Divórcios, doações e escrituras vão ser possíveis por videoconferência. Mas nova lei pode deixar alguns idosos na penúria
Celebrar escrituras e fazer doações à distância, sem limite de valor, é o objectivo de um diploma aprovado em Conselho de Ministros. Ordem dos Notários alerta para os riscos envolvidos.
Celebrar divórcios por videoconferência é uma das vantagens do novo regime que permite a prática de actos que até agora obrigavam a deslocações à conservatória ou ao notário. O problema é que a simplificação burocrática traz riscos acrescidos de fraude: ao permitir que doações e escrituras sejam igualmente celebradas à distância, a legislação abre a porta a que pessoas especialmente vulneráveis, como idosos ou vítimas de violência doméstica, sejam coagidas por terceiros - por familiares, por exemplo - a desapossarem-se dos seus bens, alerta a Ordem dos Notários.
Sublinhando que não existem, a nível mundial, “experiências similares ou um mapeamento dos riscos associados”, esta organização explica que, a partir do momento em que a nova legislação for publicada, mais de 36 mil profissionais – como notários e conservadores – poderão realizar contratos sem qualquer limitação de valor por videoconferência.
O bastonário dos notários, Jorge Batista da Silva, dá um exemplo: “O senhor José tem 85 anos e vive com a filha, que o começa a pressionar para que lhe entregue os seus bens porque precisa de dinheiro”. Se o negócio for celebrado presencialmente, o notário poderá aperceber-se mais facilmente de que este idoso está a ser manipulado e que a sua real vontade é outra ou que padece até de uma doença psíquica. Já os actos praticados à distância “impedem uma verificação efectiva de que o emissor da vontade não está a ser ameaçado no momento em que presta a declaração”, observa a Ordem dos Notários no parecer que deu ao projecto de diploma Governo, e que ainda não foi promulgado pelo Presidente da República. O notário pode recusar-se a praticar qualquer destes actos caso duvide da livre vontade ou da capacidade dos intervenientes. O problema é até que ponto a distância não lhe dificulta essa análise.
“Fará sentido introduzir a possibilidade de realizar todo e qualquer tipo de negócio jurídico à distância? Fará sentido introduzir este grau de incerteza em negócios jurídicos tão relevantes como as compras e vendas com ou sem crédito hipotecário?”, interrogam-se os notários. Por muito que estes negócios possam mais tarde vir a ser anulados, fará sentido celebrá-los de uma forma considerada pouco segura? Até porque o lesado pode não ter capacidade para apresentar queixa contra quem o enganou.
Uma primeira versão deste decreto-lei foi apresentada já em Maio do ano passado, mas, segundo o Jornal de Negócios, nunca chegou a avançar. E incluía os testamentos no rol de actos praticáveis à distância. Mas terá havido algumas dúvidas por parte de Marcelo Rebelo de Sousa, que levariam a mudanças no diploma. A versão agora em cima da mesa foi aprovada na reunião do Conselho de Ministros realizada a 22 de Julho passado e já não é experimental, mas definitiva, fundamentando a segurança de todo o processo na utilização de uma plataforma informática criada e gerida pelo Ministério da Justiça, refere também esta publicação, segundo a qual a ideia é que o mecanismo esteja no terreno a 15 de Novembro.
Para o bastonário, incluir as doações – que se mantêm nesta última versão – é ainda pior do que incluir os testamentos, pelo grau de risco de dissipação imediata do património que implicam. “Há centenas de situações a que a prática de actos por videoconferência é aplicável sem gerar grandes entropias”, diz Jorge Batista da Silva. Como os divórcios. Mas ao estender essa possibilidade a negócios sem limite de valor “foi-se longe demais”, critica, em declarações ao PÚBLICO, acrescentando que não existir serviço em atraso nos notários que justifique enveredar por esta via nas situações em que estão em causa milhares ou até milhões de euros.
Fonte: Público/ Ana Henriques