Fratura “anormal” entre juízes do TC pode ter consequências nas futuras nomeações, alertam constitucionalistas

Há quem esteja preocupado com o equilíbrio institucional dentro do TC, mas também quem defenda que não há “nenhuma obrigação” em manter o pacto entre PSD e PS na nomeação de juízes. Estão de saída pelo menos três juízes
O Tribunal Constitucional (TC) deitou por terra a principal bandeira do Governo no início da legislatura ao chumbar por inconstitucionalidade cinco normas da lei de estrangeiros – que ditou o veto do Presidente da República. Contudo, a decisão dentro do tribunal não foi pacífica e originou declarações de voto dos ‘vencidos’ consideradas “não habituais” por constitucionalistas ouvidos pelo Expresso. Com, pelo menos, três juízes para lá do mandato, há quem levante a hipótese do Governo avançar com a substituição através de acordos à direita, ainda antes do diploma regressar ao TC. Isto como forma de ultrapassar uma das principais barreiras às reformas na imigração.
“O tribunal sempre refletiu uma certa composição política híbrida. Agora, se a nomeação for feita só à direita, corre-se o risco dessa representação deixar de existir. Essa é uma das preocupações”, disse ao Expresso um constitucionalista que pediu o anonimato. Um dos exemplos utilizados é o do Supremo Tribunal norte-americano onde Donald Trump acabou com o equilíbrio entre liberais e conservadores de forma a conseguir um painel mais favorável às suas políticas.
Em Portugal, os juízes do TC têm de ser aprovados na Assembleia da República por dois terços dos deputados, o que até aqui significava um acordo entre PSD e PS. Com a ascensão do Chega a segundo maior partido, pela primeira vez, os dois terços podem ser alcançados sem o PS, caso o PSD prefira um acordo com o Chega e a Iniciativa Liberal.
Se há quem receie um eventual desequilíbrio, há quem quase que o considere normal “Se o executivo [de Luís Montenegro] vir que o tribunal pode pôr em causa reformas como esta pode ponderar fazer acordos à direita. Não há nenhuma obrigação em seguir-se com pactos memoriais quando o PS já não é um dos dois maiores partidos. Os pactos existem enquanto houver confiança nos parceiros”, considera Carlos Blanco de Morais, professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Após o chumbo do TC, o Governo adiantou que irá proceder a alterações nas normas consideradas inconstitucionais quando o debate voltar ao Parlamento, para onde o Presidente da República já devolveu o diploma. A composição do tribunal pode ser decisiva para o futuro desta lei, mas também para a lei da nacionalidade que começa a ser discutida em setembro. “Os juízes podem ser substituídos assim que o Parlamento abrir”, lembra Blanco de Morais quase num piscar de olho a Luís Montenegro.
Para conseguir o apoio do Chega na nomeação dos juízes, o PSD não tem de nomear obrigatoriamente um nome dado pelo partido de André Ventura, mas pode antes escolher um social-democrata da ala mais à direita, que agrade suficientemente ao partido de direita radical. Resta saber se o PSD tem ou não vontade de rasgar o pacto com o PS que existe há mais de 40 anos.
Fratura entre juízes do TC é “anormal” ou “adequada”?
Mais do que a decisão final do TC quanto à lei de estrangeiros, o que fez soar os alarmes foram as divergências entre os juízes que vieram a público através de declarações de voto especialmente violentas. Gonçalo Almeida Ribeiro, vice-presidente do TC, em conjunto com o conselheiro José António Teles Pereira, avaliou os diplomas do Governo como “perfeitamente razoáveis e legítimos” e acusou a maioria dos juízes de terem sido influenciados por “convicções pessoais”. Também a juíza conselheira Maria Benedita Urbano assinou uma declaração de voto onde considerou que o chumbo do diploma “tem como consequência a manutenção de uma política de fronteiras abertas” e a decisão “mostrar-se alheada (ou não tem na devida consideração)” a “realidade socioeconómica atual do país com setores vitais, como a saúde, a habitação e o ensino, em risco de colapsar”.
Para Vitalino Canas, constitucionalista e antigo deputado do PS, este não é um comportamento habitual dos juízes do TC. “Não é habitual haver uma fratura tão óbvia e intencionalmente manifestada. É das decisões mais polarizadas que ouvi do TC, apenas similares a temas fraturantes como o aborto”. Esta posição é partilhada por outro dos constitucionalistas ouvidos pelo Expresso que não considera “normal” estas declarações de voto por comportarem um “ataque aos colegas”. “Quando se diz que estão a decidir com base em ideologia e não em argumentos jurídicos, é a pior coisa que se pode dizer a um juiz”, acrescenta.
A argumentação de Maria Benedita Urbano é aquela que gera maior polémica porque “não tem argumentos jurídicos”: esta juíza acusa os seus colegas de viverem alheados da realidade. O chumbo do diploma, escreveu na sua declaração de voto, "tem como consequência a manutenção de uma política de fronteiras abertas" e a decisão "mostrar-se alheada (ou não tem na devida consideração)" a "realidade socioeconómica atual do país, com setores vitais, como a saúde, a habitação e o ensino, em risco de colapsar".
“Considero mesmo muito problemática” esta posição, ouviu o Expresso de um constitucionalista. Já Blanco de Morais não poderia estar mais em desacordo e elogia a juíza conselheira por pôr os “pontos nos is”:“O tema é claramente fraturante, por isso o tom é perfeitamente adequado. Como não há inconstitucionalidade nenhuma do diploma, tornou-se num caso politico.”
Ao contrário da maioria dos juízes do TC que chumbaram o diploma, Blanco de Morais não vê “inconstitucionalidades nenhumas” na lei de estrangeiros e lembra que o “direito de imigrar não é um direito fundamental”. “Houve um seguidismo do direito europeu que não é a Constituição e tentaram fazer um mix que é algo totalmente controverso”, critica colocando-se ao lado dos juízes do TC da ala mais à direita.
A visão deste catedrático de que houve uma “divisão entre direita e esquerda” não é corroborada por todos os seus colegas. “Não me parece legítimo dizer-se que é um tribunal dividido entre esquerda e direita”, aponta outro constitucionalista ouvido pelo Expresso. Como exemplo, utiliza os diplomas relativos às barrigas de aluguer ou à morte medicamente assistida onde houve juízes nomeados pelo PS que não deram luz verde a estas propostas assinadas pela esquerda.
Vitalino Canas, por seu lado, vê nesta crispação dentro do TC um reflexo da sociedade. “Este é um tema muito polarizado, mesmo nos partidos que normalmente criavam consensos no tema da imigração. É normal que isso tenha reflexo dentro do TC, ele não é insensível ao debate político”. O professor de Direito Constitucional na Faculdade de Direito de Lisboa, que em 2020 não conseguiu ser eleito para o TC, lembra que os juízes são “cidadãos com opiniões” inclusive sobre temas com a imigração, o que também justifica a exaltação dos textos vindos a público.
Fonte: Expresso
Foto: António Pedro Santos/ Lusa