Apreensões da PJ em 2022 já bateram recorde dos últimos 15 anos

Até esta semana foram apreendidas mais de 14 toneladas de cocaína, a maior parte em veleiros em alto mar e em contentores nos portos. Com o ano ainda por terminar é já a maior quantidade apreendida da década. Mais procura na Europa, torna o velho continente no mercado mais apetecível para os traficantes, apoiados por uma produção a mais que duplicar nos últimos anos. Apesar dos recordes apreensões que também têm sido batidos pelas autoridades, não atingem mais que 10 a 20% do tráfico. Com a violência a acentuar-se cada vez mais nestas estruturas criminosas, que corrompem funcionários em portos aeroportos, Portugal está na rota.

As mais de 14 toneladas de cocaína - a valer, ao preço médio de mercado, cerca de 700 milhões de euros - que a Polícia Judiciária (PJ) apreendeu até esta semana, o recorde da década, não provocam euforia a Artur Vaz, o homem que entrou pela primeira vez há 27 anos na Unidade Nacional de Combate ao Tráfico de Estupefacientes (UNCTE) e é há cinco o seu dirigente máximo.

Comedido nas palavras e de absoluta reserva quanto ao conteúdo das investigações que levaram a esta conquista, encolhe os ombros: "para nós o mais importante é desmantelar as redes e prender os traficantes", desabafa.

Artur Vaz também leu o mais recente relatório da "Insightcrime", um dos mais prestigiados think thank internacionais sobre criminalidade, segundo o qual as apreensões de cocaína correspondem apenas a entre "10 a 20%" do total que circula, principalmente em direção à Europa.

A "gota de água" que representa este recorde - que no entanto ainda não superou as 36 toneladas apreendidas no ano de 2006 - não desanima, no entanto, a UNCTE.

Desde início do ano que as apreensões de grande dimensão se sucedem, a última das quais no mesmo dia em que conversávamos com Artur Vaz.

No porto de Leixões, depois de um aviso precioso da Autoridade Tributária - que o diretor nacional da PJ, Luís Neves, fez questão de agradecer pessoalmente à sua homóloga Helena Borges logo a seguir na cerimónia de tomada de posse de novos dirigentes da sua polícia - foram detidos seis traficantes relacionados com o tráfico de mais de uma tonelada de cocaína que tentavam introduzir em Portugal, dissimulada em painéis de cerâmica e azulejos.

A carga, como explicou a PJ, tinha como destino uma empresa nacional fundada em Portugal, há cerca de quatro anos, por um dos agora detidos, e sem atividade empresarial associada ao seu objeto de negócio.

Grandes traficantes detidos
Desde o início do ano, sucedem-se grandes apreensões de cocaína que faz o seu caminho essencialmente por via marítima e alguma por via aérea. Ou detetada em contentores, já nos portos, como foi a recente investigação "Bananero" , com mais de oito toneladas desta droga com origem na Colômbia disfarçada em caixas de bananas.

Ou como operação "Exotic Fruit", no âmbito da qual, apesar de a quantidade de cocaína apreendida nem tenha ultrapassado a meia tonelada (350 quilogramas) dissimulada em caixas de fruta tropical transportada por via aérea, foram detidos cinco suspeitos traficantes.

Entre eles, Rúben Oliveira, conhecido como "Xuxa", 38 anos, e que era, segundo contou a revista Visão, o principal operacional português de Sérgio Roberto de Carvalho um dos maiores narcotraficantes brasileiros, ex-major da polícia militar daquele país também detido nessa semana na Hungria.

"Xuxa" tinha tatuado no corpo os rostos de Pablo Escobar e El Chapo, e estaria associado aos grandes cartéis da Colômbia.

"Mais do que as quantidades de droga apreendida que, claro, é importante, pois não entram no mercado e não contribuem para o lucro e fortalecimento das organizações de narcotraficantes, o essencial é, e é esse o nosso foco, a identificação e a detenção de grupos criminosos e a recuperação de ativos", sublinha o diretor da UNCTE.

No início deste mês, na operação "Calypso" foi intercetado em alto mar um luxuoso catamarã, ao largo dos Açores, com mais de uma tonelada desta droga escondida em compartimentos ocultos no interior da embarcação.

Na operação "Ibéria", em maio passado, os eficazes militares do Destacamento da Ações Especiais (DAE) dos Fuzileiros da Marinha, com a coordenação da PJ, intercetaram noite dentro um veleiro em alto mar com 47 fardos de cocaína, (cerca de uma tonelada e meia).

Nesta investigação foram detidos dois traficantes e a operação contou com a colaboração da National Crime Agency (Reino Unido) e com a reputada Drugs Enforcement Adminstration (DEA) dos Estados Unidos da América.

"A intensa cooperação internacional e a permanente troca de infirmações entre polícias", faz a diferença e, na opinião de Artur Vaz, "tem contribuído para o aumento das apreensões", não só em Portugal, mas em muitos outros países da Europa.

"O mundo está inundado de cocaína"
Mas também há muito mais cocaína a circular, segundo apontam os relatórios internacionais, e isso gera também mais oportunidades para as autoridades.

"Nos últimos cinco anos, o comércio de cocaína tem desfrutado de um boom sem precedentes, com níveis recorde de produção", sublinha o Insightcrime , no seu relatório "The Cocaine Pipeline to Europe", publicado em finais de 2021.

Estes peritos assinalam que os "traficantes inteligentes há muito que preferem" o mercado europeu. Desde que a produção começou a subir em 2013, a produção de cocaína mais que duplicou. (...) O mundo está inundado de cocaína".

O "Serious and Organized Crime Threat Assessment" da Europol, corrobora: "quantidades sem precedentes de cocaína são traficadas para a União Europeia (UE) da América Latina, gerando lucros de milhares de milhões de euros para a diversa gama de criminosos envolvidos no comércio de cocaína, tanto na Europa como América do Sul. O comércio de cocaína alimenta os criminosos e empresas que utilizam os seus enormes recursos para infiltrar-se e minar a economia da UE, o público, instituições e sociedade".

Os analistas do Insightcrime fizeram as contas e concluíram que "de uma perspectiva empresarial, o tráfico de cocaína para a Europa é muito mais atractivo do que para os EUA. Os preços são significativamente mais altos, e os riscos de interdição, extradição e apreensão de bens são significativamente menores. Um quilo de cocaína nos Estados Unidos vale cerca de 28 mil euros. Esse mesmo quilo vale na Europa cerca de 40 mil, em média, mas pode chegar aos 80 mil noutros países europeus".

A Europol salienta que "a Europa emergiu como um destino privilegiado para traficantes de cocaína" e que "este desenvolvimento tem sido atribuído ao potencial para um maior crescimento no consumo de cocaína, melhores preços da cocaína em comparação com os do mercado norte-americanos - , bem como menores riscos de interdição e apreensão".

Sobre este último ponto, os analistas da Insightcrime notam que enquanto os "Estados Unidos afetaram enormes recursos na América Latina para combater a droga, como um exército de agentes da DEA de outras agências (...) em contraste, a Europa tem apenas um punhado de adidos policiais destacados para América Latina e Caraíbas. Para a Europa, ao contrário dos Estados Unidos, os problemas da cocaína parecem muito distantes".

Uma possível explicação apresentada é a de que "a Europa não sofre os níveis de violência observados na América Latina, nem temo tipo de corrupção sistémica que prevalece em muitos países da América Latina".

A juntar a isso, "enquanto a Europa luta contra a COVID-19, sofre uma recessão económica, debate-se contra o terrorismo islâmico, tensões políticas internas, e imigração ilegal, o comércio de cocaína deslizou muito abaixo na lista de prioridades governamentais".

"Via verde" para a corrupção no Estado
Em Portugal, o tráfico de droga nem sequer está entre os "crimes de investigação prioritária" na Lei de Política Criminal, figurando apenas nos "crimes de prevenção prioritária".

Isto apesar de, de acordo com a análise de ameaças à segurança interna feita pelos serviços de informações, em sede do Relatório Anual de Segurança Interna (RASI 2021), o tráfico de droga, designadamente do crescendo da cocaína - cujo consumo aumentou em 2021 cerca de 40% na cidade de Lisboa, segundo o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT) - figure na lista das preocupações, com a potencial corrupção de estruturas do estado no topo.

"O tráfico de cocaína através de portos marítimos e de aeroportos tem constituído nos último anos uma ameaça adicional, uma vez que as estruturas criminosas envolvidas neste tipo de atividades ilícitas, à semelhança do que acontece em muitos outros países, têm vindo a infiltrar-se naquelas infraestruturas através do recrutamento de funcionários de diferentes entidades, designadamente de entidades prestadoras de serviços, com o objetivo de conseguirem, com o apoio de tais funcionários, o que poderemos designar por verdadeiras vias verdes para a entrada de grandes quantidades de estupefaciente em território nacional e, concomitantemente, em território europeu".

Sublinham as secretas que "Portugal, pela sua posição geoestratégica, encontra-se na encruzilhada de alguma das principais rotas deste tráfico internacional, em particular do de cocaína, com destino aos mercados europeus".

Europol: a violência está a aumentar
Pela experiência longa de Artur Vaz, Portugal "é, essencialmente um ponto de passagem. Não é a principal porta de entrada, nem os grandes centros de decisão estão sediados no nosso país. Podem ter alguns intermediários ou apoios, como alguém que abra uma empresa apenas com a finalidade de fazer alguma importação da mercadoria onde a droga vem dissimulada", como foi o caso de porto de Leixões.

A falta de meios é uma constatação com que não discorda: "Claro que os recursos humanos nunca são suficientes, mas há muito mais informação partilhada e isso gera mais oportunidades para fazer detenções e desmantelar, ou pelo menos causar danos às organizações criminosas".

Resultados mensuráveis desta luta sempre sem fim contra contra o narcotráfico, além das quantidades de droga apreendidos, estão no número de traficantes condenados e esses tem vindo a diminuir.

De acordo com as estatísticas da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) a 31 de dezembro de 2021 estavam nas cadeias nacionais 1742 reclusos condenados por crimes associados ao tráfico de droga, 1320 dos quais, ao grande tráfico.

Mas há 10 anos, em 2011, esse número era de 2075 /1862 e desde 2015 que tem vindo sempre a decrescer, com exceção de 2019.

"É uma luta muito difícil", concorda o diretor da UNCTE.

Alerta a Europol: "O tráfico de cocaína é uma atividade criminosa chave para as redes criminosas e envolvem um grande número de indivíduos. Estas redes criminosas são altamente organizadas, hierarquizadas, estruturadas com papéis e níveis bem definidos em torno dos seus líderes. Algumas estão organizadas em várias células que operam em diferentes territórios. O florescente mercado da cocaína implicou um aumento no número de mortes, tiroteios, bombardeamentos, incêndios provocados, raptos, tortura e intimidação. A natureza da violência mudou: um número crescente de redes criminosas utiliza violência de uma forma mais ofensiva".

Completa a Insightcrime: "A Europa não está isenta dos danos colaterais do comércio da cocaína, nem dos efeitos de distorção sobre a economia que milhares de milhões de euros de dinheiro da droga produzem, branqueados através dos bancos e das economias locais. Há violência relacionada com a droga na maioria dos países europeus, muitos exemplos de agentes policiais, funcionários aduaneiros e trabalhadores de portos/aeroportos corrompidos por organizações de tráfico de droga, e, talvez, a maior preocupação de todas, provas incontroversas do reforço das máfias europeias graças ao comércio da cocaína. O fluxo recorde de drogas está a gerar milhares de milhões de euros para os criminosos europeus e tornou-se um pilar fundamental de grupos mafiosos tanto antigos como novos. As organizações americanas e europeias foram imensamente reforçadas no seu poder. A história da ascensão da 'Ndrangheta' em Itália e em todo o mundo, por exemplo, está intimamente ligado ao comércio de cocaína, enquanto a expansão do poder da Máfia nos Balcãs está igualmente ligada à cocaína. As ameaças à segurança nacional apresentadas por estas as estruturas criminosas são claras e estão a crescer".

Fonte: DiáriodeNotícias