Ex-espião arrisca processo-crime por falsas declarações em tribunal

Testemunha do processo das secretas usa e abusa de evasivas perante juízes, num depoimento “extraordinariamente insólito”.

Nem os insistentes pedidos da juíza para que puxasse pela memória nem as repetidas perguntas da procuradora e dos advogados surtiram efeito. Ninguém conseguiu convencer o ex-espião que nesta quinta-feira depôs no tribunal de instância criminal de Lisboa, no chamado processo das secretas, a explicar a mando de quem andou a pesquisar informação sobre determinadas empresas privadas.

O antigo espião manteve-se na sua e não revelou nada, nem mesmo detalhes de somenos importância. As sucessivas evasivas poderão agora custar-lhe um processo-crime por falsas declarações: a representante do Ministério Público, Teresa Almeida, pediu uma certidão das suas declarações ao tribunal.

Hoje a coordenar um gabinete na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, quando trabalhava nas secretas Hugo Miguel Guimarães pesquisou, segundo a acusação, informação sobre firmas pertencentes a um homem de negócios da Madeira - não por haver suspeitas de actividades contra o Estado, mas por o empresário em questão ser ex-marido da então companheira de um dos homens fortes da Ongoing, Fernando Paulo Santos. A tese do Ministério Público é que o principal arguido deste processo, o antigo dirigente do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa Silva Carvalho, trocou informações confidenciais por um cargo bem remunerado na Ongoing, grupo que o contratou depois de deixar as secretas.

Nada indica que Hugo Guimarães soubesse que as investigações de que foi encarregue no final de 2010 por um superior hierárquico se destinavam, afinal, a servir interesses privados. Daí que tenha sido ouvido como mera testemunha, e não como na qualidade de arguido. Ainda assim, precaveu-se, não fosse ser acusado de violar o segredo de Estado, e levou uma resposta engatilhada, que repetiu até à exaustão em tribunal, para exasperação dos magistrados: “Recebia ordens pelos canais legais”.

Perante a sua recusa em esclarecer os factos passados na sua antiga vida, a juíza Rosa Brandão bem o advertiu de que incorria no crime de falsas declarações. E a procuradora bem se queixou da sua falta de respeito pela justiça e pelo tribunal. “Não sei”, “Não me recordo”, insistia o antigo espião, num tom de voz quase inaudível - apesar de numa fase anterior do processo, há três anos, ter prestado declarações ao Ministério Público dando então informações bem mais relevantes sobre o caso. Desta vez, quando lhe perguntaram se recebia ordens por escrito ou oralmente, quis saber o que significava “por escrito”, para logo de seguida voltar à explicação do costume: “Era pelos canais legais”. Que canais eram esses nunca disse.

Antes de sair da sala de audiências, ainda teve tempo para acenar aos seus antigos chefes sentados no banco dos réus, suspeitos de violação do segredo de Estado, corrupção passiva e abuso de poder, entre outros crimes. Perplexo, um dos advogados não se inibiu de comentar a sua prestação: “Foi um depoimento extraordinariamente insólito”.


Fonte: Público