Legislação vs. prática. É possível garantir que a internet é toda igual?

A União Europeia faz o caminho inverso dos EUA e trata o acesso à net como um serviço público. Mas a lei pode não ser suficiente.

Menos de duas semanas após o regulador de telecomunicações americano FCC ter anunciado o fim da obrigatoriedade de os fornecedores de internet tratarem todo o tráfego da mesma forma, a sua congénere europeia dava o passo oposto, ao sublinhar o seu compromisso com a continuidade da implementação dos regulamentos em vigor que promovem a "neutralidade" no acesso à net.

É a BEREC (Body of European Regulators for Eletronic Communications) que tem, na Europa, a responsabilidade de avaliar e se pronunciar sobre a atuação dos ISP (sigla de Internet Service Providers - fornecedores de serviço de internet). Cai no âmbito da sua ação a avaliação das práticas dos operadores - cuja fiscalização é feita pelas agências de cada Estado membro da UE, sendo em Portugal a Anacom -, bem como a regulação dos vários mercados de telecomunicações europeus.

Cai na esfera de ação da BEREC garantir que o Regulamento da UE 2015/2120 é cumprido. Este estabelece os princípios de que "cada europeu deve poder ter acesso à internet aberta" e que "todo o tráfego da internet deve ser tratado de forma igual".

Com força de lei, esta disposição europeia protege-nos, pelo menos em teoria, do fim da neutralidade da internet decretado nos EUA (ainda que o assunto esteja a caminho do tribunal, pelo que ainda pode ser revertido).

No entanto, quaisquer alterações de funcionamento nos serviços de internet nos EUA podem vir a ter algum impacto na Europa. Por exemplo, podemos em Portugal vir a sentir dificuldades de acesso a um determinado site ou serviço cujos servidores estejam exclusivamente nos Estados Unidos. Do ponto de vista estritamente técnico, dizem ao DN, por e-mail, Luís Ferreira e Nuno Lopes, professores de engenharia informática do IPCA - Instituto Politécnico do Cávado e do Ave, "tecnicamente essa limitação não [seria] muito complicada de implementar".

Só que há que ter em conta que "a distribuição das infraestruturas é fisicamente global, estão espalhadas por vários pontos do globo", pelo que, "na eventualidade de isso vir a acontecer, não será também complicado implementar alternativas".

"Numa primeira fase, o impacto pode ter dimensão séria", acrescentam. "Um cenário possível será passar a cobrar mais pelos serviços (não apenas económico, mas mesmo na qualidade de serviço prestado) para determinados clientes, por exemplo."

Ainda que a legislação europeia seja uma garantia importante de que a internet como a conhecemos continuará, pelo menos para os cidadãos do Velho Continente, a funcionar como habitualmente, é da natureza das coisas que a lei é feita para ser violada. E provavelmente já foi no passado.

Nos EUA, existe uma única queixa formal de violação da neutralidade (um cliente da Verizon queixou-se em julho de 2016 de que a operadora estava a impedir o acesso ao serviço de pagamentos Google Wallet para privilegiar o seu próprio serviço Isis Wallet). Mas, informalmente, dos dois lados do Atlântico são às centenas as histórias que se contam de serviços - normalmente da concorrência da operadora que fornece a ligação à net - que "misteriosamente" ficam mais lentos de um momento para o outro. Só que nada se prova, porque há sempre argumentos técnicos para o explicar...

Fonte: Diário de Notícias