Base de dados sobre violência doméstica vista como inútil e inconstitucional

Comissão Nacional de Protecção de Dados emitiu parecer muito crítico sobre instrumento que Governo assegura não ser violador da privacidade de vítimas e agressores.

A criação de uma base de dados sobre violência doméstica suscita fortes críticas da Comissão Nacional da Protecção de Dados, para a qual este instrumento, aprovado em Conselho de Ministros há cerca de um mês, não só é inútil como padece de inconstitucionalidade.

A ideia é centralizar no Ministério da Administração Interna informações acerca dos casos de violência doméstica reportados às autoridades, com o objectivo de actuar sobre o fenómeno. "Não se trata de nenhuma lista", assegurou em Maio o ministro da Presidência, Luís Marques Guedes, garantindo que a base de dados não teria “qualquer referência pessoal, como é evidente", aos agressores, vítimas ou testemunhas. Seria organizada "apenas em termos da tipologia e das circunstâncias do crime".

Mas não é essa a interpretação feita pela Protecção de Dados relativamente à alteração legislativa em causa, que seguiu para discussão na Assembleia da República. “A proposta de lei integra normas que não estão em conformidade com a Constituição”, refere um parecer da comissão, datado de 9 de Junho. “Estranha-se que a lei que criou uma base de dados com esta dimensão e relevo não contenha normas claras sobre protecção de dados, tais como categorias dos dados tratados, segurança da informação, prazo de conservação dos dados, efectivação do direito de acesso e oposição”.

A inconstitucionalidade advém, segundo o parecer, de o Goveno não ter demonstrado que o combate à violência doméstica não possa ser levado a cabo através de outros meios menos lesivos da privacidade. Depois de ler a proposta, a comissão ficou com a certeza de que a base de dados assentará, afinal, nas participações policiais, “contendo dados sobre a vítima de violência doméstica, sobre os filhos menores, também vítimas ou não, eventualmente testemunhas, o perpetrador, o denunciante (vizinho, familiar, etc)”. E que conterá, além da identificação de todos estes intervenientes, descrições pormenorizadas de cada situação - o que aconteceu, como quando e quais os resultados -, bem como o número atribuído a cada processo pelas autoridades. O chamado número único identificador do processo-crime, ou NUIPC, permite igualmente aceder, embora de forma indirecta, a dados pessoais.

“Nessa medida, esta base de dados reveste-se de uma sensibilidade extrema”, avisa a Protecção de Dados, na opinião da qual este instrumento é “passível de poder gerar gerar discriminação e afectar direitos fundamentais e de personalidade”. Em suma, a base de dados “representa um risco muito elevado para a privacidade de todos os envolvidos, em particular das vítimas”. Ainda por cima sem necessidade, refere o mesmo parecer, uma vez que estes dados já constam de uma plataforma informática usada pelas forças de segurança. “Se houver necessidade de um órgão de polícia criminal consultar um caso tratado por outro órgão de polícia criminal poderá fazê-lo através dessa plataforma”, explica a comissão, concluindo “não haver necessidade de criar mais uma base de dados para dar acesso àqueles que já têm acesso à mesma informação por outra via”.

Por fim, o facto de toda a informação ficar centralizada na secretaria geral do Ministério da Administração Interna também não descansa a entidade responsável pela salvaguarda da privacidade: “A criação e manutenção de resgistos centrais relativos a pessoas suspeitas de infracções penais só pode ser mantida por serviços públicos com competência específica prevista na lei”. O que não é o caso. De resto, a comissão nem sequer percebe a razão de semelhante informação ficar aqui centralizada: “Os processos são de natureza criminal, os apoios são prestados por organismos do Ministério da Segurança Social, do Ministério da Saúde, do Ministério da Educação, pelas autárquicas, etc, não cabendo àquele ministério nenhum papel preponderante que justifique a atribuição desta responsabilidade” à secretaria geral do Ministério da Administração Interna.

Nem convenção do Conselho da Europa para a prevenção da violência não pode servir de pretexto a uma medida deste género, assinala o parecer: ela não obriga os Estados a processar dados pessoais de forma centralizada, mas apenas à recolha regular de dados estatísticos desagregados.


Fonte: Público