Da emergência para a calamidade pública: o que vai mudar?
O Governo prepara-se para instituir o estado de calamidade pública, um nível abaixo do estado de emergência. Saiba o que pode mudar.
Será possível manter a ameaça de penas de prisão para quem violar medidas obrigatórias de confinamento? E as suspensões do direito à greve terão de ser levantadas? Vai continuar a ser possível proibir as missas? Em tudo isto o Governo poderá ter de mudar as regras quando se passar do estado de emergência para o estado de calamidade pública.
Que lei regula o estado de calamidade pública?
No essencial a Lei de Bases da Proteção Civil. O primeiro-ministro já falou numa Lei da Saúde Pública mas a verdade é que esta lei...não existe. Em 2017 entrou no Parlamento uma proposta de lei do Governo. Mas não foi possível aprová-la antes do fim da legislatura (2019) pelo que a proposta caducou.
O que pode levar o Governo a decretar estado de calamidade pública?
O tipo de acontecimentos que podem levar ao estado de calamidade pública ou ao estado de emergência são os mesmos. Aliás, o Regime do Estado de Sítio e de Emergência diz mesmo que "o estado de emergência é declarado quando se verifiquem situações de menor gravidade [do que as que podem levar ao estado de sítio] nomeadamente quando se verifiquem ou ameacem verificar-se casos de calamidade pública".
E que acontecimentos são esses?
O país deve estar confrontado com uma situação de "catástrofe", sendo esta definida como "o acidente grave ou a série de acidentes graves suscetíveis de provocarem elevados prejuízos materiais e, eventualmente, vítimas, afetando intensamente as condições de vida e o tecido socioeconómico em áreas ou na totalidade do território nacional". Decretando-se o estado de calamidade pública, o Estado reconhece "a necessidade de adotar medidas de caráter excecional destinadas a prevenir, reagir ou repor a normalidade das condições de vida nas áreas atingidas pelos seus efeitos".
Qual a principal diferença entre o estado de emergência e o estado de calamidade pública?
A diferença residirá na forma de aprovação. O estado de emergência tem de resultar de um decreto do Presidente da República que recebe parecer favorável do Governo e é depois aprovado no Parlamento. Na calamidade pública, o Presidente da República e a Assembleia da República estão fora da jogada, por assim dizer. A declaração da situação de calamidade é da competência do Governo e reveste a forma de resolução do Conselho de Ministros. Esta não carece nem de aprovação parlamentar nem de promulgação presidencial. A AR e o PR só serão chamados depois a, respetivamente, aprovar e promulgar diplomas que dão andamento ao novo estado de exceção e não à sua criação propriamente dita.
Mas há outras diferenças?
Há - e são de substância. Segundo os constitucionalistas, o estado de calamidade pública não permite suspensões do direito à greve como as atualmente em vigor; nem a proibição das missas; nem as medidas de confinamento obrigatório de doentes (cuja violação é passível de pena de prisão) visto que a Constituição expressamente diz (artigo 27º) que medidas privativas de liberdade para doentes só em caso de "anomalia psíquica". Às dúvidas dos constitucionalistas, o primeiro-ministro já reagiu com irritação: "Sou jurista sei a capacidade enorme dos juristas em inventar problemas."
O primeiro-ministro passará a ter um papel ainda mais reforçado?
A ativação do estado de calamidade pública implica a ativação do Plano Nacional de Emergência de Proteção Civil (PNEC). Ora, por lei, o diretor do PNEPC é o primeiro-ministro, o qual será substituído, nas suas faltas ou impedimentos, pelo ministro da Administração Interna. "Compete ao diretor assegurar a direção, coordenação e controlo do PNEP e das medidas excecionais de emergência, com vista a minimizar a perda de vidas e bens e os danos ao ambiente, assim como o restabelecimento, tão rápido quanto possível, das condições mínimas para a normalidade."
Quanto tempo pode durar o estado de calamidade pública?
Caberá ao Governo decidir. A resolução do Conselho de Ministros tem de determinar a sua duração. O que António Costa já disse permite pensar que, como o estado de emergência, terá uma periodicidade quinzenal, renovável ou não.
Quantos estados de exceção prevê Lei de Bases da Proteção Civil?
Três. Por ordem crescente de gravidade: estado de alerta, estado de contingência e estado de calamidade pública. O estado de sítio (o mais grave de todos) e o estado de emergência (aquele em que o país este desde 19 de março e que terminará dia 2 de maio) estão previstos numa outra lei.
O Estado continua a ter o poder de requisitar para si meios privados (como hospitais, por exemplo)?
Pode. A lei diz que "a declaração da situação de calamidade implica o reconhecimento da necessidade de requisitar temporariamente bens ou serviços, nomeadamente quanto à verificação da urgência e do interesse público e nacional que fundamentam a requisição".
O Estado pode continuar a estabelecer limites à circulação?
Pode. Foi aliás o que aconteceu em Ovar, ainda ainda de ser aprovado o primeiro estado de emergência. Ao estabelecer uma cerca sanitária no concelho, o Governo no essencial proibiu entradas e saídas no concelho. Isto foi feito ao abrigo das normas que regulam o estado de calamidade pública.
As Forças Armadas terão um uso diferente?
Na prática será o mesmo. A lei prevê a sua utilização - no que a este caso interessa - como "reforço do pessoal civil nos campos da salubridade e da saúde, em especial na hospitalização e evacuação de feridos e doentes", "disponibilização de equipamentos e de apoio logístico para as operações", "reabilitação de infraestruturas" e "prestação de apoio em comunicações".
Fonte: Diário de Notícias
Foto: Leonardo Negrão / Global Imagens