Covid-19: Violência doméstica é uma “epidemia escondida” no confinamento
O isolamento social é fundamental para se combater a coronavírus, mas como fazê-lo quando se vive com um agressor? A quarentena é uma prisão com o seu torturador para milhões de mulheres.
O marido bateu-lhe pela primeira vez na noite do casamento e desde aí já perdeu a conta às vezes em que ficou com nódoas negras. A indiana Geeta tentou fugir uma vez, mas o marido ameaçou tirar-lhe os filhos. Não desistiu, teve aulas em segredo e já tinha um plano bem montado para os levar com ela. Mas o confinamento decretado na Índia baralhou-lhe a rota, obrigando-a a ficar isolada com quem a agride numa pequena casa numa zona rural.
“[As crianças] têm visto o pai zangado muitas vezes na sua vida, mas piorou nas últimas semanas. Têm-no visto a atirar coisas contra a parede e a puxar-me o cabelo”, contou à BBC Geeta (nome fictício), referindo que o marido perdeu mais de metade do salário diário que era de 1500 rupias (18 euros) e ficou em 700 rupias (oito euros). “Normalmente guardava a sua raiva para mim, mas começou a gritar com as crianças por pequenas coisas, como deixar um copo no chão. Então eu digo alguma coisa para o distrair [das crianças] e ficar zangado comigo, mas quanto mais tempo estamos juntos, menos o consigo distrair”, continuou, dizendo querer ser economicamente independente.
A Índia é um país com uma profunda cultura patriarcal e de submissão da mulher, mas não é o único país onde a violência doméstica está a aumentar em tempos de confinamento. Está a acontecer por todo o mundo, do Médio Oriente, também com uma grande cultura patriarcal, ao Ocidente, onde os direitos das mulheres têm dado passos importantes, passando pela Ásia.
Armadilha invisível
Metade do mundo está em confinamento e o isolamento social é fundamental para combater a pandemia de covid-19, mas como fazê-lo quando se vive com um agressor? Como se proteger da ameaça que vem de uma das pessoas mais próximas? A quarentena é, para milhões de mulheres, uma armadilha invisível.
“Sabemos que os confinamentos são essenciais para suprimir a covid-19, mas podem encurralar as mulheres com parceiros abusivos”, escreveu no Twitter António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas. “Para muitas mulheres e raparigas, a ameaça é maior onde deviam estar mais seguras: nas suas próprias casas”, continuou, sublinhando em comunicado ser necessário um “aumento do investimento nos serviços online e das organizações da sociedade civil”. Que os governos "ponham a segurança das mulheres em primeiro lugar na resposta à pandemia”, pediu.
Os especialistas das Nações Unidas chamam à violência doméstica “a epidemia escondida” e as medidas de isolamento social vieram exacerbar as condições para a violência estrutural num espaço que deveria ser de segurança. Os números já eram assustadores antes da pandemia – 249 milhões de mulheres e raparigas dos 15 aos 49 anos foram vítimas de violência nos últimos 12 meses, diz a ONU – e subiram em tempos de confinamento.
Em França, a violência doméstica aumentou 30%; na Argentina, os pedidos de ajuda subiram 25% e pelo menos seis mulheres foram assassinadas desde o início do confinamento; no Brasil aumentou entre 40% a 50%; no Chipre e em Singapura, as linhas de apoio registaram aumentos de 30% e 33%, respectivamente; no Reino Unido houve uma subida de 25% em linhas de apoio para agressores que querem ajuda para mudar de comportamento, mas com a organização não-governamental Refuge a registar um aumento de 700% de chamadas de vítimas num só dia. Também em Espanha houve um maior número de denúncias, na ordem dos 18%, e nos Estados Unidos de 35%, de acordo com a televisão NBC.
O caso italiano destoa à primeira vista dos restantes países, dado ter-se registado uma descida de 55% no número de chamadas desde o início do confinamento. Porém, quem responde aos pedidos de ajuda, diz o Guardian, passou a receber muito mais mensagens e emails, provavelmente devido ao maior controlo dos agressores sobre as vítimas. “Uma mensagem era de uma mulher que se tinha trancado na casa de banho para escrever a pedir ajuda”, contou ao jornal britânico Lella Palladino, da EVA Cooperativa, que se dedica a apoiar vítimas.
Relações de poder
“Quando as pessoas estão fechadas na mesma casa dia após dia, coisa a que não estão habituadas, acabam por se saturar e já não têm capacidade para gerir as suas emoções, e é esse essencialmente o problema”, disse ao PÚBLICO Beatriz Santana, técnica do gabinete de apoio à vítima da UMAR. O problema já vem muitas vezes de trás, diz a psicóloga, e deve-se a relações de poder, pois as vítimas são pessoas que os agressores “consideram ter menos poder, serem submissas a si: mulheres, crianças e idosos”.
A ansiedade, frustrações e pânico vividos com a pandemia, com os relatos diários do número de infectados e mortos, e a perspectiva de uma crise tão má ou pior que a Grande Depressão de 1929 são duas causas apontadas para o exacerbar da tensão e da violência doméstica. A Organização Internacional do Trabalho calcula que oito em dez trabalhadores vão ficar sem emprego e uma grande porção serão mulheres.
“Muitas mulheres têm perdido os empregos, o que as deixa dependentes dos parceiros. E isso é um dos principais passos para se tornarem vítimas”, garantiu Santana. Os agressores, continua, tentam tornar as vítimas dependentes nas mais pequenas coisas e, mais tarde, no evoluir das agressões que começam por ser psicológicas, podem até controlar as suas contas bancárias. A violência psicológica precede a maioria das vezes a física e sexual, que também não deixam de ter efeitos mentais.
A situação de cada vítima varia conforme o seu historial e personalidade, mas a grande maioria, senão todas, acabam por ficar com depressões, e por vários anos, explica Santana. “Não conseguem preencher fichas com os seus dados pessoais, não conseguem pôr determinados acontecimentos na linha temporal e tremem, tremem muito”, disse a psicóloga, salientando que o medo é transversal e o pânico geral. Não apenas dos seus agressores, mas de perderem os filhos, quando os têm, e de caírem na pobreza, quando estão parcial ou totalmente dependentes financeiramente.
O grande aumento das denúncias pode ainda estar por vir, depois de as restrições serem levantadas, permitindo às vítimas evadirem-se dos agressores. Porém, mesmo agora, as respostas estatais não estão a ser suficientes – já havia críticas de que não o eram antes da pandemia. O apoio às vítimas (a maioria são mulheres e apenas uma pequena percentagem homens) pode estar a ser interrompido por os profissionais de saúde estarem sobrecarregados com a pandemia, as forças de segurança ocupadas a controlar o cumprimento do isolamento e os serviços judiciais a funcionar com dificuldades acrescidas, dizem as Nações Unidas no relatório intitulado Covid-19 and Ending Violence Against Women and Girls.
Resposta dos governos
Tudo indicava que o confinamento teria estes resultados e os governos, diz o New York Times, falharam em dar uma resposta à “epidemia escondida” esperada. Em Wuhan, na China, onde a pandemia começou, os divórcios e a violência doméstica aumentaram substancialmente. Com o foco na crise sanitária e na económica que já se instala, vários Estados tentam agora pôr em marcha medidas que protejam as vítimas, seja com campanhas, linhas de apoio ou abordagens legalistas.
A Argentina avançou com uma campanha para que as mulheres possam ir a farmácias pedir máscaras vermelhas, código para pedido de ajuda, e a Grécia está a montar uma nova linha de apoio. A França vai alterar a lei de violência doméstica para definir melhor o conceito de violência psicológica e endurecer as penas. Já a Bélgica, que se vê com os abrigos sobrelotados, requisitou um hotel para alojar as vítimas em Bruxelas.
Uma parte bastante significativa na resposta às vítimas sempre esteve a cargo de organizações da sociedade civil e a pandemia veio dificultar a sua actuação. Tiveram de se reorganizar para trabalhar a partir de casa e em alguns casos houve uma queda no voluntariado e no financiamento, alertou Guterres. Alguns abrigos foram fechados por causa da pandemia, outros transformados em centros de saúde e aqueles que continuaram abertos, depressa ficaram sobrelotados, representando um perigo real de contágio.
As políticas governamentais, alertam as Nações Unidas, terão de ser desenhadas a pensar no médio e longo prazo, caso contrário não terão o impacto esperado. À semelhança do que aconteceu com as epidemias de Zika e Ebola na América do Sul e em África, respectivamente, também a de covid-19 "vai exacerbar as desigualdades, incluindo as baseadas no estatuto económico, capacidades, idade e género”, lê-se no relatório das Nações Unidas, salientando que a “violência contra mulheres e raparigas continuará a aumentar” depois da crise sanitária.
Fonte: Público