A personalidade jurídica pré-natal - José González
1. No Código Civil de Seabra a personalidade jurídica, ou capacidade jurídica (dado que literalmente não se distinguia), adquiria-se pelo nascimento (art. 6º). A elaboração doutrinária e jurisprudencial subsequente à respectiva promulgação, e por causa do que se dispunha nos arts. 110º, 1479º e 1776º do mesmo diploma, conduziu ao entendimento segundo o qual a ocorrência do nascimento pressupunha para este efeito:
- “a completa separação do feto do corpo materno”;
- e “que a creança, depois de ter saído do ventre materno”, tivesse “vivido ao menos um só instante”.
Apesar de a lei o não exigir explicitamente, não faltava porém quem considerasse ainda como condição de aquisição da personalidade a chamada capacidade de viver .
Insólita e notavelmente, continuava o referido art. 6º: “mas o indivíduo, logo que é procreado, fica debaixo da protecção da lei, e tem-se por nascido para os efeitos declarados no presente código” .
2.
No Código Civil Espanhol (arts. 29 e 30), “el nacimiento determina la personalidad” e “para los efectos civiles, solo se reputará nacido el feto que tuviere figura humana y viviere veinticuatro horas enteramente desprendido del seno materno”.
Para além da quase mitológica referência à necessidade de “figura humana” como condição do reconhecimento de personalidade, exige-se ainda um prazo mínimo de sobrevivência extra-uterina. A exigência de tal prazo, manifestamente arbitrário , tem contudo uma virtualidade: permitir decidir (mais) objectivamente a viabilidade da vida extra-uterina.
3.
No Código Civil Italiano (art. 1/1), diz-se muito chãmente que “la capacita giuridica si acquista dal momento della nascita”.
Todavia, “prima della separazione, se un tempo si diceva che il feto non si distingue dalla madre (partus enim antequam edatur, mulieris portio est vel viscerum: Ulpiano), oggi una piú raffinata coscienza non può disconoscere il valore del diritto anche del nascituro.
Occorre aggiungere che il feto separato ha bisogno di un altro requisito per cominciare la sua esistenza giuridica: deve cioè nascere vivo” .
Também, por sua vez, no §1 Código Civil Alemão, de forma praticamente idêntica à do Código Italiano, se diz unicamente que “Die Rechtsfahigkeit des Menschen beginnt mit der Vollendung der Geburt”.
4.
Para o Código de Direito Canónico, só “pelo baptismo o homem é incorporado na Igreja de Cristo e nela constituído pessoa (cân. 96)”. E “tem capacidade para receber o baptismo todo e só o homem ainda não baptizado” (cân. 864).
Por causa da necessidade do baptismo, a aquisição dos “deveres e direitos que, atendendo à sua condição, são próprios dos cristãos” (cân. 96) pressupõe a separação em relação ao corpo da mãe. É que o referido sacramento confere-se por imersão ou por infusão (cân. 854) com água benzida (cân. 853). Por isso, “os fetos abortivos, se estiverem vivos, quanto possível,” devem ser baptizados (cân. 871); por isso também, uma coisa é o homicídio (cân. 1397), outra, o aborto (cân. 1398) .
Curioso que seja, de todos os diplomas citados, o único que literalmente não contém referência alguma , em geral, à protecção da vida intra-uterina. A falta da alusão correspondente deve-se justamente ao facto de, para obtenção de personalidade, não bastar o simples nascimento. Imprescindível é antes que o sacramento do baptismo seja ministrado. E, dado o fundamento bíblico a que se sujeita a sua realização , este só é concebível para o ser humano nascido. Ainda que solução diversa não fosse juridicamente inimaginável.
5.
No Direito Inglês não há, como é próprio de uma ordem jurídica essencialmente jurisprudencial, uma definição legal sobre o momento em que a personalidade juridica se obtém. Todavia, com o Congenital Disabilities (Civil Liability) Act, “in the case of children born after suffering congenital disabilities, the only requirement is that injury to the mother was reasonably foreseeable; there is no need to establish that the unborn child was a foreseeable victim of the defendant’s negligence” .
Sublinham-se dois aspectos:
- “there is no need to prove that the parent suffered actionable injury (s.1(3))”;
- “the child’s claim may be reduced to reflect the parent’s share of responsibility for the disability (s.1(7))” .
O que demonstra que a responsabilidade perante “the unborn child” nasce por um dano que lhe é causado por uma conduta de terceiro (“the defendant”). Por isso, é irrelevante que a mãe (grávida) tenha igualmente sofrido um dano. Por isso também, pode haver compensação de culpas se a mãe ou o pai tiverem contribuído para a produção do referido dano.
6.
A Constituição da República Portuguesa não contém igualmente qualquer referência expressa à vida intra-uterina e à sua protecção.
É verdade que o seu art. 24º tem por epígrafe “direito à vida” e que esta forma de expressão acolheria sem esforço o direito a nascer. O mesmo se diga para o que se dispõe no seu nº 1: “a vida humana é inviolável”. Falta obviamente saber, entre outras coisas, a partir de que momento se pode dizer que há vida humana: de facto, se só houver vida humana a partir do nascimento (e a Constituição não confirma nem infirma esta asserção) não haverá o direito a nascer .
Da mesma largueza ou vaguidade se pode acusar a Declaração Universal dos Direitos do Homem (art. 3º: “todo o indivíduo tem direito à vida”), a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (art. 2º/1: “o direito de qualquer pessoa à vida é protegido pela lei”) ou o projecto de Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (art. II-2º/nº1: “todas as pessoas têm direito à vida”) .
7.
No actual Código Civil português (art. 66º/nº1), “a personalidade adquire-se no momento do nascimento completo e com vida”.
Apesar de literalmente distinto e mais acabado do que o art. 6º do Código Civil de Seabra, a referida disposição acabou por consagrar pois o que, como se disse, era já o entendimento predominante na vigência deste.
Acrescentou-se ainda um nº 2, retirado do Código Civil Italiano (art. 1/2) e formalmente inverso ao que se continha no supra mencionado art. 6º do Código Civil de Seabra, segundo o qual: “os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento”.
Não obstante o que antecede, no Código do Registo Civil (art. 209º) está prevista a necessidade de se proceder ao depósito do chamado certificado de morte fetal sempre que esta tenha ocorrido “com tempo de gestação de 22 semanas ou superior”. Embora se dispense o referido depósito “quando ocorra a interrupção voluntária da gravidez, prevista na alínea c) do nº1 do artigo 142º do Código Penal, bem como, até às 24 semanas de gestação, quando a interrupção da gravidez seja espontânea” (art. 209º – A, Código do Registo Civil). “São aplicáveis ao depósito do certificado médico de morte fetal os preceitos relativos ao assento de óbito” (art. 209º/nº4, Código do Registo Civil). O que significa, entre outras coisas, que deve o mesmo ser obrigatoriamente entregue (sob pena da aplicação da coima decorrente do disposto no art. 295º do Código do Registo Civil) pelas pessoas identificadas no art. 193º e dentro do prazo estabelecido pelo art. 192º, ambos do Código do Registo Civil.
Este regime decorrente do Código do Registo Civil, se para mais não chegar, permite tirar ao menos uma ilação: o feto não pode ser considerado uma coisa. De facto, caso contrário, não haveria justificação para instituir de um arquivo público destinado a constituir um repositório de casos de morte fetal (aliás, nem de morte se poderia falar). E, juridicamente, o que não é coisa (objecto, em geral) só pode ser pessoa ou, no mínimo, entidade equiparada a pessoa : Et quidem summa divisio de iure personarum haec est, quod omnes homines aut liberi sunt aut serui .
Os direitos dos nascituros
1.
A disposição do Código Civil citada por último sugere justamente esta epígrafe.
Os diversos regimes compreendidos no actual Código Civil relativos ao nascituro impõem uma distinção inicial por demais conhecida: a que se faz entre nascituro e concepturo. Aquele é o ser concebido mas ainda não nascido (completamente e com vida) e este é o não-ser ou, no máximo, um projecto de ser. O conceito de concepturo serve primacialmente para marcar a fronteira entre o que é ou pode ser pessoa e o que não o é ou não o pode ser.
O nascituro representa um substrato biológico suficiente para basear o reconhecimento de personalidade jurídica e para autorizar a concessão de direitos subjectivos; o concepturo, não. Juridicamente, o concepturo é o nada . É claro, por isso, que no que toca ao concepturo o problema da atribuição ou reconhecimento de direitos subjectivos não se coloca . Não há um mínimo de substância (física, social ou de outra ordem) à qual faça sentido outorgar direitos ou conferir personalidade jurídica. Pese embora, em algumas circunstâncias, a lei levar em consideração o referido “projecto de ser” para lhe salvaguardar alguns efeitos jurídicos potenciais (ver, por exemplo, o disposto nos arts. 952º e 2033º/nº2/a) do Código Civil).
No que concerne ao nascituro propriamente dito, o disposto no nº 2 do art. 66º do Código Civil explica-se habitualmente pelo recurso à concepção dos chamados direitos sem sujeito. O que, à partida, anuncia a tese segundo a qual só com o nascimento se é pessoa jurídica.
De harmonia com o referido entendimento, é admissível que, temporária ou transitoriamente , certo direito subjectivo não tenha titular e, apesar disso, mantenha a sua existência desde que seja expectável e objectivamente antecipável o futuro surgimento daquele. É disto exemplo precisamente o que sucede com os direitos dos nascituros, com os direitos das fundações depois de instituídas mas antes de serem reconhecidas ou com os direitos do de cujus antes de a herança ter sido aceite pelos sucessíveis.
É uma explicação técnica que está manifestamente subjacente à letra do disposto no art. 952º do Código Civil. De facto, se na doação feita a nascituro se presume que o doador reserva para si o usufruto dos bens doados até ao nascimento do donatário (nº 2), a respectiva propriedade não pode estar na titularidade de ninguém, durante o período em causa, uma vez que justamente ainda não há donatário.
A explicação não é convincente, no entanto, por duas razões básicas:
- Primeiro, por o período transitório ser potencialmente ilimitado, pelo que, portanto, pode suceder que se esteja “à espera” durante dias, meses ou anos; justamente por isso, pode entender-se a citada disposição como estando destinada a estabelecer apenas um regime supletivo sobre a questão relativa à administração dos bens doados;
- Segundo, por direito subjectivo e direito sem sujeito serem ideias racionalmente incompatíveis.
Um outro entendimento possível consiste em fazer depender a aquisição de personalidade do nascimento completo e com vida mas atribuindo depois retroactividade a tal ocorrência: ou seja, a personalidade só se adquiriria com o referido nascimento mas com eficácia a uma qualquer data anterior .
A crítica a que esta opinião se sujeita parece evidente. Além de, em geral, a retroacção de eficácia jurídica não dever ser meio normal de resolução de problemas jurídicos por ter carácter ficcioso , restaria ainda decidir até que ponto se admitiria: poderia chegar a ir para além do próprio momento da concepção? Por conseguinte, aplicar-se-á tanto ao nascituro como ao concepturo?
Numa visão relativamente frequente em alguma doutrina portuguesa, considera-se que nas hipóteses descritas sob a epígrafe direitos sem sujeito o que haverá verdadeiramente serão bens em estado de vinculação . Se bem se compreende a concepção subjacente, trata-se de uma aparência de explicação. Na verdade, enquanto os bens estão vinculados ao eventual surgimento do titular ao qual estão destinados, pertencem a quem? Crê-se de facto que, se já estão vinculados, não podem pertencer a quem deles dispôs; mas como também ainda não existe quem os deve receber, a resposta, forçosamente, é que pertencem a ninguém. E tudo redunda, portanto, de novo, em direitos sem sujeito.
Acresce que, como resulta da própria descrição, este entendimento apenas permite fornecer enquadramento (pelo menos tal como foi formulado) à atribuição de direitos de natureza patrimonial. Não explica, por exemplo, como ficam eventuais direitos de personalidade do nascituro.
Por fim, uma outra hipótese explicativa, consiste em considerar sujeitos a condição suspensiva (ainda que legal) os actos pelos quais se atribuem, ou se pretendem atribuir, direitos a nascituros. Tais actos ficarão implícita e necessariamente sujeitos à circunstância do nascimento completo e com vida.
Esta perspectiva explica de imediato a questão da titularidade: enquanto o nascimento completo e com vida não ocorre, o direito continua a pertencer ao respectivo disponente, mas precariamente; depois, passará automaticamente para a esfera jurídica do ex-nascituro, agora pessoa.
Contudo, mais uma vez, a explicação acomoda-se somente à atribuição de direitos de natureza patrimonial. Ainda que, de todas, seja a preferível, uma vez que não só autoriza a justificação formal (a questão da titularidade do direito) como também, para o caso de inexistir regime especial, fornece um conjunto normativo que concilia equilibradamente os interesses em presença (arts. 272º a 277º do Código Civil, designadamente). O que não obsta, a que permaneça uma questão não resolvida: verificado o nascimento, o preenchimento da condição tem eficácia retroactiva (art. 276º, Código Civil)? Se tem , então esta tese não se diferencia daquele outra que atribui carácter retroactivo à obtenção de personalidade, sujeitando-se às mesmas críticas. Se não tem, então verdadeiramente os nascituros não têm direitos.
A explicação que de longe melhor se coaduna com o reconhecimento de direitos ao nascituro, estejam em causa direitos pessoais, maxime de personalidade, estejam em causa direitos patrimoniais, é aquela que pressupõe o reconhecimento da sua personalidade jurídica . Nesta concepção, o nascituro é pessoa jurídica enquanto tal e o nascimento completo e com vida limita-se a consolidar a personalidade anteriormente obtida. Mas, assumir esta concepção implica demonstrar que ela é viável, justificável e desejável.
Faz sentido, de facto, que a propósito do nascituro se considerem os direitos de personalidade . Por um lado, tendo em conta as possibilidades tecnológicas actuais e, talvez acima de tudo, tendo em conta as expectativas biotecnológicas futuras, é hoje possível provar, por exemplo, danos físicos sofridos pelo feto em virtude de agressões externas . Por outro lado, o nascituro pode ser objecto, enquanto tal, de alguma consideração social: é pensável, por exemplo , que se lhe reconheça o direito à imagem (v.g. uma ecografia) ou ao nome .
Para estes casos, será necessário esperar pelo nascimento para que os respectivos representantes possam e devam actuar contra as agressões de terceiros promovidas contra o nascituro enquanto tal? Não poderá, muitas vezes, ser tarde demais? E impor a necessidade de esperar pelo “nascimento completo e com vida” não será, no fundo, conferir eficácia retroactiva à aquisição de personalidade?
Verdadeiramente, no que toca aos direitos dos nascituros, o que no essencial está em causa (como de resto sucede com qualquer ser humano) é determinar se são susceptíveis da concessão de direitos que protejam a sua personalidade. A questão dos respectivos (eventuais) direitos patrimoniais é claramente marginal e acessória.
E em relação aos direitos de personalidade, das duas, uma: ou o nascituro é deles susceptível e estão adquiridos com a concepção, funcionando a não ocorrência do nascimento como facto extintivo dos ditos (perfeitamente equivalente à morte para a pessoa nascida); ou o nascituro deles não é susceptível e somente os adquirirá com o nascimento.
Já em relação aos direitos patrimoniais de que o nascituro seja susceptível, o “nascimento completo e com vida” é perfeitamente configurável como condição resolutiva da sua atribuição e não como um hipótese de sucessão mortis causa . De facto, crê-se que, tanto do ponto de vista social como do ponto de vista ético, não nascer não equivale a morrer.
Para o concepturo, a concessão de direitos de personalidade não faz sequer sentido: não há um mínimo de humanidade subjacente. E a aquisição de direitos patrimoniais só é concebível subordinada a condição suspensiva: sob a condição de surgimento do ser.
C. Aquisição da personalidade jurídica do ser humano
1.
Há uma tendência (particularmente agravada entre nós por causa da realização do recente referendo sobre o aborto e intimamente ligada aos aspectos emocionais que a questão desperta) para colocar o reconhecimento da personalidade jurídica do ser humano dependente da determinação do momento do início da vida. Para o efeito avançam-se critérios biológicos, psicológicos, biomédicos, etc, visando precisar tal instante.
É muito provável, no entanto, que assim jamais se consiga estabelecer quando começa a vida, dada a variedade mas, acima de tudo, dada a contestabilidade de todos os critérios propostos. Efectivamente, em função do tempo decorrido desde a fecundação até ao nascimento, a vida humana passa por uma tal sucessão de fases inter-relacionadas que atender a um determinado critério ou a outro é pura arbitrariedade. Na medida em que nenhuma dessas fases pode ser considerada decisiva ou mais importante. Pondere-se, por exemplo, no conteúdo seguinte quadro :
TEMPO CARACTERÍSTICA CRITÉRIO
0 minutos Fecundação
(fusão de gâmetas) Celular
12 a 24 horas Fecundação
(fusão dos pró-núcleos) Genotípico estrutural
2 dias Primeira divisão celular Divisional
3 a 6 dias Expressão do novo genótipo Genotípico funcional
6 a 7 dias Implantação uterina Suporte materno
14 dias Células do indivíduo diferenciadas das células dos anexos Individualização
20 dias Notocorda maciça Neural
3 a 4 semanas Início dos batimentos cardíacos Cardíaco
6 semanas Aparência humana e rudimento de todos os órgãos Fenotípico
7 semanas Respostas reflexas à dor e à pressão Senciência
8 semanas Registo de ondas eletroencefalográficas (tronco cerebral) Encefálico
10 semanas Movimentos espontâneos Actividade
12 semanas Estrutura cerebral completa Neocortical
12 a 16 semanas Movimentos do feto percebidos pela mãe Animação
20 semanas Probabilidade de 10% para vida fora do útero Viabilidade
extra-uterina
24 a 28 semanas Viabilidade pulmonar Respiratório
28 semanas Padrão sono-vigília Autoconsciência
28 a 30 semanas Reabertura dos olhos Perceptivo visual
40 semanas Gestação a termo ou parto noutro período Nascimento
De todos os indicados, qual deve ser considerado o momento decisivo? Haverá algum legislador suficientemente afoito para arriscar num deles, ainda que correndo o óbvio risco de bizarria ou puro capricho?
Aliás, acrescente-se: depois do nascimento, a vida passa analogamente, como é perceptível pelos próprios sentidos, por sucessivas e incontáveis fases até à morte. Portanto, o problema que se coloca para a vida intra-uterina põe-se também (continua a pôr-se, mais precisamente) para a vida extra-uterina . A criança com poucos dias, poucos meses ou poucos anos é certamente vida humana, mas será pessoa jurídica? E, seguindo por esta via, será pessoa jurídica a partir de quando?
Aliás, a fixação do momento da aquisição da personalidade na data do nascimento completo e com vida é pura arbitrariedade. A vida apenas segue depois do nascimento . E tendo em conta que o momento exacto do nascimento, por razões naturais ou artificiais, é pura contingência, por quê considerar tal casualidade como decisiva para adquirir personalidade jurídica?
Mas, por outro lado, entrando-se em preciosismos biológicos, psicológicos, biomédicos, etc, o juízo envolvido na resposta às perguntas que ficaram formuladas nunca poderá ser geral e abstracto. O que é incompatível com as preocupações de certeza e de segurança que o Direito deve levar em conta. Que são as razões que justamente levaram, por exemplo, a estabelecer a maioridade, com a consequente aquisição de capacidade de exercício, numa determinada idade, igual para todos, independente da concreta maturidade intelectual, emocional, social, etc, do indivíduo em causa (arts. 122º e 130º, Código Civil).
Por conseguinte, parece de assentar: primeiro, que o critério a encontrar para determinar o momento de aquisição de personalidade jurídica deve ter uma qualquer base biológica uma vez que o homem tem um substrato dessa natureza; contudo, os rigores biológicos são, segundo, inteiramente inadequados em virtude de a preferência por algum deles constituir puro arbítrio.
A vida humana é continuidade. Não contém etapas estanques entre si. Ao invés, é incessante evolução contínua – é transformação sucessiva. Em cada momento que passa, a vida de cada ser modifica-se (física e espiritualmente), ainda que imperceptivelmente para o próprio e para os demais. É uma constatação resultante da experiência ordinária que, portanto, não demanda nenhuma comprovação das ciências exactas.
Razão pelo qual, como se dizia, a marcação do “nascimento completo e com vida” como o instante em que começa a vida humana se revela um critério inteiramente arbitrário. Por que não algures antes ou algures depois?
Aceitando-se, como, julga-se, se deve aceitar, que a vida humana é continuidade ininterrupta, o início do ciclo da vida de cada indivíduo não pode dar-se noutro momento a não ser o da concepção: é aqui que começa o novo ser. Qualquer instante posterior implica a criação de uma ruptura injustificada no processo existencial.
Para os efeitos legais, o momento da concepção do filho corresponde, regra geral, aos “primeiros cento e vinte dias dos trezentos que precederam o seu nascimento” (art. 1798º, Código Civil). Por conseguinte, na falta de outra comprovação (médica, ecográfica, etc. – art. 350º/nº2, Código Civil), daqui se retira que:
- Primeiro, o momento da concepção é um qualquer dentro dos primeiros quatro meses da gestação;
- Segundo, se deve considerar, por isso, que a personalidade foi adquirida trezentos dias antes da ocorrência do nascimento.
4.
As considerações que ficam feitas não revelam, contudo, a dimensão essencial da personalidade jurídica do ser humano.
Esta apoia-se inegavelmente num substrato biológico. Mas o conceito de pessoa humana não tem certamente natureza biológica. Tem, isso sim, natureza ética, social, jurídica, política. Pelo que um qualquer substrato biológico serve e é suficiente para o efeito.
Não se requer para tanto um ser nascido completamente e com vida; não se requer o decurso de um certo número de semanas sobre a data da concepção; não se requer alguma ou qualquer maturidade intelectual, física ou psíquica; etc.
Assim, a concessão de personalidade jurídica ao ser humano é verdadeiramente uma simples consequência do reconhecimento da sua dignidade e não está por isso ligada primariamente a quaisquer critérios ditos “científicos” .
Ser pessoa jurídica (e, crê-se, ser pessoa do ponto de vista social, político, moral ou ético) não se liga à idade, nem à fase da vida, nem ao estatuto, nem ao sexo, nem à nacionalidade, nem a qualquer outro factor análogo. Isto não levanta qualquer dúvida.
Mas ser pessoa também não pode depender do facto de a vida subjacente ter carácter intra ou extra-uterino. A dignidade da pessoa humana reclama esta asserção. Se assim não fosse, a vida intra-uterina seria pura vida animal e o embrião ou o feto seriam meras coisas .
5.
Por causa da sua humanidade é que “a dignidade do ser humano é inviolável” e “deve ser respeitada e protegida” (art. 1º da Constituição da República Portuguesa; art. II-1º do projecto de Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia).
“O respeito pela dignidade humana é considerado hoje um princípio geral de direito comum a todos os povos civilizados” .
E por causa do respeito devido à dignidade humana é que a personalidade jurídica, com a consequente capacidade, é Direito do Homem (art. 6º da Declaração Universal dos Direitos do Homem) e é Direito Fundamental (art. 26º da Constituição da República Portuguesa).
6.
O disposto no nº 1 do art. 66º do Código Civil não constitui obstáculo a este entendimento.
É naturalíssimo que ali se tenha estabelecido o “nascimento completo e com vida” como o momento que marca a aquisição da personalidade do ser humano, tendo em conta que este diploma entrou em vigor há quarenta anos (e acrescendo que ele foi essencialmente elaborado durante a década de cinquenta do século passado). Sucede, todavia, que os conhecimentos científicos e os meios tecnológicos que entretanto se tornaram genericamente acessíveis permitem hoje atestar, com segurança, que o começo da vida se dá antes do nascimento . Por outras palavras, é possível atestar a existência de um substrato biológico qualificável como vida humana antes mesmo do nascimento ocorrer. Já é o bastante, como se disse, para se conceder personalidade antes da nascença.
7.
Acresce que a ilação que se retira da disposição em apreço é contraditada pelo que se estabelece no nº 1 do art. 1878º do mesmo diploma.
Diz-se nesta última que “compete aos pais, no interesse dos filhos, … representá-los, ainda que nascituros”.
A representação, seja a legal, seja a voluntária, pressupõe duas pessoas: representante e representado. Aquele exerce posições jurídicas tituladas pelo último. Por isso se diz que o representante está dotado de uma legitimidade indirecta para o exercício de direitos . Por isso ainda, o representante só pode actuar o que o representado puder ou pudesse actuar; ou, ao invés, como se dizia no art. 1332º do Código Civil de Seabra para a representação voluntária, “pode qualquer mandar fazer por outrem todos os actos jurídicos, que por si pode praticar, e que não forem meramente pessoais”. O que é confirmado pela definição do poder de representação paternal contida no art. 1881º do Código Civil: este “compreende o exercício de todos os direitos e o cumprimento de todas as obrigações do filho”.
E na medida em que quem representa actue dentro dos seus poderes representativos, o negócio jurídico realizado por aquele em nome do representado … produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último” (art. 258º, Código Civil) .
Razões pelas quais “o representante é um substituto” .
Por conseguinte, elementarmente, se os pais são representantes de filhos nascituros, estes são representados; se estes são representados, têm uma esfera jurídica (art. 258º, Código Civil) na qual se repercutem os efeitos da actuação dos pais; ora, a existência de uma esfera jurídica pressupõe a existência de personalidade .
Ainda que se não possa inferir a personalidade do nascituro do que se estabelece no art. 1878º/nº1 do Código Civil, ao menos é certo que a regra decorrente do art. 66º/nº1 do mesmo diploma fica assim muito desvalorizada. Salvo entendendo-se que no art. 1878º/nº1 do Código Civil se não utilizou o termo representação no seu sentido técnico mas antes num sentido mais amplo e impróprio como sinónimo, por exemplo, de curadoria ou algo similar. Não se conhece, todavia, que tal significação alguma vez tenha sido sustentada.
8.
A dedução que se tira a partir do que se estabelece no art. 1878º/nº1 do Código Civil é confirmada pelo que resulta do art. 1855º do mesmo diploma: o estabelecimento da paternidade por perfilhação pode fazer-se logo após a concepção , não dependendo a sua validade do “nascimento completo e com vida”.
Assim, o pai já o é desde a concepção; portanto, o filho já o é também desde a concepção; pelo que o poder paternal está instituído desde esse momento. Daí o disposto no art. 1878º/nº1 do Código Civil.
Só se concebe a existência e o exercício do poder paternal sobre uma pessoa pois é para tutela desta que ele se instaura.
O poder paternal integra-se na categoria dos poderes funcionais ou poderes-deveres. Estes, em geral, são direitos ou, pelo menos, posição jurídicas activas, que se devem exercer no interesse de outrem: no caso concreto, no interesse do filho (art. 1878º/nº1, Código Civil) . Donde: se os pais não actuarem tutelando o interesse do filho (ao menos se tiver natureza patrimonial), incorrem, se mais não for, em responsabilidade civil (art. 483º/nº1, Código Civil). Contudo, se o nascituro não tem personalidade jurídica (e, por isso, não tem direitos), tal susceptibilidade de responsabilização coerentemente apenas surgirá após o “nascimento completo e com vida”. Antes disso não haverá “direito de outrem” que possa ser violado. Fará sentido uma solução destas? Poderão os pais exercer o poder paternal de forma absolutamente irresponsável até ao nascimento? Poderão os pais, até ao “nascimento completo e com vida”, apropriar-se, por exemplo, de rendimentos de bens pertencentes a filho nascituro que lhe tenham sido deixados por testamento (arts. 1896º e 2240º/nº2, Código Civil)? Com o seu comportamento, quem é que eles estarão a lesar?
9.
O mesmo se diga, estendendo o argumento, para actos de terceiros lesivos da integridade ou do património do nascituro. Se alguém agride mulher grávida e tal conduta lesa fisicamente o nascituro de forma imediatamente comprovável, poderá aquele ser responsabilizado, civil e penalmente, por lesão à integridade física deste e pelo correspondente sofrimento? Não se reconhecendo personalidade jurídica ao nascituro, a resposta coerente só pode ser negativa .
É claro que, muitas vezes, se obvia este resultado fazendo retroagir a aquisição de personalidade. Mas isso não é, no fundo, reconhecer personalidade jurídica ao nascituro? É que antes de nascer, o ser cuja personalidade é obtida regressivamente era nascituro!
D. A interrupção voluntária da gravidez
1.
A questão do começo da personalidade jurídica do ser humano tem passado muito por uma outra questão: a da criminalização versus descriminalização da interrupção voluntária da gravidez. E mais especificamente, perante a legitimação de tal actuação quando a interrupção se deixe exclusivamente ao livre arbítrio da mãe.
O debate acerca da criação de mais uma excepção à regra segundo a qual o aborto constitui um tipo legal de crime (interrupção voluntária da gravidez por opção da mãe até às dez semanas) que, por isso, o torna justificado nas referidas circunstâncias, seguiu, como é hábito nestas coisas, uma via assistemática e, por vezes, errática.
Podem apontar-se, no entanto, dois tópicos fundamentais. A saber: 1º) a mulher é dona do seu corpo; 2º) não é razoável responsabilizar penalmente a mãe que aborta.
O primeiro argumento reduz-se usualmente ao slogan “o corpo é meu, aqui mando eu” .
Juridicamente, neste tão amplo sentido, ninguém é dono do seu corpo. De facto, tanto de harmonia com o disposto no art. 340º do Cód.Civil como, sobretudo, por causa do que se estabelece no art. 81º do mesmo diploma, mesmo quando o próprio tenha consentido na lesão dos seus bens de personalidade, tal autorização não é válida (e, portanto, não legitima a conduta que os ofende) se for contrária aos bons costumes ou aos princípios de ordem pública.
Por outras palavras, o consentimento da “vítima” nem sempre isenta de responsabilidade o agente que actue nele fundado. Ainda que se trate de matéria vaga e algo indefinida, é indiscutível que é por causa dos referidos limites que, por exemplo, a morte ou a mutilação a pedido daquele que as sofre origina responsabilidade penal e civil por homicídio e ofensa à integridade física, respectivamente.
Não se pode assim afirmar sem uma comprovação (que ainda se não fez) que a mulher é “dona do seu corpo”. Acresce, no caso da interrupção voluntária da gravidez, que se o feto for considerado vida humana, a mãe que actua de tal modo quando o faz nem sequer está a dispor do seu corpo.
Aqui reside de facto o ponto decisivo que merece ser acentuado nesta perspectiva do problema: a relação da mãe com o filho que tem dentro de si é uma relação de protecção ou é uma relação de propriedade?
Se certamente é uma relação de protecção após o “nascimento completo e com vida” (por causa da simples constatação de que os pais não podem ser proprietários da pessoa dos filhos, como, por exemplo, resulta do disposto no art. 1878º/nº1 do Código Civil) que razão haverá para que seja uma relação de propriedade antes disso ?
Nesta conformidade, não custa reconhecer um direito de conceber (ou não). Já não pode haver, no entanto, um direito de abortar por que não pode haver o direito de decidir se alguém vive ou não vive. De facto, ninguém pode ser dono da vida de ninguém .
3.
A questão da oportunidade ou da justificação para a responsabilização penal da mãe que aborta tem sido colocada, no debate, no nível da licitude. Quando, crê-se, deve e devia ter sido encarada sob o prisma da culpabilidade.
Tanto na responsabilidade civil como na responsabilidade penal, a respectiva ocorrência pressupõe que determinada conduta seja simultaneamente contrária a valores jurídicos por duas formas: objectivamente, por muito genericamente ser anti-jurídica (ilicíta); subjectivamente, por tal conduta ser censurável (e será censurável sempre que a pessoa em causa pudesse e devesse agir de modo ajustado às regras jurídicas). A apreciação da licitude é naturalmente feita em abstracto (salvo se alguma causa de exclusão da ilicitude estiver preenchida) uma vez que deriva da violação do “direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios” (art. 483º/nº1, Código Civil). A apreciação da culpa faz-se em concreto, isto é, faz-se em função das circunstâncias do caso (art. 487º/nº2, Código Civil).
Com a lei penal anterior à realização do recente referendo, decisiva era a apreciação da culpa e muito justamente: não merecia a mesma censura , por exemplo, o aborto praticado pela criança de 14/15 anos, o aborto da mulher que o faz por razões estéticas ou, por fim, o aborto praticado pela mulher em cuja vida um filho não tem lugar, por razões profissionais ou outras.
O efeito surpresa que se pretende obter com a afirmação de que, em tempos mais recentes, os tribunais raramente condenaram mulheres que abortaram pela prática do correspondente crime cai assim por terra: tais condenações não aconteceram porque os casos que surgiram em juízo em geral não mereceram censura.
Com a lei aprovada por causa do recente referendo, a avaliação da responsabilidade, no âmbito da excepção que se instituiu, deixa de se fazer no nível da culpa e passa a ser feita no nível da licitude, excluindo-a genericamente. Parece, por conseguinte, que a parte justifica o todo e, também, que é tudo igual.
Não deixa, no entanto, de ser curioso que à mãe seja lícito interromper voluntariamente a gravidez por assim o pretender, enquanto o aborto provocado por terceiro já o responsabiliza penalmente pelo crime correspondente: a que se deverá este poder de vida e de morte concedido à mãe?
Não deixa igualmente de dever perguntar-se se a partir do instante em que se concede o direito de arbitrariamente impedir o surgimento de uma nova vida autónoma, não fará sentido atribuir também o direito de eliminar a vida do mais cruel dos assassinos (abolindo-se, por consequência, a proibição constante do nº 2 do art. 24º da Constituição da República)?
4.
Não obstante o que antecede, do ponto de vista jurídico, a questão da personalidade jurídica do nascituro não se pode todavia conexionar com a da criminalização do aborto.
A personalidade jurídica é um pressuposto do reconhecimento do direito à vida. Só as pessoas jurídicas podem ter direitos (e, de entre eles, o primeiro de todos: o mencionado direito à vida). Por isso na Declaração Universal dos Direitos do Homem se diz que “todos os indivíduos têm direito ao reconhecimento em todos os lugares da personalidade jurídica” (art. 6º).
Por outro lado, seja por muitos criminalistas terem pretendido evitar o comprometimento com a questão da definição do momento do início da vida, seja por qualquer outra razão, a verdade é que o motivo que tem sido invocado para justificar a instituição do crime de aborto não reside tanto na protecção da vida intra-uterina mas mais na tutela da saúde, física e psíquica, da mãe. Ou seja, criminalizou-se o aborto, sobretudo, para evitar que as mães praticassem aborto clandestino.
Razão pela qual, por outro lado, a entrada em vigor da causa que exclui a ilicitude da interrupção voluntária da gravidez por decisão da mãe até às dez semanas de gestação, não põe em causa a personalidade do ser intra-uterino. Apenas deixará de existir responsabilidade penal pela liquidação da vida do embrião ou do feto.
Como acima se disse, será sobretudo com base em valorações sociais, éticas e jurídicas que se poderá sustentar ou infirmar a tese segundo a qual a qualidade de pessoa se recebe antes do nascimento (com o consequente reconhecimento de personalidade jurídica). Mas não certamente apenas a partir de uma eventual descriminalização do aborto, dado que daí apenas resulta a sua irrelevância penal, nunca certamente a sua irrelevância jurídica.
E. Ilações finais
1.
O direito (fundamental) à dignidade humana, razões éticas, os meios tecnológicos de exame e diagnóstico acessíveis à generalidade das pessoas, o disposto no art. 81º do Código Civil e a inutilização da regra contida no art. 66º/nº1 pelo disposto no art. 1878º/nº1, ambos do mesmo diploma, conduzem a uma consideração: a vida não começa com o nascimento. Começa antes com a concepção.
A vida do nascituro é vida humana. Logo deve ser respeitada como qualquer vida humana. “Esse respeito tem de entender-se num sentido forte, que inclui, não apenas o dever de não causar dano (neminem laedere), mas também o de dispensar, positivamente, ao conceptus, a atenção e os cuidados que ele merece, atentas a sua natureza e dignidade, bem com as circunstâncias particulares da sua extrema fragilidade e vulnerabilidade. Cabem aqui, os imperativos da justiça (suum cuique tribuere) e do amor de benevolência” .
Sendo já relativamente frequente encontrar referências doutrinárias no sentido do reconhecimento da personalidade jurídica do nascituro , a verdade é que reminiscências do significado literal do que se estabelece no art. 66º/nº1 do Código Civil permanecem.
É usual por isso encontrar expressões como personalidade parcial ou capacidade parcial do nascituro.
Ambas parecem inaceitáveis.
No que toca à primeira, nunca será demais lembrar que a personalidade, uma vez que é uma qualidade, não pode ter meios termos . Ou existe ou não existe. Acresce que tratando-se da personalidade jurídica do ser humano, por se tratar de uma qualidade pré-jurídica derivada do respeito pela sua dignidade, a segunda hipótese nem sequer se coloca. É certo que a lei pode não reconhecer personalidade a esta ou àquela entidade, mas o Direito não pode deixar de reconhecer personalidade ao ser humano. E muito particularmente neste caso, não pode haver meias-personalidades.
Por outro lado, a capacidade de gozo do nascituro tão-pouco pode ser parcial no sentido preciso do termo. O que se pode dizer é que, dada a natureza própria do nascituro, a sua capacidade só pode abranger os direitos e deveres concebíveis para a sua situação. Terá, portanto, uma capacidade mais diminuta do que a de um ser nascido. Não deixa, no entanto, de poder ser “sujeito de qualquer relação jurídica” (art. 67º, Código Civil); sucede é que as excepções a esta regra não são só as determinadas pela lei mas são, também e acima de tudo, as que derivarem da própria natureza das coisas .
3.
Tendo-se tornado lícita, porém, a interrupção voluntária da gravidez até às dez semanas após a concepção, a responsabilidade penal pela violação do direito à vida do nascituro foi abolida.
Contudo, crê-se que as reflexões que ficam feitas autorizam suficientemente a afirmação de que, do ponto de vista civil, a lesão do direito à vida do nascituro permanece um acto ilícito. Mesmo quando penalmente o não seja.
É claro que contra este entendimento se pode antecipar, de imediato, um argumento: o princípio da unidade da ordem jurídica. No caso, admitir este princípio, acarretaria entender que o que é lícito para um efeito não pode ser ilícito para outro.
Todavia, a afirmação do princípio da unidade da ordem jurídica implica que efectivamente se considere toda a ordem jurídica e não só algumas das suas partes.
Ora, por exemplo, se pratica um acto ilícito (às vezes até de natureza penal) aquele que corta sobreiros sem a competente autorização administrativa (art. 21º, Decreto-Lei nº 169/2001 de 25/05), ou aquele que destrói ninhos ou ovos de cegonha (art. 278º, Código Penal), ou aquele que conduz um veículo automóvel com uma taxa de alcoolemia superior a 1,2 gramas por litro de sangue (art. 292º/nº1, Código Penal), terá um mínimo de coerência interna entender que a violação da vida intra-uterina sem uma razão justificativa que não passe do livre arbítrio da mãe não constitui sequer um ilícito civil ?
É precisamente o princípio da unidade da ordem jurídica que impõe, julga-se, o entendimento segundo o qual o ilícito civil se mantém não obstante o preenchimento da causa de justificação penal.
4.
A violação do direito à vida do nascituro, uma vez que este tem e deve ter personalidade jurídica e uma vez que a vida humana só pode ter-se como iniciada com a concepção, acarreta responsabilidade civil nos termos gerais do art. 483º/nº1 do Código Civil. O mesmo se diga mutatis mutandis para outros direitos de personalidade que faça sentido reconhecer ao nascituro enquanto tal.
Autores de tal violação e, portanto, obrigados à indemnização tanto podem ser terceiros como os próprios pais, incluindo a mãe . Naturalmente, indemnização por danos pessoais dentro dos standards do art. 496º do Código Civil.
E a correspondente acção judicial compete, em princípio, aos representantes legais do nascituro, nos termos, também gerais, do art. 1878º/nº1 do Código Civil.
Quando o dano causado ao nascituro consista na eliminação da sua vida, cabe aplicar identicamente a regra do nº2 do art. 496º do Código Civil e cabe entender que o direito à indemnização radica originariamente na sua esfera jurídica transmitindo-se entretanto para aqueles que seriam os seus sucessores se nascido fosse.
José A. R. L. González