Crise política, guerra e inflação provocam queda recorde na contratação pública em Portugal
Governo tenta salvar a situação e avançou há dias com um "regime excecional e temporário para permitir revisão de preços nos contratos públicos, devido ao aumento abrupto nos custos de materiais, mão-de-obra ou equipamentos".
A crise política que culminou no chumbo da primeira proposta de Orçamento do Estado para 2022 (OE2022) e na queda do governo em outubro passado, a guerra que rebentou na Ucrânia em fevereiro, a subida em flecha da inflação e dos custos de produção combinados com a agudização do clima de incerteza global que assusta já muitos empresários e investidores provocaram e continuam a provocar danos graves na contratação pública em Portugal.
O valor em contratos celebrados entre entidades públicas e empresas (maior parte delas privadas) afundou mais de 40% no primeiro trimestre deste ano face a igual período de 2021 (altura em que a pandemia estava no seu auge), naquele que é o recuo mais violento da contratação pública, segundo cálculos do Dinheiro Vivo (DV) com base nas estatísticas dos contratos publicados no Portal Base (Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção), séries que remontam ao início de 2011.
De acordo com o levantamento feito pelo DV no Base, o maior contrato público publicitado neste primeiro trimestre (e maior do ano até final de maio) não foi sequer uma empreitada de construção. Acabou por ser um na área da Saúde com o objetivo de contratar refeições hospitalares durante dez anos e modernizar as cozinhas do São João, no Porto.
O valor do negócio supera os 38,9 milhões de euros, o que acabou por ajudar o trimestre a não ser ainda pior.
O Centro Hospitalar Universitário de São João adjudicou a "aquisição de serviços de alimentação com remodelação das instalações de cozinha e refeitório" mais o "fornecimento de cozinha temporária à empresa espanhola Mediterránea de Catering, SLU.
A entidade pública SUCH - Serviço de Utilização Comum dos Hospitais também entra no negócio por faz consórcio com os espanhóis.
Um afundanço que já vem de trás
O afundanço do primeiro trimestre acumula com a forte retração que aconteceu no quarto trimestre do ano passado (coincidente com a altura da crise política e da queda do governo PS), na ordem dos 36%, segundo contas do DV.
Antes do colapso de 40% deste primeiro trimestre de 2022, a pior marca nos dados oficiais sobre a contratação pública aconteceu no segundo trimestre de 2012 (queda homóloga de 38%), mas nessa altura o país estava submetido a um programa de austeridade violento que asfixiou muita despesa e investimentos públicos, além do facto de o rating da economia ser então considerado lixo e de haver muitos investidores pouco crentes na capacidade de Portugal superar a crise.
Mas, atualmente, a situação é de tal forma séria que muitos projetos e obras (apoiados por fundos europeus), que estavam previstos arrancar para aproveitar os fundos europeus para ajudar a sair da crise pandémica (no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), por exemplo, que só dura até 2026), acabaram por ficar suspensos ou atrasar bastantes.
Há relatos de empresas que decidiram desistir de concorrer a concursos públicos porque os preços praticados não compensariam os custos de produção.
O governo, através do Ministério das Infraestruturas, avançou, entretanto, com um "regime excecional e temporário para permitir revisão de preços nos contratos públicos, devido ao aumento abrupto nos custos de materiais, mão-de-obra ou equipamentos".
A ideia é que a subida de custos das empresas não venha a inviabilizar o interesse em fazer ou permanecer nas obras em curso e assim evitar que estas paralisem; e, já agora, evitar que os concursos públicos que ainda venham a ser lançados fiquem desertos de propostas (algo que, aliás, já aconteceu em alguns projetos antes desta fase aguda da crise inflacionista).
Governo admite, Presidente carrega
A ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, que agora têm a tutela direta dos fundos europeus já admitiu que há problemas no arranque dos fundos europeus, nomeadamente do PRR, por causa do agravamento da situação económica mundial e do resto de destruição na Ucrânia que ainda não teve um fim.
A urgência em aproveitar bem e ao máximo os fundos europeus é algo que tem sido altamente dramatizado pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.
Há duas semanas, a ministra Vieira da Silva admitiu na RTP que "há um mundo diferente com múltiplas dificuldades de acesso a matérias-primas e materiais e isso vai pressionar a execução do PRR".
"Alguns países já disseram que há um ritmo de execução de metas que não é possível" de cumprir e que, nesse sentido, até já estarão em conversações com a Comissão Europeia para flexibilizar os prazos do PRR e as datas para cumprir metas de modo a se conseguir usar todos os fundos disponíveis.
No Plano Nacional de Reformas, que o governo entregou em Bruxelas no início de maio juntamente com o Programa de Estabilidade, há até o reconhecimento oficial de que o cumprimento de algumas metas (cerca de uma dezena) está "em atraso", isto em relação ao PRR, um quadro avaliado em 16,6 mil milhões de euros até 2026, dos quais 13,9 mil milhões são verbas a fundo perdido.
Sobre isto, a ministra disse que os compromissos atualmente "em atraso" serão ultrapassados "brevemente". "A nossa perceção é que teremos capacidade de os cumprir" e, assim, não comprometer o recebimento de novas tranches.
Seja como for, tudo isto está a emperrar a contratação pública, com é lógico. O primeiro trimestre regista o pior arranque anual da contratação pública (em valor absoluto) desde 2019, o ano do famoso excedente e brilharete orçamental.
Agora, estamos no final de maio e, segundo o Portal Base, foram contratados mil milhões de euros, um terço do valor publicitado no segundo trimestre do ano passado.
Ou seja, as entidades públicas teriam de fechar negócios no valor de dois mil milhões de euros em junho para se chegar ao valor de há um ano.
Fonte: Diário de Notícias
Foto: Pedro Correia/Global Imagens