Eutanásia. Presidente envia lei para o TC. Saiba todos os argumentos

Presidente da República evita centrar argumentação no artigo constitucional do Direito à Vida ("A vida humana é inviolável"). Prefere sublinhar "subjetividade" de critérios como "situação de sofrimento intolerável"

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, enviou esta quinta-feira para o Tribunal Constitucional (TC) o diploma do Parlamento que despenaliza a morte medicamente assistida, para fiscalização preventiva da constitucionalidade. O requerimento do Presidente ao TC segue no mesmo exato dia em que chegou a Belém o decreto aprovado na AR

"Considerando que recorre a conceitos excessivamente indeterminados, na definição dos requisitos de permissão da despenalização da morte medicamente assistida, e consagra a delegação, pela Assembleia da República, de matéria que lhe competia densificar, o Presidente da Republica decidiu submeter a fiscalização preventiva de constitucionalidade o decreto da Assembleia da República que regula as condições especiais em que a antecipação da morte medicamente assistida não é punível e altera o Código Penal, nos termos do requerimento, em anexo, enviado hoje ao Tribunal Constitucional", lê-se numa nota da Presidência da República.

Esta é a segunda vez que Marcelo Rebelo de Sousa recorre ao Tribunal Constitucional desde que assumiu a chefia do Estado, em 9 de março de 2016 (a situação foi com a Procriação Medicamente Assistida).

Sobre a eutanásia, quando surgiram iniciativas legislativas, o chefe de Estado defendeu que deveria haver um amplo e longo debate na sociedade portuguesa, mas recusou sempre revelar a sua posição pessoal e antecipar uma decisão - promulgação, veto ou envio para o Tribunal Constitucional - antes de lhe chegar algum diploma.

No requerimento enviado ao TC, Marcelo especifica - como é obrigatório - as normas da lei cuja constitucionalidade quer ver verificadas. E esclarece que "não é objeto deste requerimento ao Tribunal Constitucional, em todo o caso, a questão de saber se a eutanásia, enquanto conceito, é ou não conforme com a Constituição".

Não isso "mas antes a questão de saber se a concreta regulação da morte medicamente assistida operada pelo legislador no presente Decreto se conforma com a Constituição, numa matéria que se situa no core dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, por envolver o direito à vida e a liberdade da sua limitação, num quadro de dignidade da pessoa humana"

A principal dessas normas é a que define a condição central para que se permita uma antecipação da morte medicamente assistida não punível: "situação de sofrimento intolerável".

"Este conceito não se encontra minimamente definido, não parecendo, por outro lado, que ele resulte inequívoco das leges artis médicas", escreveu o Presidente.

"Com efeito, ao remeter-se para o conceito de sofrimento, ele parece inculcar uma forte dimensão de subjetividade. Uma vez que estes conceitos devem ser, nos termos do decreto, como adiante se concretizará, preenchidos, no essencial, pelo médico orientador e pelo médico especialista, resulta pouco claro como deve ser mensurado esse sofrimento: se da perspetiva exclusiva do doente, se da avaliação que dela faz o médico. Em qualquer caso, um conceito com este grau de indeterminação não parece conformar-se com as exigências de densidade normativa resultantes da Constituição, na matéria sub judice."

O Presidente considera ainda ferido de subjetividade outro critério para a eutanásia, em conjugação com o anterior: a existência de uma "lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico".

Dada a "total ausência de densificação do que seja lesão definitiva de gravidade extrema, nem de consenso científico, não parece que o legislador forneça ao médico interveniente no procedimento um quadro legislativo minimamente seguro que possa guiar a sua atuação".

E mais: "Nada se referindo quanto à sua natureza fatal [da "lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico"], não se vê como possa estar aqui em causa a antecipação da morte, uma vez que esta pode não ocorrer em consequência da referida lesão, tal como alerta, no seu parecer, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida".

Marcelo previne, por outro lado, a possibilidade de se argumentar que os "conceitos excessivamente indeterminados" no presente decreto podem depois ser resolvidos na regulamentação da lei.

"Sendo o presente decreto o único instrumento legislativo que pode ser analisado neste momento, e padecendo ele das insuficiências assinaladas, a sua inconstitucionalidade não pode ser sanada com a expectativa de um regime futuro, cujo conteúdo se desconhece, ainda que dele o legislador faça depender a entrada em vigor do regime presente. É sobre este, e apenas sobre ele, que deve recair o juízo de conformidade constitucional."

Ou seja - e em síntese: "Ao não fornecer aos médicos quaisquer critérios firmes para a interpretação destes conceitos, deixando-os, no essencial, excessivamente indeterminados, o legislador criou uma situação de insegurança jurídica que seria, de todo em todo, de evitar, numa matéria tão sensível".

E - prossegue - "esta insegurança afeta todos os envolvidos: peticionários, profissionais de saúde, e cidadãos em geral, que assim se veem privados de um regime claro e seguro, num tema tão complexo e controverso".

Ao requerer a intervenção do TC, o Presidente da República vai objetivamente ao encontro das pretensões da Igreja Católica, manifestadas através de um comunicado da Conferência Episcopal Portuguesa.

Igreja já tinha pressionado
"Salientamos que a lei aprovada poderá ainda ser sujeita a fiscalização da constitucionalidade, por ofender o princípio da inviolabilidade da vida humana consagrado na nossa Lei fundamental", lê-se nesse comunicado.

No dia da aprovação parlamentar, os bispos portugueses exprimiram nessa comunicado a sua "tristeza e indignação" com a decisão dos deputados.

Acrescentando que "essa tristeza e indignação são acrescidas pelo facto de se legalizar uma forma de morte provocada no momento do maior agravamento de uma pandemia mortífera, em que todos queremos empenhar-nos em salvar o maior número de vidas, para tal aceitando restrições da liberdade e sacrifícios económicos sem paralelo".

Ou seja: "É um contrassenso legalizar a morte provocada neste contexto, recusando as lições que esta pandemia nos tem dado sobre o valor precioso da vida humana, que a comunidade em geral e nomeadamente os profissionais de saúde tentam salvar de modo sobrehumano."

O decreto final aprovado no Parlamento em 29 de janeiro resultou da fusão de projetos lei apresentados pelo PS, BE, PAN, PEV e IL.

Foi aprovado pelos votos do PS, de 14 deputados do PSD, do BE, PAN, PEV, IL e das deputadas não inscritas Cristina Rodrigues e Joacine Katar Moreira

Contra votaram nove deputados do PS, 56 do PSD e todos do PCP, CDS e Chega.

Abstiveram-se dois deputados do PS e outros dois do PSD.

Fonte: Diário de Notícias
Foto: Miguel Figueiredo Lopes/Presidência da República/LUSA