Estado enquadra regras do teletrabalho para funcionários públicos, mas dúvidas na lei continuam por esclarecer

Direção-Geral da Administração e do Emprego Público divulgou esta sexta-feira um conjunto de orientações para a aplicação da lei do teletrabalho na Administração Pública

A nova lei do teletrabalho entrou em vigor a 1 de janeiro de 2021, abrangendo transversalmente trabalhadores do sector privado e funcionários públicos. O novo enquadramento prevê a comparticipação ao trabalhador pelo acréscimo de despesas decorrentes do teletrabalho. Mas o efeito desta alteração só no final deste mês produzirá efeitos práticos no bolso dos trabalhadores, que serão compensados pelas despesas relativas a janeiro.

Esta sexta-feira, o Estado, através da Direção-Geral da Administração e do Emprego Público (DGAEP) divulgou um conjunto de perguntas e respostas que servirão de orientação a trabalhadores e serviços públicos na aplicação da nova lei. Mas o documento não tranquiliza os especialistas em direito laboral, que defendem que em matéria de pagamento de despesas o essencial continua por clarificar.

Uma das questões de fundo no que respeita à comparticipação ao trabalhador do aumento de custos – com energia e internet – decorrentes do teletrabalho é como é que a compensação de calcula quando há dois ou mais teletrabalhadores na mesma residência. A lei define que a comparticipação destas despesas é devida ao trabalhador e que “é calculada por comparação com as despesas homólogas do trabalhador no mesmo mês do último ano anterior à aplicação do acordo de teletrabalho”. Para desencadear o processo, o trabalhador deve entregar ao empregador os documentos que comprovem os consumos.

Ora, nada na lei define o que fazer quando as faturas não estão em nome do trabalhador ou quando exista mais do que um trabalhador de empregadores distintos a trabalhar na mesma morada. A DGAEP enquadra a questão num conjunto de FAQ (perguntas e respostas) publicado esta sexta-feira. Mas a solução que apresenta pode colocar problemas sob o ponto de vista jurídico e da proteção de dados, reconhece o especialista em Direito Laboral, Pedro da Quitéria Faria, sócio da Antas da Cunha Ecija.

No documento hoje divulgado na sua página da internet, a DGAEP começa por reconhecer que “a letra da lei não dá uma solução imediata a esta questão [comparticipação de desepesas quando há dois coabitantes em teletrabalho]”. E aponta que, nestes casos, “a análise terá de ser feita casuisticamente, tendo em conta o princípio da não duplicação da compensação destas despesas (corolário do princípio da proibição do enriquecimento sem causa) e os princípios gerais do direito aplicáveis, designadamente o princípio da proporcionalidade e da adequação”.

A solução apontada pela DGAEP é uma repartição das despesas adicionais pelos vários empregadores. Mas como? “Para efeitos da repartição das despesas adicionais pela eventual pluralidade de empregadores envolvidos deverá atender-se ao período normal de trabalho diário de cada teletrabalhador, às necessidades de utilização da rede que o teletrabalho de cada um em concreto exige (capacidade, velocidade, etc), entre outros fatores que só em concreto são possíveis de concretizar”, determina. A nota acrescenta que “nestes casos, por uma razão de certeza e segurança jurídica, é aconselhável que seja pré-estabelecido um acordo de pagamento entre os vários empregadores e os respetivos trabalhadores”.

Troca de informação entre empregadores não está prevista
Orientações que para Pedro da Quitéria Faria “não ajudam nem clarificam de forma cristalina como e de que modo é que se afere em que períodos é que ambos estão em teletrabalho. E, mais do que isso, qual a forma de articulação desta informação entre empregadores”. O advogado recorda que “não resulta da lei a imposição ou imperatividade da troca de informação entre a potencial pluralidade de empregadores que terão que pagar as justas despesas analisadas em concreto, ao teletrabalhador com o qual têm vinculo”.

Mais, Pedro da Quitéria Faria, recorda que a solução apontada pela DGEAP pode resultar num conflito com o Regime Geral da Proteção de Dados (RGPD). Reconhecendo que “o artigo 6 do RGPD tem como causa de licitude do tratamento de dados a partilha sempre que esteja em causa o cumprimento de uma obrigação legal”. Ou seja, se for entendido que a partilha destes dados é para cumprir obrigações legais no âmbito de legislação imperativa de direito do trabalho”, o advogado admite que “possa ser justificável porque, em tese, é uma forma de garantir o cumprimento da legislação laboral”.

No entanto, a questão que se impõe, acrescenta, “é se existiria outra forma de garantir o cumprimento da lei?”. Não havendo outra forma, Pedro da Quitéria Faria, admite como “justificável, em teoria, enquadrar a licitude do tratamento destas dados para cumprimento da lei”. Mas o advogado admite que “existirão empresas que não concordam com esta interpretação e não fornecerão dados porque entendem que não o podem fazer ao abrigo do RGPD”. Nesses casos, sinaliza, a forma de ultrapassar a questão será plasmar nos acordos de teletrabalho firmados entre o empregador e o trabalhador a legitimação da partilha dados para efeitos de cumprimento da obrigação legal. Requisitos, vinca, adensam a já complexa teia legal.

Desde que foi conhecida a nova lei do teletrabalho que os advogados alertam para as muitas pontas soltas que o articulado deixa nesta matéria, antecipando um aumento da litigância laboral. Além do pagamento de despesas, a atual lei do teletrabalho aumentou o universo potencial de profissonais que podem requerer o teletrabalho sem necessidade de acordo com o empregador (que passou a abranger trabalhadores com dependentes até aos 8 anos de idade) e impõe o dever de abstenção de contacto por parte do empregador, durante o período de descanso dos trabalhadores.

As orientações do Estado para o cumprimento da lei na Administração Pública
Que trabalhadores podem ser abrangidos?

O regime do teletrabalho aplica-se a trabalhadores em funções públicas com vínculo constituído por contrato de trabalho em funções públicas (artigos 6.º e 7.º e n.º 1 do artigo 68.º da LTFP), ou por vínculo de nomeação desde que, por regra, o requeira e haja acordo do empregador público (artigos 6.º, 8.º e n.º 1 do artigo 69.º da LTFP). No entanto, para os trabalhadores com vínculo de nomeação enunciados no n.º 2 do artigo 2.º da LTFP, o regime do teletrabalho apenas é aplicável se os respetivos regimes constantes de lei especial determinarem a aplicação subsidiária do regime aplicável aos trabalhadores com vínculo de emprego público neste âmbito.

O teletrabalho é aplicável a trabalhadores com vínculo de emprego público constituído por comissão de serviço?

À Comissão de serviço, enquanto modalidade de vínculo de emprego público, é aplicado, na falta de norma especial, a regulamentação prevista para o vínculo de emprego público de origem e, quando esta não exista, a regulamentação prevista para os trabalhadores contratados. A comissão de serviço aplica-se aos titulares de cargos não inseridos em carreiras, designadamente cargos dirigentes, e aos trabalhadores titulares de vínculo por tempo indeterminado cujas funções são exercidas com vista à obtenção de formação específica, habilitação académica ou título profissional. Ao pessoal dirigente é passível de aplicação o regime do teletrabalho, por opção gestionária e em função do nível hierárquico e de competência do dirigente, com as necessárias adaptações decorrentes do constante do Estatuto do pessoal dirigente dos serviços e organismos da Administração Central, Regional e Local do Estado (Lei n.º 2/2004, de 15 de janeiro), na sua redação atual.

O regime de teletrabalho é aplicável a prestadores de serviços?

Nos contratos de prestação de serviços para o exercício de funções públicas na modalidade de tarefa e avença o regime do teletrabalho previsto nos artigos 168.º, 169.º-A, 169.ª-B, 170.º e 170.º-A é aplicável, na parte compatível, desde que as funções sejam prestadas em regime de dependência económica (o empregador público é o único beneficiário da prestação de serviços).

O acordo tem de ser reduzido a escrito?

Sim. A aplicação deste regime depende sempre de acordo escrito, podendo o mesmo constar do contrato de trabalho inicial (quando o trabalhador é admitido para prestar trabalho neste regime) ou de documento autónomo (que pode revestir, entre outras, a forma de “adenda ao contrato de trabalho em funções públicas”). Nas situações de trabalhadores com vínculo de nomeação a forma escrita poderá constar de documento autónomo. Salienta-se que, em qualquer situação, o empregador público pode sempre optar por outorgar um contrato específico para a prestação de trabalho na modalidade de teletrabalho.

O empregador pode definir por regulamento interno as atividades e condições de admissibilidade do teletrabalho?

Sim, o empregador pode definir por regulamento interno as atividades e as condições em que a adoção do teletrabalho poderá ser admissível, bem como, no caso de os equipamentos e sistemas utilizados no teletrabalho serem fornecidos pelo empregador, as respetivas condições de uso para além das necessidades do serviço. Este regulamento deverá ser publicitado, com observância do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados, aprovado pelo Regulamento (EU) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016.

A proposta de teletrabalho pode ser recusada quer pelo trabalhador ou pelo empregador?

Sim. Se a proposta partir do empregador, o trabalhador pode opor-se, sem necessidade de fundamentação, não podendo a sua recusa constituir fundamento da aplicação de qualquer sanção. Se a atividade contratada for compatível com o regime de teletrabalho a proposta de exercício de funções neste regime, apresentada pelo trabalhador, só poderá ser recusada pelo empregador público desde que este o faça por escrito e de forma fundamentada.

A quem cabe garantir o pagamento de despesas?

O pagamento das despesas adicionais em que o trabalhador incorre por motivo da prestação de trabalho em regime de teletrabalho incumbe ao empregador público.

O que se entende por despesas adicionais?

Entende-se por despesas adicionais, as despesas comprovadamente suportadas pelo trabalhador, por força da prestação de trabalho em teletrabalho, nas quais se incluem o acréscimo de custos com energia e internet. Estas despesas adicionais poderão ser determinadas por comparação com as despesas homólogas do trabalhador no mesmo mês do último ano anterior à aplicação desse acordo, e são consideradas, para efeitos fiscais, como custos do empregador público e não como rendimento do trabalhador.

Como é que o trabalhador comprova as despesas adicionais?

Para comprovação das despesas junto da entidade empregadora o trabalhador deve entregar os correspondentes documentos comprovativos dos consumos referentes ao mês homólogo do último ano anterior à aplicação do acordo e, bem assim, os documentos comprovativos do mês a que respeita o acréscimo de custos.

Como é que se calculam as despesas adicionais se dois ou mais coabitantes se encontrarem em teletrabalho?

A letra da lei não dá uma solução imediata a esta questão, pelo que a análise terá de ser feita casuisticamente, tendo em conta o princípio da não duplicação da compensação destas despesas (corolário do princípio da proibição do enriquecimento sem causa) e os princípios gerais do direito aplicáveis, designadamente o princípio da proporcionalidade e da adequação. Assim, para efeitos da repartição das despesas adicionais pela eventual pluralidade de empregadores envolvidos deverá atender-se ao período normal de trabalho diário de cada teletrabalhador, às necessidades de utilização da rede que o teletrabalho de cada um em concreto exige (capacidade, velocidade, etc), entre outros fatores que só em concreto são possíveis de concretizar. Nestes casos, por uma razão de certeza e segurança jurídica, é aconselhável que seja pré-estabelecido um acordo de pagamento entre os vários empregadores e os respetivos trabalhadores.

Há lugar à atribuição de subsídio de refeição aos trabalhadores em teletrabalho?

Sim. O trabalhador em regime de teletrabalho tem os mesmos direitos e deveres dos demais trabalhadores e, portanto, o direito a subsídio de refeição, desde que preenchidos os respetivos requisitos legais de atribuição.

Em que consiste dever de abstenção de contacto do empregador?

O empregador tem o dever de se abster de contactar o trabalhador no seu período de descanso, salvo casos de força maior. Este dever de abstenção de contacto do empregador é aplicável relativamente a todos os trabalhadores, quer estejam em teletrabalho ou não.

Este dever é aplicável em situações de isenção de horário, regime de prevenção ou trabalho suplementar do trabalhador?

Sim, é aplicável. Este dever de abstenção de contacto não deve deixar de ser observado, designadamente, em situações de isenção de horário ou trabalho suplementar.

Verifica-se incumprimento do dever de abstenção de contacto se o empregador enviar um email ao trabalhador fora do horário de trabalho?

Não estaremos perante uma situação de incumprimento do dever de abstenção, no caso de um empregador que envie um email ao trabalhador durante o período de descanso deste, em que não seja solicitada resposta ou se determine qualquer outra ação imediata por parte do trabalhador.

Fonte: Express
Foto: Getty Imageso