Arguidos que não queiram assinar acusados de desobediência

Supremo Tribunal de Justiça obriga suspeitos de falsificação de documentos a fazer prova da caligrafia em sede de inquérito. Se não o fizerem, podem ser condenados por desobediência

Em pleno interrogatório, três arguidos - suspeitos do crime de falsificação de documentos - foram obrigados pelo procurador do Ministério Público (MP) a escrever "umas palavras à toa" num papel para que depois a sua caligrafia fosse alvo de uma perícia. Se não o fizessem,o representante do Ministério Público da comarca do Porto, ameaçava acusá-los do crime de desobediência a uma autoridade judiciária. Punido com pena de multa até quatro meses e mesmo de prisão até um ano.
Em nome do princípio da não autoincriminação,da proporcionalidade e da presunção de inocência, aconselhados pelo seu advogado - numa fase em que os arguidos ainda nem estavam formalmente acusados do crime de falsificação - recusaram-se a fazê-lo.
O resultado foi que acabaram mesmo acusados, e posteriormente condenados em julgamento, a uma multa de quatro meses por desobediência ao procurador. Facto insólito na Justiça portuguesa já que é admitido aos arguidos recusarem-se até a prestar declarações, caso não o queiram fazer.
Inconformados, os três arguidos recorreram desde o Tribunal da Relação do Porto até à última instância para que esta pena de multa lhes fosse retirada. Mas os juízes conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) não concordaram com a sua defesa e mantiveram a condenação: "os arguidos que se recusarem à prestação de autógrafos, para posterior exame e perícia, ordenados pelo magistrado do Ministério Público, em sede de inquérito, incorrem na prática de um crime desobediência, depois de expressamente advertidos, nesse sentido, por aquela autoridade judiciária", diz o acórdão decidido pelos juízes conselheiros. Para alguns magistrados e advogados contactados pelo DN, esta decisão é "um retrocesso civilizacional" e uma decisão que interfere com os direitos fundamentais de um arguido que é, em primeira linha, um cidadão.
"Os meus clientes sempre se recusaram. Nunca tiveram qualquer problema nem foram alvo de qualquer processo crime por desobediência", explica ao DN o advogado João Fonseca. "Aliás, muitos procuradores partilhavam a minha posição que ficava sempre expressa nos interrogatórios a que eu assistia". O advogado admite que isto é "voltar à idade da pedra e um retrocesso nas garantias que o arguido ganhou até aqui". Um magistrado da área do Porto, João Gouveia, admite que "uma coisa é um juiz de instrução fazê-lo. mas um procurador do Ministério Público torna-se absurdo", diz o magistrado judicial que diz que "esta é mais uma decisão que cheira a mofo".
Tese também defendida pela magistrada que também esteve no processo de decisão do acordão do Supremo Tribunal de Justiça. A juíza conselheira foi o voto vencido no colectivo. E justificou:"a sujeição do arguido a recolha de autógrafos, contra a sua vontade, enquanto limitação ao princípio da não-autoincriminação, e fazendo a concordância prática entre os interesses em conflito, só deverá ser possível após consagração legal expressa, com cumprimento dos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade".
O mesmo é dizer:este pedido por parte dos procuradores do MP só deve ser aceitável quando outras formas de obter prova não possam ser feitas. Como por exemplo, obter um documento que permita fazer a necessária peritagem para averiguar da existência (ou não) de um documento falsificado. "Considerando -se que aquela limitação não está legalmente prevista, não podemos entender que possa ser ordenada pelo Ministério Público, com cominação do crime de desobediência", explica a juíza conselheira, no acórdão a que o DN teve acesso.
Já os restantes magistrados - defensores da tese que vingou - admitem que "da mesma forma que não pode efetuar -se uma análise ao sangue, sem previamente haver lugar à sua recolha, para essa análise, não pode efetuar -se perícia sobre escrita ou assinatura, manuais, sem recolha prévia de autógrafos da pessoa investigada". E admitem que a recolha de autógrafos para efeitos de investigação criminal, "é um ato preparatório sine qua non da realização de perícia e não importa violação do direito à identidade, ou de qualquer outro direito fundamental, antes é manifestação deste direito à identidade pessoal, e também não integra violação da dignidade da pessoa, antes manifesta modo de expressão social, através da escrita, do seu ser e por isso o seu conhecimento não é proibido, porque não viola qualquer direito ao segredo de ser, ou violação de direito ao sigilo", concluem os magistrados, na decisão que o DN teve acesso.A magistrada que vai contra esta corrente admite ainda "que não constituirão exemplares verdadeiramente autênticos da escrita manual do arguido, justamente, por serem produzidos numa situação em que o arguido é forçado a colaborar com o Ministério Público para se eximir ao procedimento criminal por crime de desobediência", concluiu. "Isto gera um clima de terror e obtenção de prova à força que no Estado de Direito não faz sentido absolutamente nenhum", diz outro juíz que preferiu o anonimato. "A verdade é que nem sequer acho que as conclusões dessa perícia sejam fidedignas, já que o arguido pode até estar a tremer , por exemplo, caso esteja nervos.", concluiu.

Fonte: Diário de Notícias