Violência doméstica. O "princípio óbvio" de Marcelo força inquérito a juízes

Com o PR e a ministra da Justiça a juntarem-se ao coro de censura, Conselho Superior de Magistratura cede e abre procedimento

Uma das solicitações constantes na carta aberta que várias associações feministas e a APAV endereçam hoje ao Conselho Superior de Magistratura foi atendida antes mesmo da respetiva receção: ontem à noite, o vice-presidente do órgão fiscalizador dos juízes fez saber que tinha sido aberto um inquérito disciplinar ao juiz Joaquim Neto de Moura e à juíza Luísa Arantes. O anúncio surgiu após pronunciamentos da ministra da Justiça e do Presidente da República sobre o caso do acórdão "da mulher adúltera", assinados por aqueles desembargadores da Relação do Porto. Marcelo frisou o "princípio óbvio" de que todos os representantes do Estado estão "obrigados a cumprir e fazer cumprir a Constituição"; Francisca Van Dunem assumiu que, "como cidadã", tem "uma conceção de igualdade que não se revê em determinado tipo de padrões", certificando: "O Conselho Superior de Magistratura vai seguramente ocupar-se do caso."

O machismo do sistema judicial português e nomeadamente a leniência com que trata os casos de violência doméstica, tipicamente com mulheres como vítimas, tem sido denunciado em vários estudos académicos. Mas a descoberta de vários acórdãos relativos a casos de violência doméstica, sempre com o juiz Neto de Moura como relator, em que se invoca o alegado "adultério" das mulheres vítimas, citando a Bíblia, a tradição de lapidação em algumas culturas e a infame norma do Código Penal de 1886 (só revogada em 1975) que prescrevia apenas a saída da comarca por seis meses para o homem que matasse a mulher "em flagrante de adultério", parece ter escandalizado o país - e não só, já que notícias sobre o caso surgiram em vários jornais estrangeiros, incluindo o britânico Guardian e o americano Washington Post. Esses mesmo acórdãos são citados e analisados na carta assinada pela UMAR, Capazes, Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres, APAV e Associação Portuguesa das Mulheres Juristas, frisando-se o facto de em todos a apreciação da medida das penas se escorar não no comportamento, motivações e estado emocional dos arguidos, como prevê a Constituição e a lei penal, mas no comportamento das vítimas mulheres, e nomeadamente em considerações morais sobre as mesmas, "compreendendo-se" a violência sobre elas. O que, dizem as associações, é "uma ideia errada e extremamente perigosa para os bens jurídicos que a lei penal especialmente pretende tutelar: a saúde e a vida das mulheres no contexto de relações de intimidade." E prosseguem: "Decorre desta fundamentação que o Tribunal da Relação ensaia um juízo de proporcionalidade entre a moralidade da mulher (des)honesta e a desforra do homem traído. (...) Deixa implícito que uma agressão violenta (executada com uma moca de madeira cheia de pregos) levada a cabo por um homem traído é, apesar de legalmente censurável, socialmente compreensível e tolerável."

Com base na análise dos três acórdãos, a carta exprime preocupação com "o nível de proteção que as mulheres vítimas de violência doméstica podem receber dos tribunais portugueses" e solicita, além da abertura de inquérito disciplinar a todos os juízes que assinaram os três acórdãos, que o CSM promova a publicação de todas as decisões de tribunais superiores (não são todas acessíveis nas plataformas da justiça), de modo a ser possível "a identificação e análise crítica das tendências jurisprudenciais"; que a formação dos magistrados "tenha uma maior dimensão interdisciplinar" e contenha módulos sobre igualdade de género; que o órgão se pronuncie sobre os institutos da recusa e suspeição, os quais as associações consideram estar a ser interpretados de forma demasiado restrita.

Aparentemente, o CSM, que, recorde-se, tinha começado por afirmar, no início da semana, que não abrira qualquer inquérito e que "nem todas as proclamações arcaicas, inadequadas ou infelizes constantes de sentenças assumem relevância disciplinar", só terá instaurado o procedimento em relação aos responsáveis da decisão de 12 de outubro, a mais recente. Da qual, ao contrário do que o DN afirmou ontem, ainda decorre o prazo para recurso ao Tribunal Constitucional.

Fonte: Diário de Notícias