Nova lei do comércio gera confusão

Advogados antecipam que a "litigância vai aumentar".

O Objetivo do Governo era claro: equilibrar a relação de forças entre os grandes operadores de distribuição e os seus fornecedores - impedindo abusos por parte das grandes cadeias de retalho - e dar mais transparência às relações comerciais entre produtores e distribuidores. Mas a lei que introduz o novo regime das Práticas Individuais Restritivas do Comércio (PIRC), e que entra em vigor hoje, parece despertar mais dúvidas do que as que resolve.

Se os operadores não se entenderem em sede de autorregulação, como sugere a lei, todas as partes admitem que a face mais visível do novo regime seja o elevado número de processos em tribunal. E a subida de preços é um dano colateral que as empresas de distribuição não descartam.

As dúvidas dos produtores levaram entretanto a Associação de Produtos de Marca (Centromarca) a pedir inclusive ao Governo, ontem - ou seja, na véspera da adoção da nova lei - um adiamento da entrada em vigor do diploma. Na base do pedido da Centromarca - que sempre esteve do lado dos que defendiam os méritos da nova lei e a necessidade de reequilibrar forças entre a produção e a grande distribuição - esteve a constatação de que "subsistem algumas dúvidas importantes que, não sendo esclarecidas, poderão conduzir a uma incerteza excessiva e a alguma consequente entropia nas relações entre a produção e a distribuição". Até ao momento o Governo não se pronunciou sobre este pedido.

Na antecâmara da entrada da lei em vigor, as posições do mercado podiam ser sintetizadas da seguinte forma: os produtores aplaudem o "primeiro passo", mas queriam que fosse mais longe e pedem condições para a eficácia na aplicação da lei; os distribuidores contestam-na e já pedem a sua revisão; e os especialistas em direito da concorrência socorrem-se dos manuais para encontrarem uma saída para o que alguns já rotularam de "labirinto jurídico" - como disse o advogado Miguel Sousa Ferro -, cujo impacto no mercado se transformou num "exercício de adivinhação" - como lamentou o advogado Joaquim Vieira Peres.

Estas posições ficaram bem expressas nos dois seminários que as associações de produtores (Centromarca) e de distribuidores (APED) organizaram para debater e discutir o impacto da nova lei. E as "complexidades" do novo diploma foram até admitidas pela Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE), que acrescentará agora à fiscalização do mercado a competência de aplicar multas, que até agora incumbia à Autoridade da Concorrência (ver texto ao lado).

As dúvidas criadas pela lei


O facto de o diploma só ser aplicável a empresas estabelecidas em Portugal é um exemplo de alteração que poderá trazer mais distorção do que clarificação. Porque - defendem os advogados e corroboram os distribuidores - este pressuposto favorece as cadeias multinacionais, que podem contornar a lei se negociarem com fornecedores através de centrais de compra fora do país.

No limite, dizem ao Expresso fontes do mercado de distribuição, a lei acaba, de forma involuntária, por ser "um convite descarado" para que as empresas portuguesas estabeleçam centrais de compra fora de Portugal ou para que importem mais produtos de fora da União Europeia (UE). Situações que, apontam as mesmas fontes, podem prejudicar mais do que beneficiar os produtores portugueses, que têm assinado vários protocolos de apoio à produção nacional com cadeias de distribuição.

Mas confrontado com estes receios, o presidente da Confederação Nacional das Cooperativas Agrícolas (CONFAGRI), Manuel dos Santos Gomes, diz tratar-se de um exemplo de tentativa de "desestabilização da opinião pública" por parte da distribuição. "Por toda a UE está a ser equacionada legislação similar à agora apresentada em Portugal", diz, convicto de que esta lei é "o caminho certo para garantir um desenvolvimento adequado das atividades produtivas".

Além da questão territorial da aplicação da lei há outras matérias no diploma que, defendem os advogados, são passíveis de gerar confusão no mercado e que têm potencial para aumentar o recurso aos tribunais. Exemplos? A sobreposição de campos entre este diploma e a Lei da Concorrência; a eventual inconstitucionalidade do novo montante máximo de multa de ¤2,5 milhões (por este valor ser mais de 500 vezes superior à multa mínima); a dificuldade de perceber as novas regras de cálculo para a formação do preço de compra ao fornecedor na sequência de descontos em cartão; até, por exemplo, à possibilidade, aberta por esta lei, de o distribuidor poder ser multado por erros em faturas de fornecedores.

"Tudo isto vai trazer insegurança jurídica para a relação entre fornecedor e retalhista. E parte desta incerteza pode passar para o consumidor e gerar uma pressão inflacionista nos preços", resume a diretora-geral da APED, Ana Trigo Morais. "Ao regular de forma excessiva, o Estado impede, por exemplo, que as empresas de distribuição possam reagir de forma rápida às iniciativas da concorrência e construam a melhor proposta de valor para os consumidores", diz.

Os méritos da lei


Esta posição da APED é, no entanto, encarada pela CONFAGRI como "um processo de intimidação aos consumidores" e uma "tentativa de os colocar contra os produtores". Porque, diz Manuel dos Santos Gomes, a lei "em nada impede as promoções ou descontos". "Introduz regras para a sua implementação, defendendo o interesse do consumidor em conjugação com outros valores, como sejam a são concorrência e o combate ao dumping", contrapõe o presidente da CONFAGRI.

Uma posição partilhada pelo diretor-geral da Federação das Indústrias Portuguesas Agroalimentares (FIPA), Pedro Queiroz. "Não vemos como é que uma lei que pretende criar condições para que as relações entre os vários elos da cadeia de valor sejam mais equilibradas e mais transparentes possa vir a comportar prejuízos para o consumidor", diz.

Santos Gomes sustenta, aliás, que a lei permite corrigir o "estrangulamento progressivo, por via das condições contratuais impostas", que diz ter-se verificado nos últimos anos, com o fortalecimento dos grandes operadores de retalho.


Fonte: Expresso