Democracia "mais viva" e "escrutínio contínuo": regressam os debates quinzenais
Na TSF, Francisco Louçã e Assunção Cristas recordam os momentos mais marcantes dos debates quinzenais no Parlamento.
O debate quinzenal com o primeiro-ministro regressa, esta quarta-feira, ao plenário da Assembleia da República com um formato diferente. Pela primeira vez desde 2020, o primeiro-ministro vai responder às perguntas dos deputados ao abrigo dos debates quinzenais que António Costa e Rui Rio decidiram cancelar. Na altura, o primeiro-ministro e o líder da oposição consideraram o modelo esgotado e cansativo. Mas, na história dos debates quinzenais há incidentes e momentos mais curiosos.
Francisco Louçã era deputado e coordenador do Bloco de Esquerda quando em 2008 nasceram os debates quinzenais no Parlamento. Esta nova fórmula de debate na Assembleia da República ficou acertada em julho de 2007, num grupo de trabalho criado na Comissão de Assuntos Constitucionais coordenado pelo deputado socialista António José Seguro.
Francisco Louçã recorda que esta novidade trouxe uma nova dinâmica e mais vida ao debate político.
"Esta nova formulação que António José Seguro propôs e que acabou por ser mesmo num Governo de maioria absoluta do Partido Socialista era muito mais vivo, era muito mais interpelante porque permitia que houvesse intervenções mais curtas, múltiplas intervenções dentro de um tempo total limitado, muito limitado, muito escasso, mas, em todo o caso, permitiu uma vivacidade do debate", afirma, em declarações à TSF.
Louçã recorda que teve "debates vivos" com José Sócrates, Santana Lopes e Passos Coelho. "Dava uma outra capacidade de interpelação, de levantamento de questões, de exigência de respostas, de esclarecimento de problemas. Quase que não me surpreende, mas tenho muita pena que em nenhuma outra maioria absoluta do Partido Socialista tivesse havido esta ideia de transformar os debates numa raridade cerimonial", lamenta.
Francisco Louçã lembra que, dos chefes de Governo com quem se cruzou no Parlamento, José Sócrates era o primeiro-ministro que apresentava uma preparação mais cuidadosa.
"Há primeiro-ministros que se irritam se casos que não querem que sejam discutidos, podres ou imprevistos aparecem no debate e exigem uma resposta, ou se eles são particularmente num impreparados para o fazer", refere, dizendo que o primeiro-ministro mais preparado que encontrou nos debates quinzenais foi António Guterres. Já o menos preparado, afirma Francisco Louçã, "seria Santana Lopes".
"Passos Coelho, no início, talvez tivesse menos informação do que depois foi adquirindo ao longo do tempo. Sócrates tinha sempre uma preparação muito cuidadosa para muitas previsões de alternativas possíveis", acrescenta.
Para os deputados que nunca conheceram esta fórmula de debates quinzenais, Francisco Louçã dá um conselho aos deputados: há que aproveitar os debates quinzenais para marcar a vida do país e não como uma arena de vaidade...
"Cada um tem o seu estilo, há quem queira fazer do Parlamento uma arena de vaidade e, portanto, não tem nenhuma relevância do ponto de vista democrático a não ser olhar-se ao espelho. Acho que isso é totalmente desinteressante se não mesmo insultuoso para a vida democrática. Agora, para aqueles ou aquelas que querem trazer um debate com o primeiro-ministro, na particularidade dele ter a maioria absoluta, ter sempre a última palavra, de falar ao princípio e falar ao fim, pelo tempo do Partido Socialista para para lhe dizerem que ele é a majestade mais extraordinária que jamais existiu à face da Terra, a única regra é tratarem as questões importantes, irem ao essencial, falarem daquilo que importa mesmo às pessoas e que marca a vida do país. Elevar o debate ao nível em que ele é necessário, em que ele faz parte da vida das pessoas", sugere.
Assunção Cristãs reconhece que os governos partem para estes debates com uma vantagem sobre a oposição porque têm mais informação. A ex-líder do CDS lembra-se, por isso, de se preparar bem, porque sentia uma grande responsabilidade.
"O Governo tem sempre muito mais informação e tem toda uma estrutura de apoio que vem da própria Administração Pública que lhe dá um acesso a informação e uma capacidade de prestar, de trazer informações e de selecionar as informações que mais lhe interessam, que obviamente a oposição não tem", nota, sublinhando que "a oposição tem uma grande responsabilidade: garantir que o Governo responde para lá dessas informações vai veiculando na sua comunicação e que é confrontado com incongruências, com aspetos que não correspondem exatamente àquilo que se está a passar na realidade".
"Eu sentia sobretudo uma grande responsabilidade de não perder aquele momento para forçar respostas que não vinham nesses tais dados e nessa comunicação que o Governo veiculava", diz.
A ex-líder do CDSP-PP recorda-se dos duelos com António Costa, ainda sem maioria absoluta, e diz que o segredo era manter uma alta pressão sobre o primeiro-ministro, porque Costa não era um adversário fácil.
"O que é visível no primeiro-ministro é uma enorme capacidade de contar a sua própria história e de fugir a uma realidade que se vai impondo e isso implicava uma grande exigência e uma grande preparação do nosso lado para garantir que mantínhamos a pergunta e a pressão. Muitas vezes o que acontecia era ver o primeiro-ministro com alguma dificuldade exatamente por essa pressão se manter, mas, obviamente, o primeiro-ministro era muito hábil a fugir às questões e a encontrar narrativas paralelas", refere.
Sobre o regresso dos debates quinzenais, Cristas afirma que sempre foi a favor deles porque são uma boa fórmula de manter o Governo sob vigilância.
"Eu sempre achei que foi uma perda o debate quinzenal ter deixado de existir, porque, às vezes parece que é muito e em duas semanas acontecem muitas coisas. Era muito habitual nós estarmos a ir juntando temas e aspetos, episódios e questões que aconteciam para confrontar o primeiro-ministro. Quando deixou de ser quinzenal, pior ainda, porque os temas foram avolumando-se e eu acho que é importante haver um debate organizado com regras, como é o caso do debate quinzenal, mas que mantém um escrutínio bastante contínuo sobre o Governo e a ação do Governo", defende.
Assunção Cristas dá o exemplo de outros países em que "até há debates semanais". "É exigente para o Governo, mas o Governo tem muita informação da qual pode expor e o seu dever é responder perante o Parlamento. Eu acho que é um espaço de debate e diálogo organizado que pode ser muito bem utilizado em benefício da qualidade da democracia", sublinha.
"Preparam-se para um debate para arranjar dois minutos de soundbyte"
Já o politólogo José Adelino Maltez entende que os debates quinzenais não passam de retórica, onde cada um procura o melhor soundbite, fugindo do verdadeiro confronto de ideias.
"Estamos num estado de repouso e acho que as pessoas, a não ser os viciados, apenas observam aquilo que eles prepararam antes. Eles preparam-se para um debate para cada um deles arranjar dois minutos de soundbyte e, neste sentido, não queremos ser enganados e não ouvimos. Cada um deles fala com o respetivo diretor de comunicação, ensaiam aquilo que vão transmitir que caiba em três linhas e o resto é palha e palha está tudo farto", considera.
Para Adelino Maltez, o valor acrescentado dos debates quinzenais é transmitido através das "promessas" que o primeiro-ministro "vai invocar".
"Vai fazer isto, vai fazer aquilo que ainda ninguém sabe, mas resulta sempre isso ficar como título da comunicação. A oposição está espera de apanhar uma falha importante da porta do poder, portanto, há aqui uma rotina que cansa em termos de regime parlamentar", frisa.
Quanto à influência dos debates quinzenais na ação governativa, José Adelino Maltez acredita que é mínima.
"Quer o Governo quer a oposição que, segundo as sondagens, estão praticamente em empate técnico, estão à procura dos eleitores bailarinos, os que passam do PS para o PSD e do PSD para o PS e são esses que fazem ganhar as eleições. Os decisores fundamentais do país, isto é, os eleitores que podem escolher quem é o que tem os 10% que lhe permite ser primeiro-ministro, esses estão de férias", atira.
"Deviam ser proibidos os papéis, devia ser tudo oral, devia ser homens sós a falar, porque assim era mais espontâneo e mais vivo", conclui.
Fonte: TSF
Foto: António Pedro Santos/Lusa