Tribunais fizeram 163 mil pedidos de dados pessoais às operadoras de telecomunicações
O primeiro-ministro convocou de urgência o órgão máximo de segurança interna para avaliar o impacto do acórdão do Tribunal Constitucional que declarou ilegal a conservação dos metadados para a investigação criminal.
As operadoras de telecomunicações, como a Altice, a NOS ou a Vodafone, receberam dos tribunais 163 mil pedidos de dados pessoais de clientes , segundo os último balanço da Associação dos Operadores de Comunicações Eletrónicas (APRITEL), relativos ao ano de 2020.
Este número inclui não só os requerimentos para fins de investigação de cibercrime e de criminalidade grave, mas também alguns de tribunais cíveis (de Execução, por exemplo), como explicou ao DN fonte oficial da APRITEL, que representa 98% do mercado, embora não fosse possível discriminar quanto corresponde a cada.
Esta dimensão de pedidos anuais (com uma "tendência crescente", segundo a associação) permite, ainda assim, ter uma ideia do real impacto que poderá ter no sistema judiciário, principalmente investigação e repressão dos crimes mais graves - terrorismo, homicídios, criminalidade organizada, raptos, corrupção, por exemplo - quando as operadoras deixarem de poder conservar, pelo período de um ano, os dados das comunicações dos seus clientes para eventual utilização em investigação criminal, como decorre da recente decisão do Tribunal Constitucional.
Os designados metadados permitem determinar, por exemplo, a origem, destino, data e hora de uma chamada telefónica ou de uma interação pela Internet, o tipo de equipamento e localização.
O trânsito em julgado da decisão está neste momento suspenso a aguardar resposta ao pedido de nulidade requerido pela procuradora-geral da República.
A previsão de que milhares de processos-crime, em que os metadados fossem um meio de prova, podiam vir abaixo, foi afiançada ao DN por procuradores, juízes e constitucionalistas, que classificaram os efeitos do acórdão como "devastadores" e um "terramoto" para a ação penal, agravados pelo facto de a decisão ser retroativa a 2008, dada da entrada em vigor deste diploma declarado agora inconstitucional.
O próprio Presidente da República veio também a público dizer que , "ao não se pronunciar" sobre os efeitos temporais da sua decisão de inconstitucionalidade sobre normas desta lei, "significa que a decisão vale para o futuro e para o passado, e nesse sentido põe em causa a aplicação da lei nos últimos anos".
O primeiro-ministro convocou para a próxima segunda-feira uma reunião de emergência do Conselho Superior de Segurança Interna (CSSI), o órgão máximo de consulta do governo que reúne todas as forças e serviços de segurança, cujo único tema agendado é "a análise das consequências práticas decorrentes" do referido acórdão "e medidas a adotar".
Revisão da Constituição?
Conforme o DN já noticiou, a ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, pediu há uma semana à Polícia Judiciária (PJ) que analisasse o "relevante impacto na investigação" desta decisão "do ponto de vista prático e jurídico".
Ao que o DN conseguiu saber, esse trabalho está a ser feito, começando por determinar o que pode ainda ser aproveitado nos inquéritos que estão em curso, em que foram utilizados metadados, e como se pode trabalhar enquanto não houver um novo diploma legal.
No entanto, fontes que estão a acompanhar este processo defendem que a "inclinação" nas propostas que podem vir a ser feitas "tem de passar por uma revisão da Constituição".
Sublinham que muito dificilmente as necessidade atuais para a investigação da criminalidade que está em causa podem ser satisfeitas com menos acessos do que os atuais.
"Face aos grandes meios de comunicação tecnologicamente avançados utilizados pelo crime organizado internacional, face a todas as novas formas de criminalidade, como as que decorrem das ameaças híbridas, ou a cibercriminalidade, mesmo que uma nova lei fique nos limites do aceitável pelo Tribunal Constitucional, fica muito aquém das necessidades da repressão criminal, pelo que, mais tarde ou mais cedo, será inevitável uma revisão constitucional", salientam.
Essa é também a opinião do constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia: "Não há outra saída. Só receia rever a Constituição quem tem medo da democracia constitucional porque é necessária maioria de dois terços".
Já o juiz conselheiro jubilado Mário Mendes discorda que essa seja a única solução. "Entendo que a questão se resolve com uma alteração à lei dos metadados que passe por uma limitação do período de conservação, limitação da possibilidade de transmissão internacional de troca de dados e clarificação da fiscalização e partilha de dados. Ao aproximarem-se 50 anos de magistratura não gostaria de ver ser colocado em causa um princípio que sempre me guiou: em matéria de interesse público, os fundamentos de uma decisão não podem deixar de ter em conta os efeitos gerais dessa decisão. O princípio da proporcionalidade é estruturante de qualquer Estado de Direito", assevera.
Fonte: Diário de Notícias
Foto: EPA/José Sena Goulão