Incompatibilidades: Marcelo admite clarificação da lei no TC e diz que "há comportamentos que a sociedade aceitava e agora não aceita"

Comentando, em “abstrato”, o caso concreto da empresa do pai do ministro Pedro Nuno Santos, Marcelo Rebelo de Sousa diz que não viu necessidade de pedir apreciação da lei das incompatibilidades ao Tribunal Constitucional em 2019, quando foi alterada, mas admite vir a fazê-lo. “É preciso ver o que se passa para não haver generalizações”, avisa

O Presidente da República ainda não “ponderou” se faz sentido pedir a fiscalização sucessiva da lei das incompatibilidades ao Tribunal Constitucional, mas admite vir a fazê-lo depois de ter sido conhecido mais um caso de alegada incompatibilidade de um membro do Governo.

Em longas declarações aos jornalistas em Chipre, Marcelo Rebelo de Sousa foi questionado sobre o caso concreto revelado sexta-feira pelo “Observador”, sobre a empresa parcialmente detida por Pedro Nuno Santos e pelo pai, que celebrou um contrato com uma entidade pública, e admitiu que pode vir a ser necessário clarificar o espírito da lei.

Em causa está o facto de a Tecmacal, uma empresa detida em 50% pela família de Pedro Nuno Santos (dos quais 0,5% pertencem ao ministro e 44% pertencem ao pai) ter tido em junho deste ano um ajuste direto de cerca de 19 mil euros do Centro de Formação Profissional da Indústria do Calçado, enquanto a lei das incompatibilidades estipula que empresas participadas em mais de 10% por titulares de cargos públicos (individualmente ou em conjunto com o cônjuge, ascendente ou descendente) não podem participar em procedimentos de contratação pública. O desrespeito por esta norma implica a demissão do titular de cargo público.

“Não falo de casos concretos, falo de casos em abstrato. E se a lei define determinadas regras sobre incompatibilidades e se há situações que são abrangidas por essas regras, então há que fazer cessar a incompatibilidade. Há no entanto outras situações, não sei se não é mesmo este o caso, em que não há incompatibilidades. Porque a lei define determinadas percentagens em capital detido por empresas que celebram contratos públicos e, se não se atinge essa percentagem ou determinado tipo de valor no contrato, aí não se aplica a lei”, começou por dizer.

“É preciso ver o que se passa: se sim, se não, para não haver generalizações”, atirou, sugerindo que o caso de Pedro Nuno Santos não parece incorrer em ilegalidade, mas “é preciso ver” ao detalhe.

Em todo o caso, questionado sobre o facto de a lei das incompatibilidades, que foi alterada em 2019, ainda suscitar dúvidas e poder ser clarificada, Marcelo Rebelo de Sousa não excluiu essa possibilidade.

“Na altura não vi razão para pedir a fiscalização preventiva da lei ao Tribunal Constitucional, nem ninguém viu. Na altura, todos ficaram muito satisfeitos com a solução a que se tinha chegado, que respondia a uma preocupação efetiva de ética e de moral. Mas a todo o momento é possível recorrer ao TC”, disse, insistindo que na altura lhe pareceu “sensato” não levar a lei ao TC, mas isso pode mudar a qualquer instante e em relação a qualquer lei.

Mais à frente, e perante a insistência dos jornalistas, voltaria a admitir ponderar a apreciação da lei. “É uma questão que pode ser apreciada, nao ponderei em concreto, tenho de ver, provavelmente envolve várias leis e a conjugação de várias leis”, disse. “Temos de ver”, continuou, sugerindo que o Presidente da República, enquanto garante de estabilidade, tem de acompanhar “aquilo que é, em cada momento, o sentimento jurídico dominante” na sociedade, e esse sentimento jurídico “mudou” muito ao longo dos últimos 40 anos.

“Há uma interpretação evolutiva da Constituição e da realidade e há comportamentos que a sociedade aceitava pacificamente e que agora não aceita", disse, insistindo que é esse medir da realidade que deve ser feito não só pelo Presidente da República como pelo Tribunal Constitucional. "O TC tem, em algumas matérias, revisto posições na sua jurisprudência, de forma mais apertada e exigente do que no início da democracia", lembrou.

GOVERNO, OPOSIÇÕES E COMUNICAÇÃO SOCIAL: “É A DEMOCRACIA A FUNCIONAR”
Questionado sobre se a multiplicidade de casos como este fere a democracia e o Governo, Marcelo Rebelo de Sousa desvalorizou: “É a democracia a funcionar”, disse, afirmando que cada um está a fazer o seu papel: o Governo a defender a legalidade dos responsáveis políticos, as oposições a cavalgar os casos que contribuem para desgastar o governo, e a comunicação social a fiscalizar a atuação dos agentes políticos.

Isto acentua-se ainda mais quando estamos perante um governo de maioria absoluta, acrescentou, lembrando que já no discurso da tomada de posse do Governo tinha alertado para isso mesmo: quando há maioria no parlamento, a arena preferida das oposições vai passar a ser a arena que está fora do Parlamento.

“Da parte do governo de maioria há um privilegiar da arena preferida que é o Parlamento, da parte das oposições há um privilegiar do que está fora do Parlamento, que é a forma de desgaste que mais lhe convém para atingir o governo”, disse, sugerindo que são estas as regras do jogo. “É a vida”.

No final de contas, disse ainda, um dos dois vai sair mais desgastado - ou o Governo ou as oposições. “Se se provar fundamento são os governos que saem mais desgastados, se não se provar são as oposições. Quem ganha sempre são as democracias”, sublinhou, falando, claro, em “abstrato”.

Fonte: Expresso
Foto: António Pedro Santos/Lusa