Constituição não consagra direito à morte, lembra ex-procurador Souto de Moura

Actual conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça discorda da eutanásia e da morte medidcamente assistida.

O antigo procurador-geral da República Souto de Moura insurgiu-se nesta segunda-feira contra a eutanásia, sublinhando que a Constituição consagra o direito à vida, mas não um direito à morte, "para o caso de a vida deixar de ter qualidade". Invocando a Constituição, José Souto de Moura refere que "é errado falar deste suposto direito à morte, porque ele não existe, ainda que se acrescente 'medicamente assistida', como se isso alterasse o fundamental da questão".

Num texto enviado à Lusa, o actual juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça expõe os argumentos dos defensores da eutanásia para depois questionar se é "tudo uma questão de qualidade de vida". "Quem define o grau de qualidade de vida ainda suportável? Se é o próprio, estará legitimado o suícidio, sempre que alguém considere ter uma vida sem qualidade, seja por que razões forem. Terrível esta postura, porque desmobiliza da ajuda a quem está em dificuldades, e sobretudo porque a pessoa não é coisa para si mesma que possa dispor. Ninguém começou a viver por obra sua", escreve o antigo procurador-geral da República..

Mas se não é próprio que é ouvido, e a opção não é pois dele, então - enfatiza Souto de Moura - a eutanásia é "um simples homicídio, eventualmente com a atenuante da compaixão (o que revelará o nível de culpa do agente)", mas mantendo-se incólume a ilicitude "do facto".

Ainda que à margem do problema, o antigo procurador refere que não devemos esquecer que, quem legitima essa eliminação (eutanásia), seja normativamente, seja perante o caso concreto, pode estar a atender a outras razões, de "comodidade de terceiros ou economicistas", que não têm a ver com a pessoa cuja vida está em discussão. "Se a vida humana de cada um, individualmente considerado, não for considerada valor intocável, caímos inevitavelmente no binómio: vidas que vale a pena serem vividas, e que consequentemente se protegem, e vidas que não vale a pena serem vividas e que, portanto, podem ser eliminadas".

Conforme diz Souto de Moura, esta dicotomia apresenta o seguinte problema: a segunda opção leva a um desfecho que é a morte, com a característica da irreversibilidade, a qual altera completamente os dados do problema a ponto de se não poder falar de duas saídas, ambas legítimas para a questão.

Souto de Moura reconhece que existem pessoas muito diferentes umas das outras, mas alerta que, se essas diferenças forem transferidas para o campo normativo, chegaríamos a poder dizer que umas pessoas "têm mais dignidade" do que outras. "Estaria aberta a porta ao maior dos retrocessos, de que a história nos deu, de sobejo, exemplos muito tristes. Porque haveria sempre alguém que iria decidir, do ponto de vista jurídico, quem tem e quem não tem maior dignidade", advertiu.

No pensamento do magistrado, cabe ao Direito proporcionar os instrumentos eficazes, porque coactivos, que previnam as "derivas tentadoras de grupos ou indivíduos", movidos por interesses que "são particulares", num mundo que deve preservar a tolerância e o pluralismo cultural. "A inviolabilidade e a dignidade de toda a vida humana, sublinho de toda a vida humana, são criações jurídicas que não podemos deixar cair", conclui Souto de Moura.

Entretanto, mais de 4000 pessoas já assinaram a petição pública pela despenalização da morte assistida, criada, há cinco dias, pelo movimento cívico "Direito a morrer com dignidade". O número de signatário alcançado nesta segunda-feira garante que o documento será necessariamente discutido pelo plenário da Assembleia da República.

Fonte: Público