Delação premiada abre primeira brecha no Pacto da Justiça

Procuradores e juízes estão a favor. Advogados torcem o nariz. Direita parlamentar concorda, esquerda rejeita

Bastou uma proposta fraturante para se abrir a primeira brecha no "Pacto para a Justiça" proposto pelo Presidente da República. A "delação premiada", como se diz no Brasil, ou "colaboração premiada", deste lado do Atlântico, não reúne a unanimidade dos actores de justiça: juízes, procuradores e funcionários concordam com a criação da figura. Os advogados estão contra. E sem unanimidade, como referiu ao DN Guilherme Figueiredo, bastonário da Ordem dos Advogados, a proposta não avançará.

"Só há convergências no pacto se houver unanimidade. E se não houver, não avança. A Ordem dos Advogados é contra o conceito de delação premiada", disse, ontem ao DN, o bastonário, admitindo, porém, que o mesmo possa ser " configurado com exigências de outros meios de prova que não podem ser meros indícios". A reacção de Guilherme Figueiredo surgiu depois de a presidente da Associação Sindical dos Juízes (ASJP), Manuela Paupério, ter afirmado que o tem da colaboração premiada foi discutida no grupo de trabalho (composto por funcionários judiciais, juízes, procuradores, advogados e solicitadores) para a área penal, que está a preparar propostas para o tal Pacto para a Justiça. "Foi de facto um dos assuntos discutidos no grupo de trabalho de corrupção e criminalidade económica criado para este Pacto. E há alguma concordância dos elementos desse grupo", referiu a presidente da ASJP, provocando alguma irritação no representante da OA no grupo de trabalho: "Não vou dizer nada sobre os trabalhos. Estou é indignado com a quebra da reserva dos mesmos", declarou ao DN Miguel Matias, vice-presidente da OA.

Em declarações ao DN, o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, António Ventinhas, defendeu a concretização legal do regime de colaboração premiada relativamente a "organizações de cariz violento, terrorismo e criminalidade económico-financeira". Para o procurador há já vários exemplos no estrangeiro - Itália, Espanha, EUA e Brasil (ver caixa) - onde a justiça tem obtido resultados positivos com a colaboração premiada.

Sobre este tema, a ministra da Justiça, numa entrevista ao "Jornal de Notícias", tinha rejeitado a importação do modelo brasileiro, que tem resultado em várias condenações no processo "Lava Jato", para o sistema português. Ontem, fonte oficial do ministério disse ao DN que "a ministra, da última vez que falou disso, defendeu que esse debate da delação premiada era importante mas que o Governo não tinha nenhuma iniciativa legislativa planeada". Francisca Van Dunen mostra-se mais favorável à introdução no sistema português da negociação da pena, algo que como procuradora-distrital de Lisboa tentou implementar, mas que o Supremo Tribunal de Justiça, em 2013, anulou.

Politicamente, tal como noutras questões, o parlamento divide-se. PSD e CDS estão a favor. PS e Bloco de Esquerda são contra. "O PSD tem sobre essa matéria uma posição claríssima. É a favor da delação premiada, mas acompanhada da necessária investigação", declarou Paula Teixeira da Cruz, deputada social-democrata, ex-ministra da Justiça. "Consideramos a delação premiada como uma questão natural apesar de saber que não é uma questão pacífica. E em certo tipo de crimes como a corrupção justifica-se a delação premiada. Mas numa óptica em que o delator não deixe de ser punido mas sim que funcione como atenuante. Mas o CDS/PP é oficialmente a favor deste instituto", disse ao DN a deputada Vânia Dias da Silva.

À esquerda, as reacções são em sentido contrário: "Não há novidades relativamente ao que a sem hora ministra já tinha dito. A posição do PS é que esse instituto não é compatível com a nossa legislação tal como ela está e não prevemos nenhuma iniciativa legislativa nesse sentido. Esse assunto não está na agenda parlamentar" (Filipe Neto Brandão, PS). "Ceder às respostas fáceis e aos institntos justiceiros é um caminho muitíssimo perigoso e poderá originar situações de difamação agravada" (José Manuel Pureza, BE)

O que é a colaboração premiada?

Ainda que não tenha este nome, nem as benesses de um regime de colaboração/arrependimento, a lei portuguesa já prevê algumas situações para os chamados arrependidos ou para quem queira colaborar com a justiça. No Brasil, por exemplo, além do testemunho, o "colaborador" tem que apresentar provas do que alega.

Na recente alteração à chamada lei da corrupção no fenómeno desportivo, a Assembleia da República aprovou um regime próximo à delação premiada, ao ficar consagrado na tal lei (13/2017, de 2 de maio) que as penas podem ser atenuadas "se o agente auxiliar concretamente na recolha das provas decisiva para a identificação ou a captura de outros responsáveis".

Esta figura está igualmente prevista no Código Penal para o crime de corrupção ativa, prevendo-se também uma "pena especialmente atenuada" ao agente do crime que "até ao encerramento da audiência de julgamento em primeira instância, auxiliar concretamente na obtenção ou produção das provas decisivas para a identificação ou a captura de outros responsáveis". Também no regime das contraordenacional da Autoridade da Concorrência está previsto um "regime de clemência".

Fonte: Diário de Notícias