Simplex: a lei poderá vir a ficar mais leve para os produtores de resíduos perigosos
Decreto-lei que visa eliminar licenças e outros “procedimentos redundantes” em matéria ambiental entrou em consulta pública a meio da semana passada. Sector teme que, a bem da economia, o Estado esteja a pôr o ambiente “em risco”.
O programa Simplex Licenciamento, que compila diversas medidas para a área do ambiente e que o Governo apresentou na segunda quinzena de Julho, numa cerimónia ocorrida no Jardim Botânico de Lisboa, entrou em consulta pública na última quarta-feira, 3 de Agosto. O decreto-lei, que visa “promover a eliminação de licenças, autorizações, actos e procedimentos redundantes em matéria ambiental”, prevê algumas mudanças relevantes. Uma delas, por exemplo, é a redução dos casos em que é preciso fazer uma avaliação de impacte ambiental (AIA) antes que um projecto de construção possa avançar. Outra é a “diminuição significativa” do número de produtores de resíduos perigosos que têm, obrigatoriamente, de elaborar e apresentar planos de “minimização de produção de resíduos”.
Ainda sobre resíduos, o actual “regime jurídico de deposição de resíduos em aterro” deverá mudar. “Alguns dos valores limite aplicáveis a aterros para resíduos não perigosos” deverão ser eliminados, de modo a “diminuir os constrangimentos com a admissibilidade de resíduos em aterro”. Também em aterros para resíduos não perigosos, deverá ainda passar a ser possível proceder-se à “humidificação dos resíduos através da reinjecção de lixiviados ou concentrado”, efluentes que são gerados nos aterros. A ideia por detrás da humidificação dos resíduos é contribuir para a sua degradação.
O Governo pretende também instituir um “mecanismo de certificação dos deferimentos tácitos”. O que é deferimento tácito? Imagine-se, por exemplo, que uma empresa apresenta ao Estado um projecto de construção de um parque eólico. Para a obra poder arrancar, o Governo tem de conceder à empresa uma licença ou autorização. Sucede que, às vezes, e por escassez de recursos, a Administração Pública demora a emitir um parecer. Existe deferimento tácito quando a falta de uma resposta final por parte do Estado (dentro do prazo legal) leva a que o projecto seja aprovado.
O Governo quer criar um “mecanismo de certificação dos deferimentos tácitos” pois entende que, muitas vezes, os casos de deferimento tácito que estão previstos na lei “pouco beneficiam os particulares” — uma vez que “não existe uma forma simples e eficaz de obter um documento que comprove a obtenção da licença ou autorização pretendida, devido à inércia da Administração [Pública] durante um certo período de tempo”. “Agora, prevê-se que uma entidade administrativa a designar deva, num prazo muito curto, emitir esse documento de forma desmaterializada e gratuita. O documento servirá para comprovar perante qualquer entidade administrativa, incluindo inspecções e entidades policiais, que a licença ou autorização foi obtida por deferimento tácito”, pode ler-se no decreto-lei que está em consulta pública.
Mais águas residuais, menos avaliações de impacte ambiental
Outras medidas abrangidas pelo Simplex Licenciamento incluem a simplificação de procedimentos para que venha a ser mais fácil reutilizar águas residuais. As “entidades” — como lhes chama o texto do decreto-lei — que queiram reutilizar o efluente da água por elas consumida já não precisarão de obter uma licença para tal. Passarão a estar sujeitas apenas a “comunicações prévias com prazo”. As “entidades” só não podem receber “águas residuais brutas ou tratadas de terceiros” (ou seja, só podem reutilizar as suas próprias águas residuais). E a água reutilizada tem de se destinar ao “uso exclusivo nas instalações onde se localiza a produção” da mesma.
Sobre a já mencionada redução dos casos em que é preciso fazer as chamadas AIA, encontram-se previstos vários cenários diferentes. Quando, por exemplo, os projectos de construção “se localizem em parques ou pólos industriais que distem 500 metros de zonas residenciais e ocupem uma área inferior a um hectare”, poderá deixar de vir a ser “necessário realizar uma análise caso a caso” para saber se é preciso (ou não) fazer uma AIA nas indústrias alimentar, têxtil, dos curtumes, da madeira, do papel e da borracha.
“Num segundo conjunto de casos”, a AIA poderá deixar de vir a ser “necessariamente obrigatória” para projectos de centros produtores de energia solar — contanto que a área ocupada por painéis solares seja igual ou inferior a 100 hectares — e parques eólicos. Também está prevista uma diminuição dos casos de AIA necessariamente obrigatória “no âmbito da piscicultura”.
Num terceiro conjunto de situações, “elimina-se totalmente a necessidade de realizar procedimentos de AIA obrigatória”. “É o que ocorre, por exemplo, com a modernização de vias ferroviárias, os projectos de loteamento e as alterações ou ampliações de projectos” na área de produção e transformação de metais e, ainda, nas indústrias mineral, química, alimentar, têxtil, dos curtumes, da madeira, do papel e da borracha. No que concerne a zonas ditas “sensíveis” do ponto de vista ambiental, a AIA é para manter.
Em suma, o Governo diz pretender simplificar a actividade administrativa “através da contínua eliminação de licenças, autorizações e actos administrativos desnecessários”, que “criem custos de contexto sem que tenham uma efectiva mais-valia ambiental”. Salientando-se no decreto-lei que é importante garantir que essa eliminação de licenças “não prejudica o cumprimento das regras de protecção do ambiente”, refere-se igualmente que “também noutras áreas” — incluindo, por exemplo, a agricultura, o ordenamento do território e o urbanismo — “serão futuramente adoptadas novas iniciativas legislativas com o mesmo propósito de simplificação e redução dos encargos administrativos para as empresas”.
Críticas de ambientalistas: “Acelerar? Sim, mas com conta, peso e medida”
As várias associações que representam o sector do ambiente e que o PÚBLICO ouviu ainda não leram na íntegra o decreto-lei que agora está em consulta pública — porque o documento é longo e também por causa do actual período de férias —, mas já destacam, fazendo uma análise muito rápida, várias propostas de alterações ao quadro legislativo que consideram preocupantes.
Susana Fonseca, da associação ambientalista Zero — que, depois da apresentação das linhas gerais do Simplex Licenciamento no Jardim Botânico de Lisboa, disse num comunicado de imprensa que o Governo está em vias de “retroceder décadas na política ambiental” —, refere ser aflitivo que o Estado esteja a querer reduzir o número de casos em que é necessário realizar AIA. “O Governo fala em ‘procedimentos redundantes’ como se as avaliações de impacte ambiental fossem quase uma chatice. Nós temos uma visão totalmente diferente. E consideramos a visão do Governo bastante perigosa”, afirma.
“A avaliação de impacte ambiental é uma ferramenta de gestão do bem público. Quando implementamos um projecto, temos de conhecer os seus impactos de forma alargada. Não podemos prescindir deste instrumento”, acrescenta a vice-presidente da Zero.
Por seu turno, o presidente do Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente (GEOTA), João Dias Coelho, acredita que o “mecanismo de certificação dos deferimentos tácitos” poderá vir a revelar-se muito problemático para o ambiente. O responsável é da opinião de que, com esse mecanismo, surge um risco grande de os mais diversos projectos de construção avançarem sem a Administração Pública ter de “se mexer”, considerando devidamente os riscos associados.
“De repente, podemos fazer tudo, inclusive seguir em frente com um projecto que, do ponto de vista ambiental, é completamente destrutivo. Tudo porque o Governo não conseguiu (ou não quis) fazer uma avaliação de impacte ambiental — que teria tornado evidente a insustentabilidade do projecto”, aponta João Dias Coelho.
Fazendo questão de deixar claro que ainda está a “avaliar melhor” alguns aspectos do Simplex Licenciamento — e que oportunamente o GEOTA tomará uma posição “mais fundamentada” —, o presidente dessa organização sem fins lucrativos afirma que o facto de o Governo estar a querer reformular o quadro legislativo de forma tão significativa não o surpreende. Uma vez que um dos grandes objectivos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) é “injectar dinheiro na economia”, é natural que o Estado esteja interessado em desburocratizar processos e permitir que diversos tipos de projectos “acelerem”, diz. Mas “não podemos fechar os olhos aos impactos ambientais”, sintetiza João Dias Coelho.
“âO facto de estarmos aqui com dinheiro para investir não significa que possamos ou devamos acelerar desenfreadamente. Aceleremos, sim, mas com conta, peso e medida”, frisa.
Águas residuais: o que está previsto “é um princípio, mas é curto”
Falando sobre o facto de o Governo estar a querer tornar mais simples a reutilização de águas residuais, o presidente da Associação Portuguesa de Distribuição e Drenagem de Águas (APDA), Rui Godinho, afirma que, embora seja preciso “começar por algum lado”, é desapontante que o Governo ainda só esteja a considerar a reutilização de águas residuais “para uso próprio”. Na óptica do responsável, é urgente o Estado começar a pensar em possibilitar a reutilização das águas residuais que são tratadas nas estações de tratamento de águas residuais (ETAR).
Rui Godinho enfatiza que, “obviamente”, essas águas nunca se destinariam a consumo humano. Mas poderiam e podem ser usadas para, por exemplo, “apagar incêndios, lavar ruas e regar campos de golfe e terrenos agrícolas”, argumenta o responsável — que, de resto, lembra que, relativamente às “grandes ETAR” que foram construídas em Portugal na década de 1990, foram feitos “investimentos avultados” para elas conseguirem atingir “20% de reutilização para fins de segunda linha”. Isto é, todos os fins excepto consumo humano.
O presidente da APDA considera que, num período tão delicado como o da seca que atravessamos, torna-se especialmente importante considerar a reutilização das águas residuais que são tratadas nas ETAR — que, naturalmente, são as infra-estruturas em que há mais águas residuais a reutilizar. “No contexto em que estamos, é muito importante evitar que a nossa água potável seja usada para lavar ruas e regar jardins particulares. A reutilização das águas residuais das ETAR seria extremamente vantajosa. O facto de o Governo querer permitir a reutilização de águas residuais para uso próprio é um princípio. Mas é curto”, comenta.
Devemos “desresponsabilizar” os produtores de resíduos perigosos?
As alterações que se encontram previstas no sector dos resíduos também preocupam os ambientalistas. Rui Berkemeier, da Zero, considera que, pelo menos no papel, a ideia por detrás da reinjecção de lixiviados (com vista à humidificação de resíduos em aterros para resíduos não perigosos) é boa. “No Verão, acontece a evaporação da água que se encontra nos aterros (que é, na sua maioria, água da chuva). A reinjecção de lixiviados devolve água e humidade ao aterro. E a água permite que os processos biológicos (no caso, a degradação dos resíduos) aconteçam”, diz. “Mas é preciso saber como é que essa reinjecção de lixiviados vai ser controlada.”
“Quando falamos sobre recirculação de lixiviados, falamos sobre recirculação de água que tem uma concentração de poluentes mais elevada”, destaca o especialista. “Temos de perceber até que ponto é que isto faz sentido e não é perigoso.”
Manuel Simões, director-geral da Ecodeal — empresa que detém um centro integrado de recuperação, valorização e eliminação de resíduos perigosos (CIRVER) na vila da Chamusca, em Santarém —, assume uma posição mais crítica. “O decreto-lei fala em ‘reinjecção de lixiviados ou de concentrado’. Ora, o concentrado é um dos resultados do tratamento do lixiviado, com todos os contaminantes que [nele] estavam presentes. É um resíduo pastoso que necessita de tratamento adequado — e que deve ser tratado como um resíduo perigoso”, explica. “Basicamente, o Governo quer concentrar contaminantes num aterro para resíduos não perigosos. Quer transformar aterros para resíduos não perigosos em aterros para resíduos perigosos.”
Se lermos na íntegra a parte do decreto-lei que versa sobre esta questão, percebemos que está prevista, em aterros para resíduos não perigosos, a possibilidade de “humidificação dos resíduos através da reinjecção de lixiviados ou de concentrado da unidade de tratamento avançado por membrana, o que permitirá desonerar os operadores dos custos com o transporte e encaminhamento dos mesmos [lixiviados e concentrado] para destino final adequado”.
Manuel Simões observa: “O próprio Governo reconhece que reinjectar concentrado nos aterros não é encaminhar esse resíduo pastoso para um destino adequado. No fundo, o Estado está a permitir que os operadores de aterros tornem a sua gestão mais barata. Enquanto o faz, o ambiente sai nitidamente prejudicado.”
O diagnóstico feito pelo director-geral da Ecodeal é o mesmo quando fala do facto de estar prevista uma “diminuição significativa” do número de produtores de resíduos perigosos que têm, obrigatoriamente, de apresentar planos de “minimização de produção de resíduos”. “Isto é o Estado a desresponsabilizar os produtores e a colocar o ambiente em risco.”
O decreto-lei está em consulta pública até 15 de Setembro. Alexandra Azevedo, presidente da direcção nacional da Quercus, mostra-se desagradada com o facto de estar a ser dado pouco tempo à população para ler de forma crítica o documento, que tem mais de 100 páginas. “Está abrangida, no período de consulta pública, uma fase em que a maioria das pessoas está de férias”, constata, acusando o Governo de falta de seriedade.
Fonte: Público