Maioria em três atos: de diálogo, da renovação e do desaparecimento
Chicão já disse adeus e Rui Rio está a fazer a mala. Ventura e Cotrim já não estão sozinhos no Parlamento, uma realidade que Inês de Sousa Real vai agora conhecer. O BE e o PCP não fazem, juntos, o que conseguiram sozinhos há três anos.
É o que Costa pediu, primeiro muito, depois menos, mas acabou por ter: a maioria absoluta. Sem que estejam ainda contados os círculos eleitorais do estrangeiro, o PS soma a eleição de 117 deputados e encara os próximos quatro anos com uma governação aparentemente folgada, perante um PSD que falhou em unir a direita. Mas para que uns ganhem lugares, outros tiveram de os perder.
O Parlamento vê desaparecer, ao fim de 47 anos, o CDS-PP - que já não é liderado por Francisco Rodrigues dos Santos -, fica com apenas uma deputada do PAN e vê BE e PCP - Os Verdes também desapareceram - terem, em conjunto, apenas 11 deputados.
O Chega de André Ventura confirmou o desejo do seu criador: ser a terceira força política nacional. Agora com um grupo parlamentar de 12 deputados, Ventura já prometeu liderar a oposição a Costa e, ao seu lado nesse objetivo - embora com recurso a outras táticas - terá a Iniciativa Liberal. Os liderados por Cotrim de Figueiredo são agora o quarto maior grupo parlamentar, com oito eleitos.
Diálogo.
A noite já ia longa no hotel Altis, em Lisboa, e o secretário-geral do PS era recebido em apoteose para celebrar a maioria absoluta, a segunda do partido depois da de José Sócrates, em 2015.
O momento foi "muito especial" para António Costa, que depois de seis anos à frente do Governo - dois deles em pandemia - via a sua governação sair reforçada de um Orçamento do Estado chumbado há poucos meses.
"O povo votou e o PS ganhou", dizia aos apoiantes, saboreando orgulhoso aquilo que dizia o "cartão vermelho à crise política" mostrado pelos portugueses.
De forma "inequívoca", exaltou, os portugueses "desejam um Governo do PS para os próximos quatro anos". Mas governar com maioria absoluta "não é o poder absoluto nem governar sozinho" e, por isso mesmo, Costa prometeu o "diálogo com todas as forças políticas". Todas, menos uma, "aquela com que disse que não vale a pena consumir tempo de diálogo": o Chega de André Ventura.
Diálogo por diálogo, há um essencial para se poder ter qualquer outro enquanto primeiro-ministro, e acontece em Belém. Costa já está à espera: se Marcelo quiser "chamar uma personalidade para formar Governo", é só ligar. O número deve estar na marcação rápida.
Renovação.
Saída à esquerda, entrada à direita. Parecem indicações, mas a verdade é que este é o retrato do que a noite eleitoral fez ao hemiciclo. Os lugares de terceira e quarta forças políticas portuguesas têm novos donos, e um deles já prometeu acabar com a "oposição fofinha" a António Costa. Mais: prometeu "ir atrás" dele.
André Ventura também teve direto a uma festa. Depois de ter dito, ao início da noite, quer Portugal "não merecia" uma maioria absoluta de António Costa, a verdade é que o líder do Chega terá de lidar exatamente com esse cenário no hemiciclo, mas tem agora a companhia de mais 11 deputados.
Juntos formarão um grupo parlamentar "fortíssimo", como fez questão de prometer perante uma multidão em êxtase com o líder que proclamou esta noite a salvação da direita. Os outros, os que pediam votos contra o Chega, levaram "uma sova", avaliava.
O Chega é agora "solução de qualquer Governo à direita em Portugal", de uma direita que "não soube estar à altura das suas responsabilidades". Mas André Ventura, garantia do próprio, vai saber estar, tanto que a "liderança da direita" será assumida, promete, pelo partido que lidera. O PS estava avisado: "Se acha que vai ter uma vida mais facilitada, vamos transmitir a mensagem precisamente oposta."
E a mensagem era a mesma - embora com uma forma de expressão diferente - um pouco menos à direita. O PS também vai encontrar a "forte oposição" da Iniciativa Liberal - agora com Cotrim de Figueiredo acompanhado por sete deputados - no Parlamento.
Numa noite em que o líder da IL entregou a vitória a dois partidos - o do próprio e o PS -, Cotrim assinalava ser possível ganhar votos "sem ser populista e sem ser extremista", um recado que ainda pode fazer ricochete nos corredores do Parlamento.
Perante o crescimento do seu "fenómeno político em Portugal", o líder dos liberais disse acreditar que "é possível voltar a dar esperança aos portugueses", assumindo-se como oposição "firme e implacável", mas também doutrinária.
Doutrinária? Sim, para "convencer e doutrinar todos os dias, para que cada português perceba que o liberalismo funciona".
O que não funcionou foi a distribuição de votos à esquerda e a maior vítima foi o Bloco de Esquerda. Liderados por Catarina Martins, viram os seus 19 lugares no Parlamento serem reduzidos a apenas cinco, falhando a eleição de, por exemplo, José Manuel Pureza em Coimbra.
Foram "más notícias", como Pedro Filipe Soares o descreveu, para a direção de partido que deve agora "assumir todas as responsabilidades".
Mas o Bloco de Esquerda não encerraria a noite sem dar luta. A primeira é uma de sempre: a eleição de deputados pelo Chega piorou a má notícia bloquista e levou Catarina Martins a ser clara. "Cada deputado racista eleito no Parlamento português, é um deputado a mais", declarava.
A segunda pancada foi dirigida ao PS, que acusou de ter criado uma "crise artificial" com a qual criou uma "bipolarização falsa" que deu resultado: os socialistas cresceram, o BE diminuiu e a CDU sofreu o mesmo destino.
No projeto liderado por Jerónimo de Sousa as consequências têm, no entanto, caras mais públicas. João Oliveira, líder parlamentar, e António Filipe, histórico deputado, falharam as respetivas eleições e até José Luís Ferreira, líder d'Os Verdes, falhou o objetivo de manter o assento parlamentar, o que significa que o partido ecologista desapareceu do Parlamento.
À hora a que discursou, Jerónimo de Sousa não tinha ainda sequer falado com António Costa. Acabou a noite sem razões para o fazer, exceto para lhe dar os parabéns de viva voz.
As contas à esquerda fecharam com o Livre a recuperar o lugar que Joacine Katar Moreira tinha deixado vago. Rui Tavares garantiu a eleição em Lisboa e, na hora de se apresentar como deputado, garantiu que o partido veio para ficar.
Desaparecimento.
O inferido e o anunciado. Rui Rio não vê como poderá "continuar a ser útil", Francisco Rodrigues dos Santos já apresentou a demissão.
A noite da direita mais tradicional foi de derrotas de diferentes dimensões, mas que podem ter o mesmo desfecho. Rui Rio deixou a porta aberta atrás de si depois de não ter atingido, "nem de perto, nem de longe, os objetivos" a que o PSD se tinha proposto e, perante a imagem de uma maioria absoluta socialista, não se viu com futuro.
"Não consigo argumentar como posso ser útil ao PSD" perante a maioria absoluta do PS, afirmava perante os partidários que, à sua frente, iam gritando "PSD! PSD!"
Perante a insistência dos jornalistas na sala, que queria saber se Rio estava a ponderar a demissão ou apenas a admitir essa solução, o líder social-democrata recorreu até ao alemão - já que em português, dizia, não o percebiam - para repetir a mensagem.
Quando voltou à língua de Camões, no entanto, a mensagem não tinha mudado: "Se se confirmar que o PS tem uma maioria absoluta, eu sinceramente não posso ver como poderei ser útil neste enquadramento." Confirmou-se, resta saber se Rio será útil.
Quem perdeu de facto utilidade - pela razão inultrapassável de que deixou mesmo de existir no Parlamento - foi o CDS-PP. A primeira vítima - além do grupo parlamentar, claro está - foi o próprio líder, Francisco Rodrigues dos Santos.
"Ao final de 47 anos perdeu a sua representação parlamentar", assumia Chicão, num discurso que soou a despedida desde a primeira palavra. Perante os "maus resultados", admitiu ter deixado de ter condições para liderar e revelou que o pedido de demissão já tinha sido apresentado.
"Estarei sempre ao lado do meu partido para o ajudar no seu recomeço. Podem sempre contar comigo", prometia Rodrigues dos Santos, que dizia estar uma vez mais a seguir o exemplo do que aprendera no Colégio Militar.
No final de contas, sobra o PAN. O ano de 2019, então sob alçada de André Silva, tinha sido de festejo para o partido, com a eleição de quatro deputados e a construção de uma boa relação com o PS de António Costa.
Volvidos três anos, o desfecho esteve muito perto de ser o pior possível. De coração nas mãos, foi preciso esperar até ao final da noite para Inês Sousa Real confirmar, pelo menos, o seu próprio lugar no Parlamento.
Numa noite que foi um mar de rosas, coube-lhe o espinho: "É com muita tristeza que assumo este mandato sozinha."
Fonte: TSF