União Europeia regulou as tintas, mas em Portugal “a atividade do tatuador continua sem lei”
A presença de partículas nocivas em tintas para tatuagens é um fenómeno documentado. Na UE, a lei protege os consumidores, mas em Portugal há um vazio legal que deixa muito ao critério “das boas práticas e ética de cada tatuador”
Algumas tintas comuns para tatuagens podem conter partículas nocivas e ingredientes não listados no rótulo. Este fenómeno já estava documentado em vários estudos e deu inclusivamente origem a legislação na União Europeia, mas o tema voltou a estar na ordem do dia recentemente devido a um estudo feito nos EUA e divulgado no final de agosto.
A investigação, realizada por cientistas da Universidade de Binghamton, em Nova Iorque, analisou 53 tintas comuns e detetou corantes azóicos em 23. Este tipo de pigmentos sintéticos são usados pela indústria têxtil para tingir vários materiais, desde algodão, lã, seda ou pele. Em teoria, se se mantiverem quimicamente intactos, não representam um risco para a saúde humana. Contudo, o Centro Comum de Investigação (JRC) da Comissão Europeia alerta que pode tornar-se “potencialmente cancerígena” se exposto a “bactérias ou luz ultravioleta”.
O mesmo estudo detectou também partículas de tamanho inferior a 100 nanómetros em oito das tintas analisadas. Estas são tão pequenas (um nanómetro é um milionésimo de milímetro) que se tornam “preocupantes”, uma vez que “podem atravessar as membranas celulares e, possivelmente, causar danos”.
“Surpreendentemente, nenhum fabricante de tintas produz pigmentos específicos para a tinta usada nas tatuagens”, explica John Swierk, o investigador que liderou o estudo cujos resultados vão estar disponíveis no site “What’s in My Ink?”. “As grandes empresas fabricam pigmentos para tudo, como tintas ou têxteis. Esses mesmos pigmentos são usados em tintas para tatuagens.”
No entanto, a composição das tintas não foi o ponto de partida para o estudo. “Inicialmente, a ideia para este trabalho surgiu porque estava interessado no que acontece quando se removem tatuagens a laser. Depois percebi que se sabe muito pouco sobre a composição das tintas para tatuagens, por isso começámos a analisar as marcas mais conhecidas.”
“O referido estudo analisa uma temática já conhecida, cujo alerta tinha já sido feito pela União Europeia num relatório de 2016”, afirmam os médicos Isabel Fonseca e Diogo de Sousa, da Clínica de Dermatologia Isabel Correia da Fonseca, em resposta por escrito ao Expresso. “Embora a regulamentação para este tipo de produtos permita cada vez mais segurança na sua produção, pouca evidência científica existe sobre as alterações a que estas substâncias estão sujeitas quando introduzidas no organismo humano, como por exemplo com a exposição a radiação ultravioleta.”
Mas estas não são as únicas questões em aberto no que toca a tatuagens, como admite a própria FDA (agência federal responsável pela saúde pública e segurança alimentar nos EUA). “Embora a investigação esteja em andamento na FDA e noutras [instituições], ainda há muitas perguntas às quais a investigação ainda não respondeu. Isto inclui perguntas sobre os efeitos a longo prazo dos pigmentos, outros ingredientes e possíveis contaminantes na tinta de tatuagem. Depois, há a questão da remoção de tatuagens.”
Esta falta de conhecimento na área é particularmente significativa se considerarmos a popularidade crescente das tatuagens. Apesar de ser uma prática milenar (o primeiro indício de uma pessoa tatuada foi encontrado em Ötzi, uma múmia com cerca de cinco mil anos descoberta em 1991 na Áustria) com uma longa tradição em certas culturas, as tatuagens parecem estar a ganhar cada vez mais adeptos no mundo ocidental.
Segundo a Agência Europeia de Produtos Químicos (ECHA), cerca de 12% da população da UE tem tatuagens. São 54 milhões de pessoas, incluindo adolescentes, sendo que entre os mais jovens (18-35 anos) a prevalência pode rondar o dobro desta percentagem. Já nos EUA, 50% dos Millenials (pessoas nascidas entre 1981 e 1996) e quase um terço da Geração Z (1997-2012) têm tatuagens.
ADOÇÃO DE REGULAMENTO EUROPEU FOI “TRANSIÇÃO ATÉ BASTANTE SUAVE”
Na Europa, a questão da composição das tintas especificamente está salvaguardada há nove meses. No início de 2022, entrou em vigor o primeiro regulamento europeu que restringe mais de 4000 substâncias químicas perigosas em tintas de tatuagem e maquilhagem permanente. Os corantes azóicos constam desta lista. E a lei estabelece também regras para os rótulos.
A legislação identifica também dois pigmentos específicos (o azul 15:3 e o verde 7) para os quais não existia à data alternativas no mercado. Para estes, foi estabelecido um período de transição até janeiro de 2023. Este foi essencial para mitigar o impacto no setor, assegura Filipe Gil, porta-voz da APPTBP (Associação Portuguesa de Profissionais de Tattoo e Bodypiercing).
“Estas não são só duas cores, são duas cores de base. Aquele azul e aquele verde vão entrar em 50 e tal por cento das cores todas. Eu vi a paleta sem aquilo e não sobrava quase cor nenhuma”, explica o tatuador. “De momento já há alternativas e não estou a achar diferença nenhuma. Falta agora é ver como ficam os trabalhos ao longo do tempo, como é que vão envelhecer.”
E acrescenta: “Os profissionais quase todos acataram isto. É uma indústria relativamente nova em Portugal, mas os profissionais estão muito interessados e estão a par e passo com as coisas. Não vejo ninguém a oferecer grande resistência às medidas”.
Contudo, quando a medida foi anunciada houve alguma inquietude, que Filipe Gil atribui sobretudo ao contexto. “Estamos a vir de dois confinamentos e estar a ter mais uma coisa em que nos ia deixar sem saber quando íamos voltar a trabalhar, isso ia ser drástico para o setor. Como tivemos até 2023 para escoar o stock [o que não aconteceu em países como a Alemanha], acabou por ser uma transição até bastante suave.”
“A única coisa é que inflacionou muito o preço”, acrescenta. Uma garrafa de tinta passou de 12€ para 27€, o que “acaba por ser uma diferença grande e o orçamento final irá reflectir isso”.
LACUNA NA LEI LEVA A QUE CADA TATUADOR TRABALHE À SUA MANEIRA E PROMOVE MERCADO PARALELO
A nova regulamentação europeia é vista “com bons olhos” pela Deco Protest, que há 17 anos que acompanha o tema e exige medidas que tornem a obtenção de tatuagens mais segura para os consumidores.
“O que achamos é que independentemente de isto ser um passo positivo, não é suficiente para regular a atividade das tatuagens. Se efetivamente começamos a ter regras para as tintas, a atividade do tatuador continua sem lei”, argumenta Susana Santos, especialista em Saúde da associação.
Em 2005, a Deco entregou um manual de boas práticas ao secretário de Estado do Comércio, Serviços e Defesa do Consumidor. Muitas das exigências eram respondidas pelo projeto-lei proposto pelo PS em 2008, mas este ficou na gaveta. O tema voltou a ser abordado pela associação em 2011 e 2018, mas até hoje não há lei ou regulamentos específicos para esta atividade.
“Um estúdio de tatuagem neste momento é uma loja. Ou seja, precisa de uma licença, de um livro de reclamações e outras burocracias que estejam associadas, mas não está definido o exercício da sua atividade - quer a nível de higiene, de formação do tatuador, de especificações do espaço. Isto é um assunto que nos tem vindo a preocupar”, acrescenta. “Existindo esta lacuna a nível da legislação, existe sempre aqui algum risco. [Afinal], estamos a falar de um método que é invasivo.”
Este vazio legal é igualmente um motivo de preocupação para os profissionais do setor. “Nós já estamos a falar com grupos parlamentares para haver uma lei homogénea, até porque nós profissionais acabamos por ficar um bocado confusos com o que temos e não temos de fazer”, considera Filipe Gil. “Acho que devia haver uma padronização dos estúdios, pelo menos das áreas de trabalho e do que deviam conter. Isso é muito importante, porque cada estúdio trabalha de uma maneira.”
E acrescenta: “Está para breve sair qualquer coisa em termos de legislação, o que é bom porque só vai proteger os profissionais. Porque há muita gente a aproveitar-se de não haver legislação.”
O porta-voz da APPTBP alerta para os riscos da proliferação do mercado paralelo, isto é, de pessoas que fazem tatuagens em casa, sem registar o espaço comercial nem ter necessariamente preocupações com boas práticas e descarte adequado de agulhas e resíduos biológicos. “Estamos a falar de saúde pública e em certos casos até de atentado à integridade física”, defende.
A associação estima que existam cerca de 1200 profissionais registados em Portugal, “mas há muitos mais, não estão é declarados”. Filipe Gil diz ser muito fácil encontrar estas pessoas, nomeadamente nas redes sociais, onde fazem publicidade abertamente.
“A fiscalização só vai a quem se esforça por cumprir”, lamenta. Estas pessoas podem estar com publicidade e ninguém vai (fiscalizá-las) porque não têm espaço declarado como comercial. Eles é que estão em falha, mas (do lado de quem cumpre há até) relatos de multas porque acabou o papel zig-zag no dispensador da casa de banho.”
Em Portugal não há uma entidade especializada para fiscalizar esta atividade, ficando esta a cargo da ASAE. O Expresso tentou contactar esta autoridade para obter dados sobre a fiscalização do setor, mas não obteve resposta.
Da mesma forma, não há uma entidade responsável por fazer “um registo sistemático de vigilância que permita recolher e avaliar os efeitos adversos das tatuagens na saúde humana”, salienta o médico Vasco Macias, também da Clínica de Dermatologia Isabel Correia da Fonseca. Como consequência, a “verdadeira prevalência das complicações é desconhecida”.
FAZER TATUAGENS É DE MODO GERAL SEGURO, MAS NÃO ESTÁ ISENTO DE RISCOS
“As complicações cutâneas inerentes à realização de tatuagem são relativamente frequentes, acontecendo entre dois a 30% dos casos segundo as séries publicadas”, acrescenta a dermatologista Isabel Fonseca.
“Uma vez que a tatuagem consiste na introdução de partículas de pigmento na derme, correspondendo a inúmeros micro-orifícios/ micro-traumatismos na pele, é esperada uma reação inflamatória local”, que “desaparece habitualmente nos dias subsequentes ao procedimento”.
“As infecções cutâneas associadas à realização de tatuagens podem acontecer por contaminação direta, através da agulha, tinta, ou recipientes, ou indireta, nomeadamente pela roupa, mobiliário ou pelo próprio pessoal. Os principais agentes infecciosos são bactérias, micobactérias e vírus, entre os quais, o vírus da hepatite B e C e o VIH.”
“As reações alérgicas constituem complicações frequentes deste procedimento e manifestam-se como urticária, eczema de contacto alérgico e foto-alérgico, e ainda reações cutâneas tardias. Podem surgir imediatamente ou passados alguns anos. Acontecem com pigmentos mais alergizantes, principalmente os associados à cor vermelha (oxido de ferro), mas também com os amarelos e azuis. São menos frequentes com compostos de carbono encontrados na tinta preta”.
Assim, tanto a dermatologista como a Deco alertam para a necessidade de fazer uma “escolha criteriosa” dos estúdios que assegurem as condições de higiene e assepsia necessárias a fazer uma tatuagem. A sala de tatuagem ser separada da sala de espera, a utilização de luvas de látex e máscara pelo tatuador, o uso de agulhas descartáveis e abertas à frente do consumidor e a esterelização de todo o material são princípios essenciais. A associação recomenda também que sejam visitados vários estúdios antes de optar por um.
Fonte: Expresso
Foto: Ben Stansall