem depois apreciadas em julgamento. Actualmente isso é proibido, o que tem deixado impunes arguidos que, apesar de confessarem o crime quando são detidos, usam depois em julgamento o direito a ficarem calados. Como só é válida a prova feita em julgamento, os juízes têm de absolvê-los.

A ASJP considera a reforma «interessante e genericamente positiva». Mas, além do processo sumário, opõe-se também a esta alteração: «Só as declarações perante um juiz é que deviam poder ser usadas. O MP é um interveniente e o juiz o único a poder assegurar a independência», diz Mouraz Lopes.

No preâmbulo da proposta, o Ministério da Justiça justifica que procurou adequar o CPP e o CP à «necessidade de celeridade no combate ao crime e defesa da sociedade», garantindo «os direitos de defesa do arguido».

Fonte: Sol