Bruxelas avança com plano para superar crise na habitação em cinco eixos: dos transportes públicos às rendas

Comissão Europeia recomenda investir nos transportes públicos, na mobilização de imóveis vazios, controlo de rendas para os carenciados, limites aos AL e na aceleração das licenças para construção.

A Comissão Europeia apresenta até ao final do ano uma “estratégia europeia para a habitação”, revelou o presidente do Conselho Europeu e ex-primeiro-ministro de Portugal, António Costa, à Antena 1. E Bruxelas tem já um conjunto de recomendações dirigidas ao nosso país em cinco eixos, que passam pela melhoria da rede de transportes públicos, mobilização de imóveis vazios, controlo de rendas para as famílias mais carenciadas, limites aos estabelecimentos de Alojamento Local (AL) e aceleração das licenças para construção, segundo um documento de trabalho divulgado na semana passada.

“Sem uma oferta pública de habitação não é possível regular o mercado. Finalmente a União Europeia assumiu a habitação como uma política essencial”, afirmou esta quarta-feira António Costa, em entrevista ao podcast da rádio pública “Política com Assinatura”. O socialista indicou ainda que o dossiê fará parte do próximo quadro plurianual, isto é, haverá fundos comunitários para ajudar os Estados-membros a superar a crise na habitação.

Para já, estão identificadas cinco áreas-chave em que o Governo português deve atuar. O relatório de Bruxelas sobre as políticas económicas, sociais, de emprego, estruturais e orçamentais do nosso país indica que é necessário:

1. “Uma maior regulamentação dos arrendamentos turísticos de curta duração em zonas sob pressão”;

2. A “adoção de medidas de regulamentação das rendas para proteger os grupos mais afetados”;

3. “Uma avaliação da oferta de habitações vagas, abandonadas ou subutilizadas, tanto no parque público como no privado, nas cidades mais afetadas, promovendo a sua disponibilidade”;

4. A “avaliação das necessidades de investimento e tendo em conta os atrasos na concessão de licenças de construção e na construção de habitação social e a preços acessíveis”,

5. A “promoção de transportes públicos mais eficientes e a melhoria da rede de transportes públicos, que facilitariam as deslocações pendulares a partir das zonas suburbanas e rurais, aumentariam a atratividade de outras zonas e reduziriam a pressão sobre os grandes centros urbanos”.

Relativamente à “regulamentação das rendas”, a economista especialista em Habitação, Vera Gouveia Ramos, alerta que “não significa colocar um teto às rendas, ou seja, não é a única forma de materializar a medida”. Aliás, salienta, “Portugal já tem um controlo das rendas por um lado através do coeficiente de atualização indexado à inflação e um limite adicional de dois pontos percentuais” de aumento para novos contratos relativamente a imóveis que estejam no mercado de arrendamento nos últimos cinco anos.

Mais importante do que a regulamentação dos preços dos arrendamentos “é a referência da Comissão à necessidade de melhoria da rede de transportes públicos para agilizar os movimentos de casa-trabalho, trabalho-casa e libertar a pressão dos centros das cidades.

Para além disso, e no que diz respeito à transferência de “cerca de 700 mil imóveis vagos para o mercado habitacional”, a economista sinaliza que “só cerca de metade é que estão efetivamente vazios“, uma vez que os restantes já foram afetos à venda ou arrendamento.

As recomendações comunitárias têm por base o diagnóstico realizado pelos serviços comunitários relativamente ao panorama nacional. “O aumento da procura de habitação nas grandes cidades e nas zonas turísticas populares agrava a escassez de habitação a preços acessíveis e compromete a coesão social”, sinaliza a Comissão, que concluiu que “os grupos mais afetados incluem os jovens, as famílias com rendimentos baixos e médios e as pessoas desfavorecidas”.

“Estes grupos enfrentam um aumento dos preços de arrendamento e não conseguem comprar imóveis devido ao nível elevado das taxas de juro e dos preços da habitação. Entre 2015 e 2023, os preços da habitação em Portugal aumentaram 105,8 %, em comparação com 48,1 % na União Europeia (UE)”, aponta o mesmo documento.

Desde a última década, Portugal registou um aumento acentuado dos custos no arrendamento. “Os preços atingiram um máximo de 30 anos, com um aumento homólogo de 7,3 % em dezembro de 2024”, anota Bruxelas. A par disso, e apesar de o país ter uma elevada taxa de propriedade de imóveis, “o rácio entre as novas rendas e os rendimentos aumentou significativamente ao longo da última década, com aumentos de 9,3 % em termos homólogos”, lê-se no mesmo relatório.

E “a habitação continua a ser, em grande medida, inacessível aos jovens, aos grupos vulneráveis e, cada vez mais, às classes de rendimentos médios e baixos, que enfrentam custos de arrendamento substanciais”. Em 2024, a taxa de sobrecarga ou de esforço, o que corresponde à percentagem de pessoas que gastam mais de 40% do rendimento do agregado familiar em habitação, aumentou 2 pontos percentuais (p.p.) em comparação com 2023, atingindo 6,9 %, ao passo que diminuiu globalmente na UE, para 8,2%, segundo a Comissão Europeia. Em Portugal um em cada três inquilinos (30,3%) sofrem uma taxa de esforço superior a 40%, quando na UE o rácio é de apenas 19,2%.

“Estudos recentes mostram que os preços de arrendamento estão a aumentar mais rapidamente do que os salários médios, em especial em Lisboa, onde, em média, uma pessoa tem de gastar 52% do seu salário para pagar a renda, o que limita a capacidade de as pessoas arrendarem de forma independente”, sublinha a Comissão Europeia.

Para além disso, “o atual parque habitacional social a preços acessíveis é insuficiente para satisfazer a procura”, refere. “Apesar dos esforços envidados no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e da política de coesão de Portugal, juntamente com outros investimentos públicos”, os quais “deverão aumentar o parque habitacional até 2030, não existe habitação social e a preços acessíveis em quantidade suficiente”, admite Bruxelas.

Não obstante as dificuldades sinalizadas, o organismo comunitário, liderado por Ursula von der Leyen, reconhece que Portugal tem “um objetivo ambicioso de aumentar o parque habitacional público para 5% do total da habitação até 2026 e de prestar apoio ao arrendamento ou à aquisição de habitação para os grupos e agregados familiares mais vulneráveis”.

Porém, ressalva, “os atuais esforços podem não ser suficientes para proporcionar as soluções sistémicas e de curto prazo necessárias”. “Portugal tem um parque habitacional público muito reduzido, inferior a 2%, enquanto, em 2022, as habitações vagas, excluindo as residências sazonais e de férias, representavam cerca de 12% do parque habitacional total do país”, refere.

Por outro lado, a construção de 26 mil casas, no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), e de mais 33 mil, prometidas pelo atual Executivo de Luís Montenegro, até 2030, está muito atrasada. No âmbito da bazuca europeia, o objetivo de erguer 26 mil casas já está comprometido. “Apenas 3% foram entregues até setembro de 2024, tal suscita sérias dúvidas quanto à capacidade de cumprir as metas estabelecidas até ao final do período de vigência do PRR em 2026″, alerta Bruxelas.

Para Comissão Europeia, as medidas adotadas recentemente pelo Governo de Luís Montenegro como “benefícios fiscais e garantias públicas, para ajudar os jovens a aceder à propriedade” não chegam, até porque o seu impacto nas famílias de baixos e médios rendimentos não é visível.

Em 2023, no tempo do Executivo de maioria absoluta socialista de Portugal, foram introduzidas “iniciativas específicas para apoiar os agregados familiares vulneráveis ou com rendimentos mais baixos nas despesas com a renda, incluindo medidas reforçadas como o Porta 65+ e o apoio extraordinário à renda”, acrescentou. Ainda que este conjunto de instrumentos tenha “um efeito imediato na capacidade dos mais vulneráveis em pagar a renda”, Bruxelas avisa que não é “uma solução sistémica” ou estrutural. Isto significa que estas iniciativas não vão resolver a crise na habitação.

Neste sentido, “Portugal deve ponderar a adoção de medidas duradouras para controlar o rápido aumento dos preços das rendas” como a regulamentação do Alojamento Local em zonas de pressão urbanística, o controlo de rendas no caso dos mais desfavorecidos, a mobilização de imóveis vazios para o mercado habitacional, a aceleração dos licenciamentos para construção e reabilitação e melhoria da rede de transportes públicos, sugere. Sobretudo neste último ponto, há uma clara ligação às políticas de coesão territorial. Daí que António Costa tenha referido que o dossiê sobre a crise na habitação será integrado no próximo quadro plurianual, pós-2027.

Proprietários criticam estratégia europeia e defendem fim do teto às rendas
Os proprietários estão contra o plano de Bruxelas e alegam que a Comissão Europeia não tem competências para regular o mercado da habitação dos Estados-membros, porque se trata de uma prerrogativa nacional. Este mesmo argumento foi invocado pela economista Vera Gouveia Barros para defender que a responsabilidade em matéria da habitação pertence ao Governo português e ao novo comissário europeu para a energia e habitação, Dan Jørgensen.

“O relatório da Comissão Europeia é infeliz. O que deve ser feito não é controlar ou regulamentar as rendas, é deixar o mercado funcionar”, defende Luís Menezes Leitão, presidente da Associação Lisbonense de Proprietários (ALP). E lembra que “a política de habitação é uma competência dos Estados-membros”. Por isso, Bruxelas “deve resumir-se a apoiar as políticas dos Estados-membros”.

As “medidas gravosas do pacote Mais Habitação do anterior Governo socialista como o teto às rendas em dois pontos percentuais ou a manutenção do congelamento dos contratos anteriores a 1990 não foram revogadas pelo Executivo de Luís Montenegro, prejudicando o mercado de arrendamento”, lamentou Menezes Leitão.

No que diz respeito às rendas antigas, “o Governo socialista acabou por dar o dito pelo não dito e em vez de as atualizar, dando um subsídio aos inquilinos, preferiu congelar e dar um apoio aos senhorios que tarda em chegar”, desabafou. Ora as recomendações de Bruxelas com vista à regulamentação das rendas “vêm minar ainda mais a confiança dos proprietários”, salienta.

Para Menezes Leitão, o problema da crise na habitação resolve-se quando se “revogar totalmente o pacote Mais Habitação e voltar a lei Cristas”, que foi implementada em 2012, durante a troika, e que permitiu a atualização das rendas anualmente de acordo com a inflação e facilitou os despejos.

Mais radical, o presidente da Associação Nacional de Proprietários, António Frias Marques, a crise da habitação não se resolve com as propostas de Bruxelas. Aliás, “trata-se de um problema insolúvel, enquanto continuarem a chegar imigrantes a Portugal, porque não há casas para toda a gente”, atirou.

Frias Marques rejeita ainda um eventual controlo de rendas para proteger as famílias mais vulneráveis, considerando que “só o mercado pode regular-se a si próprio”. E traça o cenário do arrendamento habitacional: “Apenas 1% das rendas é inferior a 1.000 euros, sendo que a renda média anda à volta dos 400 euros e há cerca de 150 mil contratos com rendas antigas, muito baixinhas, anteriores a 1990”.

Fonte: Eco