Comissão de Proteção Dados volta a chumbar acesso das secretas a registos de comunicações

O projeto de lei do CDS que pretendia contornar o veto do Tribunal Constitucional a um diploma que daria mais poderes aos serviços de informações tem um parecer negativo da Comissão Nacional de Proteção de Dados (que também chumbara a primeira tentativa), que o considera inconstitucional. E chama a atenção para as “atribuições quase policiais” que seriam dadas às secretas

A Comissão concluiu que “o legislador, através deste projeto de lei, limita-se a tentar, por via de um rearranjo do inconstitucional decreto nº 426/XII da Assembleia da República, uma resposta paliativa aos obstáculos estruturais que o Tribunal Constitucional (TC) identificou”.
Ou seja, perante o que considera uma proposta (do CDS) no essencial idêntica a um projeto de diploma (então uma iniciativa do Governo PSD/CDS) que já foi chumbado pelo Constitucional, a CNPD entende que os argumentos ora apresentados pelos deputados centristas não vêm “obviar aos obstáculos constitucionais assinalados pelo Tribunal Constitucional” em 2015 (e aos argumentos de então da própria Comissão).

A questão que está no centro do projeto do CDS foi discutida no Parlamento na semana passada, tendo a orientação dos centristas merecido no essencial a concordância do PSD e também do PS e do Governo, com a oposição de PCP e Bloco de Esquerda. Aliás, a ministra da Administração Interna (MAI), Constança Urbano de Sousa, revelou então que o Governo estava a preparar uma proposta para enviar ao Parlamento, que pretenderá, de “forma inteligente”, ultrapassar o chumbo do TC.

AVISO À NAVEGAÇÃO
De certa forma, a posição negativa da CNPD, comunicada na tarde de quarta-feira ao Parlamento (o parecer fora pedido pela comissão parlamentar de Direitos, Liberdades e Garantias), é também, por antecipação, um chumbo às intenções do Governo.

Aliás, uma das medidas concretas admitidas na semana passada pela MAI está plasmada no projeto do CDS (e foi contestada pela CNPD). Trata-se da instância competente para permitir especificamente cada acesso das secretas.

Na proposta centrista, a competência para autorizar o acesso a dados guardados pelas operadoras seria dada por uma secção especial a criar no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), integrada por três juízes conselheiros.

Ora, mesmo concedendo que se trata de um “controlo judicial de alto nível”, a Comissão Nacional de Proteção de Dados contesta a sua operacionalidade, pois “a regulamentação do procedimento para o mesmo inexiste”. Mais adiante, a CNPD afirma que a ausência “de um procedimento claro e tipificado (...) constitui um óbice muito considerável à legalidade e constitucionalidade da solução gizada”.

O reforço dos poderes das secretas, defendido agora pelo projeto do CDS (apresentado publicamente pelo deputado Telmo Correia), são justificados pela necessidade de os Serviços de Informações da República Portuguesa (SIRP, chefiados por Júlio Pereira) poderem recolher mais informações “adequadas a prevenir a sabotagem, a espionagem, o terrorismo e sua proliferação, nos termos da lei de combate ao terrorismo, e a criminalidade altamente organizada de natureza transnacional”.

Para os defensores de mais meios para as secretas, a visita a Portugal do Papa Francisco é citado como um tipo de situação em que tal cenário se justifica.

A Comissão Nacional de Proteção de Dados é uma entidade administrativa independente com poderes de autoridade, que funciona junto do Parlamento, e que tem como atribuição genérica controlar e fiscalizar o processamento de dados pessoais, no respeito pelos direitos do Homem e pelas liberdades e garantias consagradas na Constituição e na lei. Desde 2012, a CNPD é presidida por Filipa Calvão, jurista e professora universitária de Direito na Universidade Católica.

PAPÉIS TROCADOS
No entendimento da CNPD, nas questões suscitadas pelo projeto do CDS, há um ponto inegociável: o acesso aos dados pessoais em causa só pode ser autorizado, e apenas em certas situações, no âmbito de um processo criminal (e essa não é a esfera de atuação do SIRP, estando-lhe até explicitamente vedada, sublinha a Comissão). Esta pergunta: “Como pode admitir-se que [os serviços de informações] passem a ter acesso a dados para os quais a própria Constituição determina uma condição que os exclui automaticamente dessa possibilidade?”.

Antes, no parecer agora aprovado, lembrara a Comissão qual é o lugar das coisas entre as secretas e as autoridades policiais/Ministério Público. E neste contexto, sem o afirmar, parecer querer imputar aos deputados centristas a tentativa de uma inversão de papéis.
A Comissão anota a “total falta de correspondência entre o que se permite e a quem se permite, por via de lei, no presente quadro jurídico e o que se visa permitir e a quem se visa permitir de acordo com as alterações propostas no projeto”. O introito é algo cifrado, mas a explicação vem a seguir: "Disciplina-se, então, o acesso de um universo de pessoas que exercem funções policiais às informações dos SIRP e não ao contrário, como parece resultar do projeto de lei”.

O que está em causa neste projeto de lei é a “amplitude de ação do SIRP”, afirma a CNPD noutro passo do parecer, acrescentado que os limites colocados à atuação daqueles serviços os “impede[m] (...) de extravasarem as suas atribuições” e também os “manda que (...) se não imiscuam ‘[n]a atividade própria de outros organismos, como no domínio da atividade dos tribunais ou da atividade policial’”.

Como corolário deste raciocínio, a Comissão Nacional de Proteção de Dados considera que “as soluções propostas” pelo CDS “visam (...) conferir aos SIRP atribuições quase policiais”.

Não especificamente em relação ao projeto apreciado, mas sobre a questão geral da conservação de dados pessoais gerados ou tratados pelas empresas de telecomunicações, a CNPD faz no parecer um juízo radical, considerando que a lei vigente em Portugal “viola a Constituição”, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Na base deste argumento está o facto de a lei portuguesa resultar da transposição de uma Diretiva Europeia que entretanto foi julgada “inválida” pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.

MEMÓRIA DO PRIMEIRO CAPÍTULO
O acórdão do TC que declarou a inconstitucionalidade do diploma é de agosto de 2015. Dois meses antes, a CNPD pronunciara-se sobre o mesmo texto do Governo, e concluíra em sentido idêntico, dizendo que estava em causa a violação da Constituição. No entender da Comissão, o acesso das secretas a dados pessoais de tráfego e de localização (que podem ser disponibilizados às autoridades mas apenas no âmbito de um processo penal, o que nunca seria o caso) permitiria “o conhecimento de muitos aspetos da vida privada” e estaria a legitimar uma “devassa”.

Para a Comissão, a lei em causa permitia o “acesso, massivo, a uma quantidade imensa de dados pessoais sensíveis (para além dos dados de tráfego e de localização, ainda os dados bancários e os dados fiscais)”. E tudo isso acontecia, segundo a CNPD, sem que existisse “qualquer tipo de indício de prática ou ligação às atividades criminosas e atentatórias da segurança nacional que se visa prevenir”, havendo, por outro lado, “um evidente risco de utilização abusiva [da] informação”.

Fonte: Expresso