Contratos, bancos de horas e até férias. Vêm aí (muitas) mudanças à lei do trabalho

Governo defende contratos a termo com limites mais longos, o regresso do banco de horas individual e o fim do travão ao 'outsourcing' após despedimentos.
Anegociação ainda agora começou, mas o anteprojeto apresentado pelo Governo na Concertação Social já deixa antever o que poderá mudar na forma como se trabalha em Portugal. Dos contratos a termo com limites mais longos ao regresso do banco de horas individual, há mais de 100 mexidas à lei do trabalho em discussão. Os empresários falam num “bom ponto de partida“, enquanto os sindicatos deixam avisos sobre o potencial impacto negativo na vida dos trabalhadores.
“No geral, consideramos positivas, mas estamos num processo negocial, que pode ainda sofrer mais alterações, num sentido ainda mais positivo e numa melhor adequação à realidade empresarial e dos trabalhadores“, sublinha fonte oficial da Confederação do Turismo de Portugal (CTP).
No mesmo sentido, Rafael Rocha, diretor-geral da Confederação Empresarial de Portugal (CIP), defende que o anteprojeto apresentado pelo Governo é um “bom ponto de partida para o obrigatório debate público“. “O documento representa uma base de trabalho, que aponta para soluções com potencial relevância, tendo, contudo, margem para significativas melhorias“, salienta.
De opinião semelhante partilha o secretário-geral da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP), Luís Mira, que considera positiva a proposta do Governo, em especial no que diz respeito às mudanças nas regras da contratação e aos bancos de horas.
Também Luís Miguel Ribeiro, presidente do conselho de administração da Associação Empresarial de Portugal (AEP) entende que as alterações propostas “aparentam ir na direção correta, ao promoverem uma menor rigidez laboral“.
Do outro lado da mesa, Tiago Oliveira, secretário-geral da CGTP, atira que as mudanças em discussão são “profundamente negativas” e alerta que “terão um impacto enorme na vida dos trabalhadores”.
“Assente numa ideia de atualização, modernização e adaptação aos novos desafios, aquilo que este Governo propõe não são mais do que políticas do passado e que colocam sempre os trabalhadores numa situação de uma maior fragilização das relações de trabalho, numa balança que já hoje é profundamente desequilibrada”, declara o sindicalista.
O ECO também questionou a UGT, tendo esta remetido, porém, para a posição que o seu secretariado nacional assumirá na quinta-feira.
Mas, afinal, que mudanças à lei do trabalho estão na calha? O ECO detalha abaixo as principais alterações.
Contratos a termo com novos limites
Hoje, um contrato a termo certo pode durar, no máximo, dois anos. E um contrato a termo incerto quatro anos. O Governo quer aumentar esses prazos em um ano. Ou seja, a ser aprovada esta proposta, a duração máxima dos contratos a termo certo passará para três anos e a dos contratos a termo incerto para cinco anos.
“Dá mais liberdade de gestão”, sublinha Luís Mira. “Consideramos que a medida tem potencial para impactar positivamente as empresas, ao permitir uma maior capacidade de adaptação a um contexto caracterizado por uma procura volátil, exposta a choques externos, por uma concorrência global com intervenientes mais ágeis e menos regulados e por uma dinâmica de inovação permanente“, argumenta, na mesma linha, o diretor-geral da CIP.
Já o secretário-geral da CGTP avisa que esta medida coloca o trabalhador “como uma peça duma engrenagem para ser usado à vontade pela empresa, negando a estabilidade e a perspetiva de futuro que qualquer trabalhador procura no seu futuro”.
E esta não é a única mudança proposta às regras da contratação. O Governo quer que da lei constem mais situações em que é possível fazer contratações a termo certo, incluindo a contratação de trabalhador que nunca tenha prestado atividade ao abrigo de contrato de trabalho por tempo indeterminado, ou que esteja em situação de desemprego de longa duração, bem como a contratação de trabalhadores reformados por velhice ou invalidez.
Além disso, o Governo altera as regras dos contratos de trabalho com estudante em período de férias ou interrupção letiva, passando a ser “denunciável a todo o momento, por qualquer das partes, com pré-aviso de 15 dias“.
Banco de horas individual regressa
Depois do primeiro dos governos de António Costa ter retirado o banco de horas individual do leque de opções dos empregadores, essa figura está agora em vias de regressar.
No anteprojeto apresentado na Concertação Social, o Governo propõe a (re)criação de um banco de horas instituído por acordo entre o empregador e o trabalhador, “podendo, neste caso, o período normal de trabalho ser aumentado até duas horas diárias e atingir 50 horas semanais, tendo o acréscimo por limite 150 horas por ano”.
“O empregador deve comunicar ao trabalhador a necessidade de prestação de trabalho com a antecedência mínima de três dias“, é ainda explicado na proposta.
“É a grande medida das 100 mudanças propostas. Era uma alteração proposta e defendida pelas empresas e associações. É uma medida de flexibilização importantíssima para as empresas. Estar espartilhada nas cláusulas de contratação coletiva não fazia sentido”, elogia José Eduardo Carvalho, Presidente da Associação Industrial Portugal (AIP).
“É uma medida cujo regresso a AEP aplaude, pois desde sempre considerou um erro a sua revogação, não só pelos efeitos diretos que provocou, mas também pelos efeitos indiretos que determinou, funcionando como um desincentivo na contratação coletiva à regulação mais específica de outras formas de bancos de horas“, comenta Luís Miguel Ribeiro.
De notar que o regresso do banco de horas individual tem sido também muito pedido pela Confederação do Turismo de Portugal. Da parte da Confederação dos Agricultores de Portugal, Luís Mira entende que esta medida é fundamental. E da parte da CIP, Rafael Rocha enfatiza que “o retorno ao banco de horas individual potencia não só ajustamentos às flutuações das necessidades empresariais, como também uma melhor articulação entre a vida profissional e a vida familiar“.
Mas enquanto do lado dos empresários chegam aplausos, do lado dos sindicatos soam as campainhas. “Os patrões lutaram por esta medida porque sabem bem que numa relação individual o trabalhador parte sempre duma posição de maior fragilidade. É ter trabalho extraordinário de graça e gerir a vida de quem trabalha a favor das empresas, mais uma vez, com fortes implicações na conciliação a vida profissional com a vida pessoal e familiar“, afirma Tiago Oliveira.
Período experimental, da polémica à revogação
Foi uma das mudanças mais polémicas da revisão da lei do trabalho feita em 2019: desde então, o período experimental de 180 dias passou a ser aplicado também aos trabalhadores à procura do primeiro emprego e aos desempregados de longa duração.
Agora, o Governo quer revogar essa norma, o que significa que essa duração de experiência pode passar a ser exigida apenas a trabalhadores que exerçam cargos de complexidade técnica, elevado grau de responsabilidade ou que pressuponham uma especial qualificação, e a trabalhadores que desempenhem funções de confiança.
Travão ao outsourcing. TC “valida”, mas Governo quer revogar
O travão ao outsourcing por 12 meses após despedimentos coletivos ou despedimentos por extinção de posto de trabalho foi um dos temas que mais dividiu as confederações empresariais e o Governo de António Costa, na Agenda do Trabalho Digno.
Apesar das críticas, avançou (e está em vigor desde maio de 2023) e o Tribunal Constitucional veio confirmar este mês que esta norma não viola a Constituição. Ainda assim, o Governo quer eliminar esse travão ao recurso à terceirização dos serviços, em linha com o que tem sido defendido, vez após vez, pelos empregadores.
Em reação, Rafael Rocha, da CIP, considera que “a proibição em vigor é um exemplo bem concreto de medidas restritivas incluídas na Agenda do Trabalho Digno que em nada beneficiam os trabalhadores”.
“A realidade diz-nos que atividade das empresas é cada vez mais especializada, exigindo eficiência e qualidade. Razão pela qual a eliminação da proibição é claramente positiva“, defende o diretor-geral da confederação.
Pagamento de créditos em risco
Foi uma das “vitórias” do Bloco de Esquerda na Agenda do Trabalho Digno e está agora em risco. Hoje, o crédito devido a um trabalhador não é suscetível de extinção por meio de remissão abdicativa, exceto em tribunal.
Já com a proposta agora apresentada, essa extinção passa a ser possível nos casos em que o trabalhador “declare expressamente a renúncia ao mesmo em declaração escrita notarialmente”.
Serviços mínimos alargados
A lista de setores que satisfazem “necessidades sociais impreteríveis” e onde, por isso, podem ser fixados serviços mínimos em caso de greve pode ficar mais longa, caso a proposta do Governo receba “luz verde”.
O Governo quer somar aos pontos já existentes o abastecimento alimentar, os serviços de cuidado a crianças, idosos, doentes e pessoas com deficiência (por exemplo, lares e greves), bem como os serviços de segurança privada de bens ou equipamentos essenciais.
Este tem sido um ponto particularmente quente na discussão recente em torno da lei do trabalho, com o primeiro-ministro, Luís Montenegro, a defender que é preciso proteger o equilíbrio entre o direito à greve e os demais direitos dos cidadãos, como o direito à mobilidade.
Da parte dos sindicatos, a CGTP tem criticado duramente esta posição. “A greve é o último patamar que o trabalhador tem, a última ferramenta para lutar por aquilo que no seu entender é justo e necessário. A greve é a oportunidade que o trabalhador tem de dizer que sem ele nada funciona, tudo para. É exatamente por isso que as greves têm o efeito e o impacto que têm. O que este Governo procura é minimizar esse impacto e ao fazê-lo retirar essa força que reside no trabalho“, atira o secretário-geral.
Microempresas com menor dever de formação
Há duas mudanças previstas no anteprojeto do Governo, no que diz respeito à formação dos trabalhadores.
Por um lado, mantém-se a obrigação de o empregador garantir formação, “sempre que o exercício de funções acessórias exigir especial qualificação”, mas deixa-se cair o mínimo de dez horas hoje previsto. Além disso, a violação dessa norma passa a dar azo a uma contraordenação leve, em vez de grave (reduzindo-se, assim, o valor da coima).
Por outro lado, fica estipulado que, em cada ano, “o número de horas de formação continua a que o trabalhador tem direito é, respetivamente, vinte horas no caso de microempresas, quarenta horas nas restantes, ou sendo contratado a termo por período igual ou superior a três meses, o número de horas proporcional à duração do contrato nesse ano”.
Hoje, a lei não faz essa distinção em função da dimensão da empresa, estabelecendo para todas a obrigação das 40 horas.
“A formação profissional assume um papel central no desenvolvimento das empresas. Contudo, para que o seu impacto seja efetivo, devem ser promovidas medidas complementares, nomeadamente: uma maior sensibilização da sociedade para a necessidade permanente de atualização de conhecimentos, o reforço dos apoios financeiros destinados a trabalhadores e empresas, bem como a promoção de ações de formação de curta duração ou com horários flexíveis, capazes de responder à escassez de tempo disponível para a qualificação”, salienta o diretor-geral da CIP, face a esta mudança potencial.
Já Luís Mira, da CAP, salienta que esta alteração nos deveres de formação “é, sobretudo, realista”, “na medida em que havia um nível elevado de incumprimento nas microempresas“.
Em contraste, o presidente da AEP alerta que a medida pode “funcionar ao contrário do pretendido, acabando por afastar ainda mais trabalhadores qualificados [das microempresas] que reconhecem o valor da formação contínua como elemento de valorização pessoal“.
Por sua vez, o secretário-geral da CGTP frisa que “muitas empresas” já não cumprem esse dever. Pior, “seja nas microempresas, seja nas médias e grandes, nem sempre maior formação significa mais salários e valorização profissional”, diz.
Mais férias? Dias pagos não mexem, mas é possível “comprar”
O Governo não quer mexer no máximo de dias de férias pagas (que hoje está em 22 dias), mas pretende introduzir a possibilidade de o trabalhador “comprar” dois dias extra de descanso, ou seja, o trabalhador abdica do seu salário nesse dias (o que já é prática em várias empresas).
No anteprojeto, incluiu, entre os vários tipos de faltas justificadas, as ausências “em antecipação ou prolongamento do período de férias, até ao máximo de dois dias por ano, solicitadas pelo trabalhador”.
Estes dias extra de descanso devem ser requeridos “no prazo de dez dias sobre a marcação do período de férias e o empregador apenas se pode opor ao seu gozo com fundamento em necessidades imperiosas de funcionamento da empresa”, é ainda definido.
“Não vemos qualquer inconveniente de ordem pública ou privada, se tal decisão resultar de acordo entre as partes”, assinala o presidente da AEP. E, no mesmo sentido, o diretor-geral da CIP destaca “as vantagens ao nível da conciliação“.
O que vai mudar nas regras do teletrabalho?
Há várias mudanças nos artigos do Código do Trabalho relativo ao teletrabalho. Por exemplo, no que diz respeito ao acordo para a prestação de teletrabalho, já estava previsto que ficasse definido o período normal de trabalho diário e semanal. Mas o Governo quer que também fique estipulado “a proporção de trabalho prestado de modo remoto e presencial, quando for o caso“.
Outra mudança é que o local de trabalho previsto no acordo de teletrabalho passa a poder ser alterado temporariamente pelo trabalhador, “mediante comunicação dirigida ao empregador, com um pré-aviso de cinco dias, a qual só se torna eficaz se não houver oposição escrita deste, manifestada durante o período de pré-aviso”.
Hoje, o trabalhador pode mudar o local de trabalho, mas diz-se que apenas por acordo escrito com o empregador.
Que relação têm estafetas e plataformas digitais?
Entre as mais de 100 mudanças à lei do trabalho propostas pelo Governo, estão várias ligadas às regras do trabalho nas plataformas digitais. Isto porque o Executivo de Luís Montenegro aproveitou para transpor a diretiva europeia que diz respeito à relação entre os estafetas e essas plataformas.
Desde maio de 2023 que o Código do Trabalho já prevê a possibilidade de os estafetas serem considerados trabalhadores por conta de outrem das plataformas, e essa porta não se fecha agora. O Governo quer, contudo, que só se aplica aos estafetas cuja prestação da atividade à plataforma seja regulada e àqueles que estejam em situação de dependência económica.
A propósito, o próprio conceito de dependência económica deve ser alterado, segundo a proposta do Governo. Tal impacta não apenas esses estafetas, mas todos os trabalhadores independentes. Até aqui, bastava que 50% da atividade de um trabalhador independente estivesse ligada a um cliente. O Governo quer subir esse limite para 80%.
Fonte: Eco