TC impede fisco de responsabilizar gestores por multas das empresas

Finanças garantem que Autoridade Tributária tem instruções desde 2012 para não aplicar a norma agora julgada inconstitucional.

O Tribunal Constitucional (TC) chumbou uma norma inscrita no código das infracções tributárias que permitia ao fisco responsabilizar os gestores a título pessoal pelas multas das empresas, nas situações em que estes tivessem colaborado em práticas que conduziram a essas coimas. Por ter força obrigatória geral, como prevê o acórdão publicado na quinta-feira em Diário da República, esta decisão vinda do Palácio Ratton vai aplicar-se a todos os casos a partir de agora.

Acórdãos anteriores do TC sobre casos concretos tinham ido no mesmo sentido. E, segundo o Ministério das Finanças, o fisco já não aplicou este procedimento nos últimos dois anos. Ao PÚBLICO, o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Paulo Núncio, garantiu que “desde 2012 a Autoridade Tributária e Aduaneira tem instruções para não aplicar a norma que agora foi julgada inconstitucional”. Uma vez que — assegura Paulo Núncio — o fisco já não está a responsabilizar os administradores pelas multas ou coimas aplicadas à empresa em causa, a decisão do TC “não irá alterar os procedimentos já adoptados”.

A apreciação do número sete do artigo 8.º da Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) foi requerida pelo Ministério Público e surge depois de os juízes-conselheiros se terem pronunciado no mesmo sentido, da inconstitucionalidade, em três casos concretos. Daí que este acórdão faça jurisprudência. A norma analisada pelo TC estabelece que “quem colaborar dolosamente na prática de infracção tributária é solidariamente responsável pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infracção, independentemente da sua responsabilidade pela infracção”.

Esta regra pode ter duas implicações diferentes, como explicou ao PÚBLICO José Pedroso de Melo, especialista na área fiscal da SRS Advogados: “A condenação do gerente, simultaneamente, ao pagamento de multa a título pessoal e ao pagamento da multa aplicada à sociedade; ou “a condenação do gerente apenas ao pagamento da multa aplicada à sociedade”. O artigo em causa não se limita aos gerentes, mas a decisão do TC só abrange quem ocupa estes cargos, o que que significa que continuam a poder ser condenados outros responsáveis, como sócios ou trabalhadores que tenham participado na infracção.

No acórdão, com data de 18 de Fevereiro, é declarada a inconstitucionalidade da norma “na parte em que se refere à responsabilidade solidária dos gerentes e administradores de uma sociedade que hajam colaborado dolosamente”. Serena Cabrita Neto, especialista em direito fiscal da PLMJ, explicou que esta interpretação “já era reclamada há muito tempo” pelos visados, já que “eram automaticamente responsabilizados a título pessoal pelas multas das empresas”, o que “violava a Constituição”, uma vez que o número três do artigo 30.º estabelece que “a responsabilidade penal é insusceptível de transmissão”.

Ao mesmo tempo, lembrou José Pedroso de Melo, o facto de haver uma “aplicação simultânea de multas ao gerente a título individual e a título solidário para com a sociedade” violava o número 5 do artigo 29.º da Constituição, que estabelece que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelos mesmos factos.

“O que o TC vem dizer”, explicou o mesmo advogado, “é que o segundo caso [da condenação simultânea dos gestores e das empresas] subsume o primeiro [da responsabilização solidária]”. Por isso, os juízes-conselheiros apenas se pronunciaram sobre esta última questão, uma vez que, “sendo inconstitucional norma por não ser possível transmitir a responsabilidade penal da sociedade para o gerente ou administrador, então nunca será possível haver cumulação das duas responsabilidades”, concluiu José Pedroso de Melo.

O fiscalista Rogério Fernandes Ferreira, ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais do último Governo de António Guterres, considera igualmente que “não é sustentável uma norma que implique ao gerente de uma sociedade a responsabilidade solidária pelas multas ou coimas aplicadas a essa mesma sociedade, pelo simples facto de se querer acautelar o pagamento das mesmas, nem para prevenir a possibilidade dessas sociedades virem a encontrar-se numa situação de insuficiência patrimonial”.

Governo prevê alterar legislação
A decisão do TC não implica necessariamente alterações ao regime das infracções tributárias, mas, a partir de agora, o fisco já não poderá fazer valer-se daquele artigo, procedimento que o Governo diz estar já em prática desde 2012. “Seria bom que o legislador limpasse todas as normas que são declaradas inconstitucionais, mas os códigos não são revistos com tanta regularidade e há normas que perduram apesar de os tribunais não as aplicarem”, referiu Serena Cabrita Neto. Até que haja mudanças na lei, “o fisco deverá abster-se de litígios inúteis”, uma vez que agora existe este acórdão, acrescentou. O Ministério das Finanças já veio garantir que a legislação será “alterada oportunamente” para conformar a decisão do TC.

O que o TC vem determinar é a “correcção da interpretação, colocando nos carris a aplicação da lei”, enfatizou Carlos Almeida Lemos, da Abreu Advogados, que num artigo assinado em Julho do ano passado com Sara Soares, da mesma sociedade, já aplaudira um acórdão que saiu do Palácio Ratton com o mesmo sentido.

O acórdão implica o fim “da vigência de normas, vinculando, assim, o legislador e os próprios tribunais”, diz Fernandes Ferreira. Mas, mais do que jurisprudência para o futuro, a decisão do TC tem efeitos retroactivos nos casos que não tenham ainda transitado em julgado. De acordo com o artigo 282.º da Constituição, a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral “produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional”, ficando apenas ressalvados “os casos julgados, salvo decisão em contrário do TC”.

Entre os 13 juízes-conselheiros, apenas Maria de Fátima Mata-Mouros votou vencida. Numa declaração de voto, a juíza considera que persistir na inconstitucionalidade ignora a interpretação dada em Janeiro pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) num acórdão sobre esta matéria.


Fonte: Público