Narcotráfico. 39 funcionários de portos e aeroportos detidos em três anos
O tráfico de droga é uma das mais graves ameaças à segurança que a Europa enfrenta atualmente, e a situação está a agravar-se. As redes criminosas recorrem à violência extrema, à intimidação e também à corrupção de funcionários do portos e aeroportos de destino da droga. Em Portugal, as autoridades sentem a "pressão" a aumentar. "Isto é uma praga", diz o diretor da Unidade de combate à droga da PJ.
Foram detidos 39 trabalhadores de aeroportos e portos nacionais desde 2021, incluindo dois ex-funcionários, até à presente data, de acordo com dados facultados ao DN pela Unidade Nacional de Combate ao Tráfico de Estupefacientes (UNCTE) da Polícia Judiciária (PJ).
Com o tráfico de cocaína para a Europa a atingir um volume sem precedentes - as apreensões em Portugal neste ano já bateram o recorde de 2022 - e os alertas europeus sobre o recrudescimento da corrupção por narcotraficantes de funcionários nestas infraestruturas em países de destino e trânsito da droga, as autoridades, especialmente PJ, reforçaram as investigações.
No ano passado as detenções no aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, foram sete vezes mais - de três em 2021 para 21 em 2022).
O volume de detenções baixou este ano, com os quatro suspeitos detidos no passado dia quatro de novembro neste aeroporto, a somarem oito os funcionários apanhados desde início de 2023 por suspeita de integrarem organizações criminosas de narcotráfico, além de outros dois ex-funcionários e outro agente do Estado (um polícia municipal de Lisboa).
Foram também detidos quatro estivadores no Porto de Leixões.
Nestes três anos foram instaurados 143 inquéritos relacionados com tráfico de droga em portos e aeroportos (47 em 2021, 68 em 2022 e 53 em 2023 (até à semana passada), segundo a UNCTE, que tem secções só a investigar esta criminalidade.
Um relatório da Comissão Europeia, divulgado muito recentemente, em outubro, apresenta o tráfico de droga como "uma das mais graves ameaças à segurança que a Europa enfrenta atualmente", alertado que "a situação está a agravar-se".
Uma realidade "claramente demonstrada pelo aumento sem precedentes das drogas ilícitas disponíveis na Europa, em especial a cocaína proveniente da América do Sul", regista o documento "Comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu, relativa ao Roteiro da UE em matéria de luta contra a droga e o crime organizado" (ver prioridades para a prevenção no final do texto).
Violência e corrupção
A Comissão Europeia descreve que "nos seus esforços para obter lucros avultados, as redes criminosas recorrem à violência extrema, à corrupção e à intimidação" e que "os crimes económicos e financeiros são essenciais para apoiar todas as atividades criminosas, e a corrupção é fundamental para as redes criminosas.
Segundo estimativas da Europol, 60 % das redes criminosas ativas na UE utilizam métodos corruptivos para alcançar os seus objetivos ilícitos".
O diretor da UNCTE, Artur Vaz está ciente do cenário e os seus inspetores têm apreendido quantidades recorde de cocaína.
"Este ano já apreendemos mais que no ano passado também", revela, sem, no entanto indicar a quantidade. Em 2022 tinham sido apreendidas 16,3 toneladas de cocaína, um volume só inferior aos 36 quilos de 2006.
Quanto à corrupção de funcionários pela redes criminosas, é perentório: "Cada vez enviam mais droga. Isto é uma praga. Prendemos uns e há logo outros funcionários à espera de entrarem no esquema. A perceção é a de que prendemos e rapidamente há outros para os substituir. Os correios de droga também voltaram em força", afiança.
"Essencialmente são funcionários das empresas de handling e das limpezas. Há também ex-funcionários que mantém acesso aos antigos colegas que vão ao avião buscar as bagagens", assinala.
A violência também está presente, recorda Artur Vaz, dando o exemplo de "um carro da PJ albaroado e muito destruído, quando tentava parar um grupo de traficantes em fuga", numa perseguição no ano passado.
Sistemas de segurança menos consolidados
A especialista em criminalidade organizada e tráfico de droga, Sylvie Figueiredo, confirma que "o crescimento do número de casos de corrupção é, a par com o aumento da violência, uma das consequências do aumento do tráfico de droga na Europa. Esta tendência tem-se verificado também em Portugal, onde as autoridades têm detido vários suspeitos de integrarem ou atuarem em conivência com grupos de tráfico de estupefacientes", sendo "os portos e os aeroportos locais preferenciais para a infiltração do crime organizado por serem espaços de entrada do estupefaciente no continente."
Sylvie Figueiredo realça que "o aumento da ação policial sobre as principais portas de entrada de cocaína - os portos de Antuérpia e Roterdão - tem levado os grupos criminosos a diversificarem as suas rotas para portos mais pequenos que, muitas vezes, apresentam sistemas de segurança menos consolidados".
Paralelamente, "a Europol considera que a Europa se tornou no principal mercado de cocaína e, face à continuidade do aumento da produção mundial, estima que a pressão dos traficantes sobre o continente se continue a manter nos próximos anos".
Por isso, concluí, "face a estes dois fatores - a estratégia de diversificação dos pontos de entrada no continente devido à pressão das autoridades sobre os principais portos de entrada e o contínuo aumento das quantidades produzidas - é expectável que Portugal veja o seu papel de "porta de entrada" da cocaína na Europa, crescer também".
As investigações são sensíveis e complexas. "É um meio muito difícil para ter infiltrados, está muito controlado e se surge alguém estranho todos notam. É feita muita vigilância. Os inspetores passam noites seguidas em vigilâncias, há muita troca de informação com o Brasil. Depois é unir as pontas e preparar o momento certo. Não é matemático. Nos homicídios há os mortos, no tráfico de droga tem de apreender droga para haver prova e fazer a ligação ao suspeito", assinala o responsável da PJ.
Precariedade potencia
De acordo com o Sindicato dos Técnicos de Handling dos Aeroportos em média, os trabalhadores dos serviços de bagagens e limpezas no aeroporto de Humberto Delgado - que estão neste momento sob responsabilidade de duas empresas privadas - recebem entre 700 / 800 euros de salário mensal, com turnos e um trabalho bastante pesado.
"Não justifica, como é óbvio, porque a maioria age com correção, mas o aumento da precariedade é mais potenciador destas situações", afirma André Teives, presidente do sindicato.
Mas talvez explique porque há sempre "outros para substituir" os que são apanhados, como lamentou Artur Vaz. Por cada quilo de cocaína que retiram dos porões estes funcionários podem receber cerca de cinco mil euros, num máximo de 10 mil.
"São grandes organizações criminosas. O mínimo que mandam de avião é 30 kg", admite o dirigente da Judiciária. Por isso é sempre feita a investigação patrimonial dos suspeitos. Nesta última operação, em novembro foram apreendidos dois Porches e um Audi 6, o que não se enquadrava nos referidos salários.
Um antigo responsável pela segurança de uma das empresas no aeroporto de Lisboa, que falou ao DN sob anonimato, afirma que estas situações "estão classificadas nas análises de risco como uma vulnerabilidade relevante" para a segurança aeroportuária.
Trata-se de uma vulnerabilidade, explica, "que é manobrável, isto é, pode ser maior ou menor, consoante houver mais medidas de prevenção, e pressão policial".
Para a prevenção destaca "videovigilância nas zonas mais críticas, incluindo nos porões da carga, como acontece em alguns países, mais funcionários na Alfândega e uma maior atratividade para o recrutamento: antes para 100 vagas vinham uns 300 candidatos, agora nem para as vagas chega às vezes, deixando de haver muita hipótese de escolha".
O DN tentou saber junto à ANA-Aeroportos de Portugal que medidas de prevenção existem ou estão planeadas nestas infraestruturas e números de funcionários envolvidos que já foram detetados, mas não obteve resposta.
Mais detenções nos aeroportos
A UNCTE registou que "durante e depois da pandemia houve um novo fôlego" e que "desde 2020 que se notou um acréscimo destas detenções" de funcionários.
Artur Vaz sublinha que "nos portos as quantidades apreendidas são maiores" mas, no entanto, tem havido menos detenções: apenas 8 (4 em 2021 e 4 em 2023) contra as 30 dos aeroportos, nos últimos três anos, sendo que no ano recorde nos aeroportos (2022 com 21) não houve qualquer detenção dos portos.
Por via marítima, acrescenta, "a maior parte da cocaína vem do Equador, Colômbia e Brasil, sendo que o Equador tem crescido no último ano, com as maiores apreensões a serem de cocaína dissimulada em contentores de bananas provenientes deste país".
Ainda na passada terça-feira, a UNCTE anunciou a apreensão, num armazém de Lisboa, de quatro toneladas de cocaína dissimulada em paletes deste fruto, provenientes do Equador.
De acordo com o já citado relatório da Comissão Europeia, "as autoridades portuárias e as companhias privadas de transporte marítimo devem estar cientes do seu papel na luta contra o tráfico de droga e a infiltração da criminalidade. Devem dispor dos instrumentos necessários para rastrear os contentores e proteger as zonas portuárias com câmaras, sensores e scanners. Devem também dispor de meios para triar e selecionar adequadamente os seus trabalhadores, a fim de evitar tentativas de corrupção por parte de redes criminosas".
A UE propõe uma "abordagem comum nos Estados-Membros, com grandes portos de entrada, como Portugal, através de uma "Aliança Europeia dos Portos" para "reforçar a resiliência dos centros logísticos".
Em Portugal, nem todos os portos possuem sequer scanners e, segundo informação que recolhemos, estão frequentemente avariados.
"O scanner de Sines é ativado pela Autoridade Tributária (AT) quando recebe informações das autoridades norte-americanas", disse ao DN fonte desta infraestrutura. A AT é responsável pelo controlo de mercadorias nos portos e opera estes equipamentos.
Questionada pelo DN a tutela, ministério das Finanças, não quis revelar qual é, em média a percentagem de contentores fiscalizados, nem quantos funcionários dos portos tinham sido já referenciados por suspeita de ligação às redes de narcotráfico. Garante apenas que "nenhum funcionário da AT esteve envolvido neste fenómeno".
Por seu lado, o ministério das Infraestruturas, que tutela os portos, sublinha que "as várias administrações portuárias nacionais mantêm um empenho contínuo na prossecução de padrões elevados de operacionalidade e segurança, em conformidade com as regulamentações nacionais e internacionais".
Quanto à falta de scanners, fonte oficial revela que "no caso do Porto de Lisboa, está em curso a aquisição de um scanner móvel pela AT, bem como, o acordo para a instalação de um scanner fixo no terminal de Alcântara envolvendo a Administração do Porto de Lisboa, a AT e o concessionário Liscont". Setúbal, Leixões têm os seus scanners, assegura a porta-voz de Fernando Medina.
Já sobre as iniciativas da UE, designadamente a Aliança Europeia de Portos, o entendimento é que se "encontram ainda em fase embrionária, aguardando-se diretrizes europeias nesta matéria".
Detenções em 2023
Aeroporto Humberto Delgado
Maio - 3 detidos
A PJ deteve dois ex-funcionários e um agente da Polícia Municipal de Lisboa, com idade entre os 29 e os 37 anos, todos de nacionalidade portuguesa, pela prática do crime de tráfico ilícito de estupefacientes. Os detidos são suspeitos de integrarem um grupo criminoso que se dedicava à introdução de consideráveis quantidades de cocaína no continente europeu através deste aeroporto, conseguindo que a droga se desviasse do controlo das autoridades com o apoio de funcionários de uma empresa prestadora de serviços de bagagens.
Junho - 3 detidos
A PJ deteve três portugueses e um estrangeiro, com idades entre os 25 e os 44 anos, todos eles funcionários de uma empresa prestadora de serviços de handling , que retiravam a droga diretamente do porão dos aviões, logo após a sua chegada, sem passar, dessa forma, à fiscalização das autoridades.
Foram também apreendidas 336 mil doses individuais de cocaína, droga esta que acabara de chegar a Lisboa num voo oriundo da América Latina. A PJ apreendeu também dinheiro, cinco viaturas automóveis de alta cilindrada, telemóveis e diversa documentação.
Agosto - 1 detido
A PJ deteve um funcionário, português, com 34 anos, de uma empresa prestadora de serviços de handling. A detenção ocorreu em flagrante delito, na sequência de uma investigação que estava a decorrer. O detido retirava a droga diretamente do porão dos aviões, logo após a sua chegada, escapando à fiscalização das autoridades.
Nesta operação foi apreendida quantidade de cocaína que, suficiente para a composição de pelo menos 226 mil doses individuais, droga esta que acabara de chegar a Lisboa num voo oriundo da América Latina.
Novembro - Três detidos
Numa operação da PJ, como apoio da divisão aeroportuária da PSP, foram detidos, em flagrante delito, três funcionários de empresas sedeadas no aeroporto. Retiravam a droga diretamente do porão dos aviões, logo após a sua chegada, desviando-a da fiscalização das bagagens.
Foi apreendida uma elevada quantidade de cocaína, suficiente para a composição de pelo menos 440 mil. A droga vinha de um voo oriundo da América Latina. Foi igualmente apreendida uma elevada quantidade de dinheiro em notas, quatro viaturas automóveis de alta cilindrada, telemóveis e diversa documentação.
Os detidos, de 42, 47 e 50 anos de idade, foram presentes a primeiro interrogatório judicial, tendo sido aplicada a todos a medida de coação de prisão preventiva.
Porto de Leixões
Outubro - quatro detidos
Uma operação da PJ no Porto de Leixões contra o narcotráfico de cariz internacional, resultou na detenção de quatro homens, com idades entre os 20 e os 45 anos, em flagrante delito, e na apreensão de cerca de 100 kg de cocaína. A investigação, que decorria há vários meses, visou um grupo de trabalhadores portuários, suspeitos de procederem à extração da cocaína de navios e contentores, a soldo de organizações criminosas responsáveis pela introdução de elevadas quantidades de droga no espaço europeu.
O método, conhecido por rip on /rip off, pressupõe a violação e contaminação de cargas, transportadas a granel ou contentorizadas e depende da existência de uma equipa de "resgate" que recupere os produtos ilegalmente introduzidos, antes das mercadorias lícitas chegarem ao cliente final.
Os arguidos foram detidos em flagrante delito quando pretendiam abandonar a estrutura portuária com a droga. Foram apreendidas também várias viaturas, armas, dinheiro e diversos elementos de prova.
UE: quatro ações prioritárias
(fonte: "Comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu, relativa ao Roteiro da UE em matéria de luta contra a droga e o crime organizado"
1- Resiliência dos centros logísticos
Os criminosos utilizam centros logísticos na UE e em países terceiros para levar a cabo as suas atividades ilícitas e escolhem pessoas vulneráveis para serem alvos das suas atividades criminosas. É necessário reforçar a resiliência dos centros logísticos contra a exploração por criminosos, assegurando a estreita cooperação entre os seus Estados-Membros, uma vez que os criminosos estão constantemente à procura do elo mais fraco.
2- Desmantelar as redes
As redes criminosas são dinâmicas e recorrem cada vez mais a prestadores de serviços criminosos especializados, integrando um número cada vez maior de intervenientes. As detenções individuais são muito necessárias, mas não são suficientes: é fundamental aumentar as capacidades das autoridades de aplicação da lei e das autoridades judiciárias para desmantelar as redes criminosas, destruir os seus modelos de negócio e confiscar os seus lucros.
3- Prevenção
É igualmente necessária uma forte ênfase na prevenção: para evitar que as redes criminosas explorem pessoas e empresas, é necessário combater as causas profundas da criminalidade organizada e encontrar uma solução permanente contra as atividades criminosas. Tal exige não só esforços das autoridades de aplicação da lei, mas também dos municípios e das comunidades locais.
4- Cooperação Internacional
A criminalidade organizada sempre foi um fenómeno mundial, mas a recente evolução tecnológica permitiu aos criminosos operar a nível mundial e gerir as suas atividades ilícitas a partir do exterior da UE. A cooperação internacional é, por conseguinte, essencial para desmantelar as rotas de abastecimento dos criminosos e para melhorar a cooperação nos domínios da aplicação da lei e judiciário.
Fonte: Diário de Notícias
Foto: Álvaro Isidoro / Global Imagens