Regras da contratação pública vão mudar. O que dizem os especialistas

Apesar de ter sido feito um esforço pontual de simplificação em algumas das revisões efetuadas ao Código da Contratação Pública, ao longo dos seus 17 anos de vigência, há medidas urgentes a tomar.

Na última semana, o ministro adjunto da Reforma do Estado, Gonçalo Matias, deixou escapar que, na agenda deste Governo, está a revisão da (complexa e extensa) legislação da contratação pública. Falando da reforma que pretende fazer nas instituições do Estado, o membro do Executivo adiantou que o objetivo das políticas que tem a seu cargo não é “fazer implodir o Estado”, mas sim reformá-lo por dentro. “Não temos tempo para destruir o Estado e fazer de novo, feliz ou infelizmente”, disse. E apontou a primeira fase da reestruturação dos Ministérios para o fim do primeiro semestre.

Neste contexto, admitiu que esta reforma vai envolver também “alterações legislativas” significativas, no âmbito do Código da Contratação Pública, lembrando que “é hoje praticamente impossível decidir em Portugal – ou demoram a decidir ou, quando decidem, há uma impugnação”, criticou Gonçalo Matias. Frisou ainda que é preciso mudar a lei para que a contratação pública seja usada “como um instrumento de competitividade e não como um instrumento de paralisação do investimento”. E lembrou que “há margem dentro da diretiva europeia para simplificar e flexibilizar a contratação pública”.

O Governo tenciona ainda mexer no Código do Procedimento Administrativo, “diminuindo prazos e prevendo como regra as comunicações prévias ou os diferimentos tácitos”. O objetivo é trazer “previsibilidade” com reflexo nas leis de licenciamento. Porque “a pior coisa que pode haver é quando um investidor vem falar connosco e não sabe quanto tempo demora o licenciamento urbanístico ou industrial. É no tempo excessivo de decisão que nasce a corrupção, esse é o caldo para a corrupção. Se trouxermos previsibilidade e encurtamento de prazos há muito menor incentivo à corrupção”, apontou o mesmo responsável.

O ECO/Advocatus contactou especialistas em direito público que todos os dias lidam com as entropias que a lei da contratação pública nos oferece e que deram o seu contributo para as medidas mais urgentes para esta reforma. Apesar de ter sido feito um esforço pontual de simplificação em algumas das revisões efetuadas ao diploma ao longo dos seus 17 anos de vigência, na sua larga maioria, as alterações introduzidas resultaram numa maior carga administrativa e no aumento dos requisitos e pressupostos exigidos às entidades adjudicantes.

“Esta carga administrativa excessiva acaba por protelar os procedimentos no tempo, transformando mesmo um simples procedimento de consulta prévia, que, pelo facto de partir de um convite enviado a um número reduzido de entidades, deveria ser drasticamente mais célere e simplificado, num procedimento extremamente burocrático que pode chegar a demorar mais de um mês até à celebração do contrato”, explica Olinda Magalhães, advogada e sócia da JPAB, escritório fundado pelo presidente do Parlamento, José Pedro Aguiar-Branco.

No geral, os advogados contactados consideram que deverão ser fixados prazos máximos para decisão por parte das entidades adjudicantes, o aumento do preço base de um ajuste direto de bens e serviços (que só vai até 20 mil euros, atualmente), tornar procedimentos de valor mais baixo mais simples – de forma a reduzir a burocracia e tempo e favorecer as pequenas e médias empresas (PME) – exigência de convite mínimo a um número superior de operadores económicos (atualmente pode ser feita apenas a três) e, no fundo, uma legislação mais condensada e com os limites apenas exigidos nas diretivas europeias da Contratação Pública.

Código nacional de contratação pública é mais restritivo que a diretiva europeia
Carlos Batalhão e Ana Filipa Urbano, advogados e sócios da Dower Law Firm defendem que, sem dúvida, “há margem dentro da diretiva europeia para simplificar e flexibilizar a contratação pública, pois o nosso Código da Contratação Pública (CCP) é mais restritivo do que a diretiva”. Para isso, sugerem as seguintes medidas:
- Aumentar o valor dos Ajustes Diretos e Consultas Prévias: por exemplo, atualmente o preço base de um Ajuste Direto de bens e serviços não pode ir além de € 19.999,99+IVA. Os valores não têm sido atualizados e, por via da inflação, estão completamente desajustados face à realidade do mercado;
- Reduzir trâmites procedimentais e tornar procedimentos de reduzido valor mais simplificados (o CCP tem 476.º artigos, o que evidencia uma tramitação longa e complexa);
- Clarificar aspetos no regime das empreitadas de obra pública: a revisão de projeto que se tem tornado obrigatória por entendimento das entidades fiscalizadoras e implica trâmites adicionais ou mesmo clarificar em que situações é possível recorrer ao instituto dos trabalhos complementares quando se pretende alterar o projeto, ajustando à realidade prática. O Tribunal de Contas tem tido um entendimento restritivo nesta matéria, pelo que é preciso o legislador clarificar o pretendido;
- Reforço de regras de planeamento da contratação pública, pois se as entidades se organizarem aquando da elaboração dos seus orçamentos, podem agregar necessidades e antecipar procedimentos pré-contratuais, o que implicará Concursos Públicos em dia (sem atrasos e fracionamento de despesa).

Consultas informais ao mercado
O advogado Tiago Rocha Matos, da Cavaleiro & Associados, defende que são cinco as medidas mais urgentes para mudar o status quo.
- Obrigatoriedade do art.º 35.º-A do Código Contratos Públicos ser aplicável: antes da abertura de um procedimento de formação de contrato público, a entidade adjudicante pode realizar consultas informais ao mercado, designadamente através da solicitação de informações ou pareceres de peritos, autoridades independentes ou agentes económicos, que possam ser utilizados no planeamento da contratação;
- Alteração da Legislação aplicável à assinatura das propostas e documentos tendo presente que a jurisprudência evoluiu de invalidade essencial para invalidade não essencial degradada em mera irregularidade não motivadora de anulação do procedimento (Lei n.º 96/2015, de 17 de Agosto);
- Uniformização das minutas das peças dos procedimentos, para que se possa consensualizar melhor os diversos procedimentos pré-contratuais, quanto às normas aplicáveis, embora diferentes, porém, com idênticas regras de admissão, de exclusão, de análise e avaliação das propostas, tornando as decisões menos discricionárias e mais vinculadas;
- Transposição da Diretiva da Contratação Pública (Diretiva 2014/24/UE) na parte respeitante à inclusão de aspetos ambientais e sociais em matéria de contratação verde e social que se encontra deficitária no Código dos Contratos Públicos;
- Alteração das regras de modificações dos contratos em virtude de ser constante a necessidade de alteração dos mesmos por motivos objetivos e externos à execução dos contratos, tendo existido legislação avulsa excecional insuficiente no que concerne, por exemplo, à evolução dos preços, covid19, guerra na ucrânia, guerra no médio-oriente, inflação de preços, e tarifas internacionais.

Mudanças nas regras dos ajustes diretos
Andreia Soares Ferreira, advogada da PARES, defende um aumento dos limiares dos ajustes diretos (regime geral e simplificado) e também da consulta prévia. “De forma a permitir a adjudicação mais rápida para contratos abaixo do limiar europeu, como aquisição de bens, serviços ou empreitadas, sem necessidade de recurso ao concurso público”, diz a advogada. O que “oferece flexibilidade às entidades adjudicantes para contratos abaixo dos limiares europeus, reduz burocracia e tempo e favorece as Pequenas e Médias Empresas (PME)”. Mas há mais propostas.
- Reforçar a exigência de convite mínimo a um número superior de operadores económicos (por exemplo, mínimo de convite a cinco operadores económicos nas consultas prévias, ao invés do atual convite a três entidades);
- Fixação de prazos máximos para decisão por parte das Entidades Adjudicantes;
- Fixação de prazos máximos para a tomada de decisão no decurso da tramitação do procedimento, nomeadamente, para a emissão dos relatórios de análise das propostas pelo Júri e tomada da decisão de adjudicação pela Entidade Adjudicante; Isto porque a previsão no CCP de um prazo máximo de manutenção das propostas dos concorrentes (66 dias) não compele as Entidades Adjudicantes à emissão da decisão de adjudicação dentro desse prazo.
- Eliminação da necessidade de fundamentação da não contratação por lotes a partir dos 135.000,00€;.

Contratação pública menos complexa, com uma linguagem clara e direta
Olinda Magalhães, sócia da JPAB, defende que “a excessiva formalização dos procedimentos chega, em alguns momentos, a provocar a exclusão da proposta que a entidade adjudicante entendeu ser a que melhor serviria o interesse público, unicamente porque, como sucede na fase de habilitação, o concorrente adjudicatário incorreu em erros perfeitamente supríveis aquando da entrega dos documentos de habilitação”. Sublinhando que não é compreensível que, “tantos anos após a sua entrada em vigor, o Código mantenha uma técnica legislativa pesada de remissões exageradas de umas normas para outras, sendo necessário, para a sua cabal compreensão, percorrer um número incontável de normas em remissões sucessivas”.

Não é, também, compreensível que “essa técnica legislativa passe por criar regras e exceções às regras e, posteriormente, salvaguardas a essas mesmas exceções, como sucede com o regime da invalidade e da modificação dos contratos administrativos, e ainda em vários pontos do regime da contratação excluída, acabando uma vez mais o operador por não conseguir perceber o que é efetivamente aplicável”, acrescenta. A advogada lança o repto: “para desburocratizar não é suficiente prever uma contratação pública (quase) exclusivamente eletrónica. É preciso tornar a contratação pública menos complexa, com uma linguagem clara e direta, para que possa ser mais célere e transparente. Uma contratação pública menos intrincada e acessível a todos os que com ela lidam fica menos exposta a situações geradoras de responsabilidade financeira dos agentes públicos, e, ainda, criminal”. Bem como não se justifica “nem se entende, que o legislador nacional tenha optado sistematicamente por ir além do que é exigido pelas Diretivas Europeias da Contratação Pública, aprovando constantemente legislação avulsa mais exigente, e de concatenação com o Código nem sempre fácil. O que deve ser revisto”.

Fonte: Eco
Foto: António Cotrim/LUSA